Uma das características da violência doméstica é o isolamento social. Envolvida em uma relação abusiva, a mulher desfaz os laços com familiares e amigos. Quando se percebe vítima, precisa encontrar coragem, por vezes sozinha, para romper o silêncio. Por isso, autoridades que atuam na defesa dos direitos das mulheres estão alertas para as consequências que o confinamento, necessário para o controle do coronavírus, pode ter na intensificação da violência dentro de casa.
O número de denúncias recebidas pelo Ligue 180 no país entre os 17 e 25 de março aumentou 9% em relação à semana anterior (de 3 mil para 3,3 mil). O acréscimo já era esperado, por seguir a mesma lógica de outras nações. Na China, país onde teve início a pandemia, durante o confinamento, ONGs passaram a denunciar o aumento dos casos. Na Índia, o número de registros dobrou nesse período. Nos Estados Unidos, cidades também apresentaram crescimento na violência doméstica.
A situação levou o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, a fazer apelo mundial para pedir proteção às mulheres em suas próprias casas. Em vídeo publicado no domingo (5), pediu que todos os governos incluam a violência contra as mulheres nos planos de resposta contra a covid-19. Guterres cita como possíveis ações aumentar investimento em serviços de apoio, instalar sistemas de alarmes em locais como farmácias e mercados e considerar abrigos para vítimas essenciais. A ONU Mulheres também já havia publicado comunicado alertando para os reflexos que o sexo feminino pode sofrer com a pandemia, entre eles o crescimento da violência doméstica.
Para a promotora Ivana Battaglin, da Promotoria de Justiça Especializada de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre, fatores que podem contribuir para que as agressões se tornem mais frequentes e intensas são os reflexos econômicos, como o desemprego ou redução de renda, e ainda a construção cultural, que vincula a masculinidade ao trabalho. Esse cenário pode auxiliar, por exemplo, para que a violência psicológica, como o controle sobre a mulher, evolua para a agressão física.
— Ficar em casa, sem trabalhar, pode afetar a própria noção de masculinidade. Outra forma de afirmar a masculinidade é por meio da violência. Então, se eles não estão conseguindo por um lado (pelo trabalho), acabam seguindo por outro: a violência. Ele não vai do nada se tornar um agressor. Mas, às vezes, há uma violência mais sutil, e no momento de crise, como é esse, torna-se mais intensa. A violência é agregada por fatores externos. Por exemplo, o que vem junto a esse momento: desemprego, doença de familiares ou morte mesmo. Por isso, o receio de que esse isolamento, embora necessário, traga esses reflexos — analisa.
Ele não vai do nada se tornar um agressor. Mas, às vezes, há uma violência mais sutil, e no momento de crise, como é esse, torna-se mais intensa
IVANA BATTAGLIN
Promotora de Justiça
Por outro lado, a promotora incentiva que as mulheres sigam pedindo ajuda e quem está ao redor delas esteja atento para que a vítima não fique ainda mais isolada e sem coragem para buscar proteção. Assim como o atendimento das policiais, as medidas protetivas de urgência seguem sendo concedidas e fiscalizadas. Entre as determinações possíveis, está a proibição de que o agressor se aproxime dela, o afastamento do lar e a apreensão de arma de fogo. Esses serviços continuam funcionando.
— As mulheres não estão desassistidas e precisam saber disso — ressalta a promotora.
Diretora da Divisão de Proteção e Atendimento à Mulher no RS e titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam) de Porto Alegre, Tatiana Bastos, reconhece que há essa preocupação. Uma das orientações da Polícia Civil é de que as pessoas que integram a rede próxima a essas mulheres, como amigos, familiares e vizinhos, permaneçam mais atentos.
— Aqueles casos que não demandam medida protetivas, podem inclusive ser registrados pela Delegacia Online. São casos que poderiam nem chegar até a gente, mas temos essa possibilidade agora. Em 24 horas, temos acesso ao registro. Nos outros, as mulheres devem continuar vindo à delegacia, onde serão atendidas e orientadas — diz a delegada.
As denúncias podem ser feitas sem sair de casa, inclusive por WhatsApp (pelo telefone 051-98444-0606).
Proteja sua vizinha
Atenta a esse cenário, a advogada Gabriela Souza decidiu compartilhar em suas redes sociais uma publicação incentivando as mulheres a ficarem atentas às outras. “Vizinha, eu te escuto, eu te projeto”, alerta a mensagem. Ela alerta que a violência doméstica já acontece no ambiente doméstico, dentro de casa. O que significa que maiores períodos de convivência podem potencializar a violência. A profissional compara esse período com outros, onde a convivência também se prolonga, como feriados e férias escolares, quando as pessoas estão mais reunidas.
