Réu em 18 casos de homicídio, Douglas Gonçalves Romano dos Santos, 23 anos, executado a tiros no domingo em Balneário Camboriú, era testemunha em pelo menos 40 processos contra uma das maiores facções do Rio Grande do Sul.
Em acordo de colaboração premiada, estabelecido em 2017, o ex-gerente do tráfico no bairro Mario Quintana detalhou crimes como assassinatos e lavagem de dinheiro cometidos pelo grupo do qual fez parte.
Após confessar crimes bárbaros como esquartejamentos de rivais, à Polícia Civil e ao Ministério Público, e detalhar como funcionava o esquema mantido por uma das células da facção, Douglas foi inserido em programa de proteção a testemunhas. Continuava respondendo aos processos, mas era mantido fora do Estado para que não fosse executado pelos inimigos. Em março do ano passado, relatou em entrevista a GaúchaZH que o grupo criminoso teria oferecido R$ 800 mil a quem indicasse seu paradeiro. Em janeiro deste ano, voluntariamente quis se desligar do programa e acabou morto pouco mais de um mês depois.
Segundo o Tribunal de Justiça, a maioria dos processos nos quais Douglas depôs estão em fase de instrução. Ou seja, ainda são ouvidas outras testemunhas e os próprios réus. No entendimento do Judiciário, mesmo com a morte do delator, os depoimentos seguem válidos e poderão ser usados inclusive em julgamentos. Em relação a ele, será extinta a punibilidade, mas o processo seguirá contra os outros acusados, já que em nenhum deles o delator respondia sozinho pelos assassinatos.
Mesmo longe do RS, Douglas continuava prestando depoimentos sobre os casos dos quais delatou. As sessões eram realizadas por meio de videoconferência. Assim, não precisava ser conduzido de volta ao Estado para ser ouvido pela Justiça. No dia 20 de fevereiro, deveria ter participado de mais uma audiência, onde seria ouvido ao longo de todo o dia sobre parte dos crimes que delatou. A sessão precisou ser cancelada porque Douglas se recuperava de um ataque a tiros sofrido dias antes.
Na madrugada de 2 de fevereiro, Douglas foi alvejado na perna esquerda ao sair de uma festa em Camboriú. Esse ataque, segundo a Polícia Civil, foi orquestrado pela facção do RS, que localizou o delator em Santa Catarina. Conforme o Tribunal de Justiça, mesmo nesses processos em que não chegou a ser ouvido judicialmente, Douglas já havia prestado depoimento durante a delação. Por isso, os trâmites seguirão normalmente, mesmo após a morte dele.
Júri
Um dos casos delatados, que ainda tem processo em andamento, é a execução de uma adolescente, de 12 anos, em setembro de 2016. Douglas contou aos policiais que a garota foi decapitada porque havia suspeita de que teria repassado informações a criminosos rivais.
O corpo foi enterrado em um cemitério clandestino usado pelo grupo criminoso no bairro Jardim Protásio Alves.
O criminalista Marcelo Peruchin explica que, no caso de realização de júri, a prova produzida na fase policial poderia ser utilizada. Ou seja, mesmo nos processos em que o delator não chegou a prestar depoimento na instrução, o relato dado aos agentes segue válido.
A diferença, segundo o advogado, é de que nos casos em que foi ouvido nas audiências, com a presença de acusação e defesa, a prova é considerada mais robusta.
– Sempre que a prova foi produzida num primeiro momento em colaboração e depois judicializada, em instrução, perante o juiz e com o contraditório das partes, passa a ter força maior – explica.
O especialista alerta, no entanto, que quando é feito acordo de colaboração premiada, uma das cláusulas prevê que o delator sempre que intimado compareça e preste depoimento. Isso poderá ser contestado pela defesa dos outros réus. O criminalista Aury Lopes Júnior concorda que o depoimento pode ser empregado como prova durante eventual júri, mesmo após a morte do acusado. Por outro lado, faz ressalva em relação ao valor que essa prova poderá ter durante o julgamento.
— Se foram formalizados, há rigor e não há nenhum impedimento de que use a gravação durante o processo ou mesmo no júri. O promotor pode mostrar a gravação ao longo de um julgamento? Pode. A questão é o valor que os jurados darão para isso. Não está sendo prestado na frente dele, não tem contato direto — afirma.
Investigação da execução
Douglas dos Santos foi executado a tiros na noite de domingo, no bairro Pioneiros, em Balneário Camboriú, quando chegava na casa onde estava residindo há cerca de uma semana. Segundo o delegado Ícaro Malveira, de Balneário Camboriú, ainda estão sendo reunidas imagens de câmeras de segurança das proximidades da Rua Justiniano Neves, onde aconteceu o crime. A intenção é tentar identificar pistas sobre a os autores e a rota de fuga dos criminosos. O delator havia desembarcado de um veículo, onde havia pego uma corrida por aplicativo, quando foi alvejado pelos atiradores.
– Está demandando um pouco mais de tempo porque são vários edifícios e estabelecimentos de onde estamos coletando as imagens. Depois vamos analisar as gravações. O motorista mora em outra cidade, por isso ainda não foi ouvido formalmente. Até amanhã (hoje), esperamos ter informações mais concretas – disse o delegado.
O acordo
Douglas dos Santos foi gerente do tráfico de uma facção com berço no bairro Bom Jesus e integrava a célula do grupo no Mario Quintana. Em fevereiro de 2017, procurou a Polícia Civil disposto a falar o que sabia. O delator afirmou em entrevista a ZH que após decidir deixar a facção, descobriu que estava sob risco. Por isso, procurou as autoridades. Segundo a polícia, quando chegou à 5ª Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), relatou que tinha dois familiares desaparecidos. Mais tarde, descobriu que os dois foram assassinados pela facção.
As revelações
Depósito de droga
Para comprovar a veracidade do que falava, em fevereiro de 2017 indicou à polícia onde ficava um depósito usado pela facção em Canoas, próximo à BR-386. Foram encontrados 142 quilos de maconha em uma fábrica de fachada. Ali também ficavam armas e munições.
Execuções e cemitério
O delator indicou o local onde a facção mantinha um cemitério clandestino. A área ao lado da chamada Vila Esqueleto e perto do bairro Mario Quintana era usada como uma espécie de tribunal do grupo criminoso. No local, pessoas eram executadas e até esquartejadas vivas. O MP estima que até cem corpos tenham sido enterrados no local.
Lavagem de dinheiro
Pela delação soube-se, por exemplo, que o grupo criminoso lucrava cerca de R$ 500 mil por semana no bairro Mario Quintana. Por mês, o Judiciário estima que a arrecadação no RS era de R$ 10 milhões a R$ 15 milhões.
Desdobramentos
Isolamento
Com ajuda da delação, pelo menos três líderes da facção foram isolados. Em março de 2017, Minhoca foi transferido para a penitenciária federal de Campo Grande (MS). Em julho do mesmo ano, outros 27 chefes do crime organizado foram encaminhados para unidades de segurança máxima fora do Estado, entre eles Fábio Fogassa, o Alemão Lico, e Marcio Oliveira Chultz, o Alemão Márcio.
Prisões
A delação, segundo a Polícia Civil, resultou em pelo menos 150 prisões preventivas. Em novembro de 2017, a polícia desencadeou a Operação Ruína em Porto Alegre, Viamão, Gravataí e Xangri-lá. Foram cumpridos 10 mandados de busca e seis de prisão contra a facção. Pelo menos R$ 6,4 milhões em imóveis e em contas bancárias, em nome de laranjas, foram bloqueados. A operação investigou cem pessoas suspeitas de participação no esquema.