Em 17 de setembro de 1965, o então Passo do Feijó conquistou status de município e passou a ser chamado Alvorada. O horário no qual os moradores embarcavam nos ônibus em direção a Porto Alegre inspirou o novo nome. Trabalhadores despertavam ao alvorecer para chegar à Capital nas primeiras horas da manhã. Cinco décadas depois, a rotina se mantém, lota paradas na principal avenida e sustenta o título de cidade-dormitório. Mas é outro rótulo que Alvorada tenta deixar no passado: o de município mais violento do Rio Grande do Sul. Embora ainda seja o segundo em número de homicídios no Estado, somente atrás da Capital, em 2019 conseguiu reduzir em 44% esse tipo de crime. Foram 70 assassinatos a menos em comparação com o ano anterior.
Para uma moradora do bairro Maria Regina, a redução representa um pouco mais de sossego. Em 2017, quando Alvorada foi considerada a sexta cidade mais violenta do Brasil, vivia com o coração na mão. Temia que as crianças fossem vítimas de bala perdida a caminho do colégio em meio aos confrontos entre traficantes. A dona de casa também evitava permanecer na rua e dar tempo aos criminosos. Para embarcar no ônibus em segurança, esperava o mais próximo que podia do horário e partia em disparada até alcançar o coletivo.
— Era terrível. Toda hora dava tiroteio. Os assaltos nas paradas de ônibus também diminuíram muito. Precisa se manter assim, mais calmo — diz a mulher, de 54 anos.
Longe dali, nas ruelas do bairro Formoza, uma moradora de 68 anos não é tão otimista. Recorda de casos recentes de homicídios e conta que a filha foi assaltada quando chegava do trabalho. Teve a bolsa levada por uma dupla de motocicleta. A mãe costumava esperar por ela no trajeto entre a casa e a parada. Depois disso, a jovem desistiu de andar de ônibus. A aposentada crê que é tudo culpa do tráfico.
— Ainda se matam muito. Os novos morrem e roubam por conta das drogas — reclama a idosa, na mesma rua onde uma adolescente de 14 anos foi executada em junho, com tiros no rosto.
O comandante da Brigada Militar da cidade, tenente-coronel Jefferson Marques de Melo, reconhece que o tráfico continua sendo principal causador dos assassinatos, embora a polícia tenha conseguido diminuir os casos de tiroteios entre os grupos com inteligência, integração e ações focadas nos bairros.
Fazendo um controle das situações e reduzindo a possibilidade dos confrontos, evitamos as mortes. Nos antecipamos aos passos que eles vão adotar.
JEFFERSON DE MELO
Comandante da BM
— Infelizmente, a causa não conseguimos extinguir. Mas fazendo um controle das situações e reduzindo a possibilidade dos confrontos, evitamos as mortes. Nos antecipamos aos passos que eles vão adotar. Assim, conseguimos várias prisões dos executores e fazemos a redução diretamente. Ainda assim, 99% das execuções são ligadas ao narcotráfico. É o traficante que mata e se mata. A polícia está no meio dessa guerra e tenta evitar a mortandade — descreve.
À frente da Delegacia de Homicídios, o delegado Edimar Machado concorda que a identificação e captura de membros dos grupos é um dos fatores para a diminuição. Ao longo de 2017, agentes chegavam a atender na mesma madrugada cinco locais de crime. Naquele ano, foram 187 pessoas assassinadas e o município alcançou taxa de 90 homicídios para cada 100 mil habitantes. Nos últimos dois anos, foram 304 prisões solicitadas pela equipe. Em 2019, a taxa caiu para 41,4, embora ainda seja mais do que o dobro do RS.
— Trabalhamos bastante para identificar e prender matadores e mandantes. Mesmo aqueles que estão na cadeia, que determinam as mortes, quando se consegue uma nova prisão deles, dá uma segurada. Eles sentem isso. É um trabalho que vem desde 2017. Estamos colhendo os frutos agora — afirma.
A redução também permite que os policiais se dediquem mais tempo em busca de provas para indiciar os envolvidos. Machado acredita ainda que a instalação de câmeras pode ajudar a inibir casos nos quais vítimas de outros locais são deixadas ali. A cidade faz limite com Porto Alegre, Gravataí e Viamão.
— Muitas vezes são casos que não têm relação com a violência da cidade, mas acabam sendo jogados ou mortos aqui. Isso por ter lugares ermos, de mato e sem câmeras — explica.