— A minha preocupação quando fiz esse alerta é não só porque as pessoas estão confinadas, mas porque há um desespero coletivo. Isso pode colaborar para um aumento da violência. As pessoas estão num momento em que não têm certeza de nada. Esse sentimento pode colaborar para o aumento das violências. Percebi que um meio eficaz é uma vizinha tentar cuidar da outra. Se fazer presente, mesmo a distância. Isso é bem importante para a gente conseguir romper esse ciclo — afirma Gabriela.
Percebi que um meio eficaz é uma vizinha tentar cuidar da outra. Se fazer presente, mesmo a distância. Isso é bem importante para a gente conseguir romper esse ciclo
GABRIELA SOUZA
Advogada
Gabriela alerta ainda para o fato de que esse período pode contribuir para que o agressor tenha mais controle ainda sobre a mulher. É preciso que ela esteja atenta a esses sinais, mesmo que nunca tenha sido agredida fisicamente:
— A violência é caracterizada pelo isolamento da vítima. O ciclo se inicia por um isolamento social. Agora nesse período isso pode aumentar. Algo como “tua família não te procura, não te merece. Veja como estamos bem sem eles.” São falas típicas que vão acontecer. É muito importante a mulher cuidar para não entrar nesse jogo.
Uma sugestão da advogada é manter contato com aquela amiga, familiar ou colega de trabalho que você acredita que está numa relação conturbada. Pode ser uma mensagem pela internet ou um telefonema. Não precisa abordar o assunto diretamente. É possível, por exemplo, compartilhar uma notícia sobre o tema. Assim ela saberá que o canal de comunicação está aberto. Se ela estiver em risco, vai saber onde pedir ajuda e que não está sozinha.
Mais 38 patrulhas
A partir deste mês, mais 38 municípios passarão a contar com Patrulha Maria da Penha – medida empregada pela Brigada Militar (BM) para monitorar o cumprimento de medidas protetivas. Até então, eram 46 municípios, passando agora para 84. O objetivo inicial do programa, que existe desde 2012 na Capital e em Canoas e depois se espalhou pelo Estado, é orientar e prevenir casos de violência doméstica, buscando principalmente a redução dos feminicídios.
Como ajudar
- Se você tem uma amiga ou familiar, que pode ser vítima de violência, mantenha contato com ela, mesmo durante o confinamento. Uma boa estratégia é usar o telefone ou aplicativos de mensagens.
- Fique atento ao que acontece ao seu entorno. Mesmo em casa, se suspeitar que uma vizinha está sendo agredida (se ouvir gritos ou pedidos de socorro, por exemplo), entre em contato com a Brigada Militar pelo 190. Esqueça a premissa “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.
- Caso alguma pessoa esteja sendo vítima de violência, ofereça-se para ir com ela até uma delegacia para registrar o caso. Em tempos de isolamento social, uma opção é dar apoio por telefone e até mesmo por videochamada. Assim, ela não se sentirá sozinha.
- Informe-se por telefone, internet e outros meios de comunicação sobre os serviços para as vítimas de violência em sua cidade. A informação sobre os locais onde as mulheres podem pedir ajuda auxilia no encorajamento.
- Mesmo em confinamento, compartilhe conteúdos informativos que possam tirar dúvidas, orientar e dar força a outras mulheres. O Ministério Público do RS lançou no ano passado uma cartilha contra a violência doméstica (acesse aqui) para ser encaminhada por WhatsApp.
Se for vítima
- Busque ajuda de um familiar e denuncie a violência sofrida. Para isso, é possível procurar a Brigada Militar (190) ou a Polícia Civil: vá até a Delegacia da Mulher ou a delegacia mais próxima.
- Em casos de risco, é preciso que a mulher denuncie e fique em local seguro. Para evitar que a situação evolua para algo ainda mais grave. É possível solicitar, na delegacia, abrigamento temporário.
- É importante que durante o registro da ocorrência a mulher informe contatos como telefone e e-mail, para que o Judiciário possa dar retorno por esses meios. Também é possível informar contatos de parentes e amigos, que podem receber essas informações e repassar para a mulher.
- Se as vítimas precisarem prorrogar as medidas protetivas, ou comunicar descumprimentos de prisão podem entrar em contato com a Defensoria Pública do RS. Acesse os telefones no Estado.
Saiba onde vítimas de violência doméstica podem pedir ajuda:
Brigada Militar
- Telefone: 190
- Horário: 24 horas
Polícia Civil
- Endereço: Delegacia da Mulher de Porto Alegre (Rua Professor Freitas e Castro, junto ao Palácio da Polícia), bairro Azenha. As ocorrências também podem ser registradas em outras delegacias. Há 23 DPs especializadas no Estado.
- Telefone: (51) 3288-2173 - 3288-2327 - 3288-2172 ou 197 (emergências)
- Horário: 24 horas