Em 2019, o município inaugurou central com 357 equipamentos. Alvorada também está entre os 36 selecionados pelo governo do Estado para ter cercamento eletrônico em 2020. Secretário de Segurança e Mobilidade Urbana do município, Sérgio Coutinho também acredita que as câmeras trazem resultados. Ele vê ainda na ação nos bairros, com patrulhas e abordagens, como fator fundamental para inibir as execuções. Destaca as ofensivas desenvolvidas de forma integrada, e operações nas quais guardas municipais passaram a fazer rondas para proteger trabalhadores junto às paradas de ônibus.
— Estruturamos a Guarda Municipal, instalamos câmeras, criamos a patrulha escolar, fizemos ações dentro dos bairros, implantamos a operação para prevenir assaltos a trabalhadores que se deslocam nas primeiras horas. Essas ações deram resultado. Nosso foco principal é continuar atuando nos bairros. Acreditamos que é o caminho certo _ comemora.
Moradores convivem com o tráfico
Embora tenha conseguido reduzir os confrontos entre traficantes, para quem vive em áreas conflagradas a situação ainda é tensa. É o caso de uma auxiliar de cozinha, de 46 anos, que mora há três décadas no bairro Jardim Aparecida. Enquanto divide com outros trabalhadores espaço na parada de ônibus na Avenida Getúlio Vargas, no Centro, diz que vive com medo, embora a situação já tenha sido pior. Avó de sete netos, teme dois riscos que eles correm ao crescerem em área conflagrada: serem atingidos por bala perdida ou seduzidos pelo tráfico. As crianças já precisaram correr para dentro de casa afugentadas por tiros. Preocupa-se não apenas com seus rebentos. As vizinhas têm filhos e também mantêm os olhos despertos.
— Dá muito tiroteio por briga de facção. É um perigo se pega um tiro numa criança. O menorzinho não caminha ainda, mas daqui a pouco começa. Tem de estar sempre de olho. Pegam guris de 10 anos para vender droga na esquina. Com 13 anos estão andando de arma na mão. Há três anos era bem mais, mas ainda morre muita gente — relata, enquanto espicha o pescoço para conferir o ônibus que se aproxima.
Os ânimos acirrados entre traficantes que a avó teme, segundo a polícia, são mais visíveis porque não há delimitação territorial consolidada dos grupos. O tráfico local vinculou-se a duas facções inimigas: uma com berço no bairro Bom Jesus, em Porto Alegre, e outra formada a partir uma coalizão de quadrilhas. No mesmo bairro e, às vezes na mesma rua, há moradores que se filiaram aos rivais.
Pegam guris de 10 anos para vender droga na esquina. Com 13 anos estão andando de arma na mão. Há três anos era bem mais, mas ainda morre muita gente
MORADORA
46 anos
Professora da Escola de Ensino Fundamental Normélio Pereira de Barcelos, que atende 1,1 mil alunos no bairro Umbu, Maristela Acosta, 51 anos, vê adolescentes abandonarem a sala de aula por conta do tráfico. Nos quase 30 anos em que atua na instituição, também sentiu a perda de estudantes executados pelo crime. Em outubro de 2018, um ex-aluno foi morto a tiros a poucos metros da escola.
— Acredito que houve uma pequena mudança. Creio que o trabalho da Guarda Municipal junto à Brigada Militar, no patrulhamento da cidade, tenha contribuído para a redução dos homicídios. Em contrapartida, percebo que o tráfico de drogas, a guerra por disputa de pontos estratégicos, não diminuiu. Percebo cada dia mais jovens fora da escola e a serviço dos "patrões" do tráfico. É uma sensação de impotência — conclui.
Maristela defende a educação como base, mas entende que o desemprego e a desigualdade social permitem que a violência encontre espaço, assim como a falta de políticas públicas voltadas aos adolescentes. O secretário Sérgio Coutinho argumenta que Alvorada tem buscado oferecer cursos para os jovens e outras atividades:
— Temos três centros de capacitação profissional. Em parceria com o governo do Estado, dentro do RS Seguro, estamos buscando iniciativas para dentro das comunidades que contemplem a juventude.
Dados
Foram 87 vítimas de homicídio no ano passado, 70 a menos do que em 2018, quando 157 foram assassinadas. Em média, houve uma morte a cada quatro dias. Em 2018, essa média era de uma a cada dois dias. Crimes patrimoniais como furtos, assaltos e roubos de veículos tiveram redução. Foram 460 assaltos a menos do que em 2018 (de 3.599 para 3.139) e 347 roubos de veículos a menos (de 959 para 612). Ainda assim, são oito assaltos em média por dia. Os latrocínios passaram de um em 2018 para dois no ano passado.
Motivos
- Integração entre polícias
- Foco nas áreas mais violentas
- Redução dos confrontos nos bairros
- Isolamento e indiciamento de líderes de facções
- Prisões de integrantes do crime organizado
- Aumento de efetivo
- Investimento em câmeras