Preocupação número um quando se trata de adolescentes infratores, a reincidência no delito não é mais o único problema a ser analisado e prevenido. Dados exclusivos obtidos por GaúchaZH mostram que internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase) se tornaram alvos de assassinatos e de emboscadas durante o período de restrição de liberdade. Especialistas no tema acreditam que a letalidade está atrelada ao fato de eles terem sido cooptados pelo crime organizado, assim como ocorre no sistema penitenciário, virando objeto de caça na guerra entre facções do tráfico de drogas.
A estatística, requerida via Lei de Acesso à Informação (LAI), aponta que, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2018, foram 29 mortes violentas de socioeducandos da Fase. Duas foram nas dependências da instituição e maioria delas aconteceu quando os jovens estavam em atividades externas autorizadas pela Justiça — foram 27 óbitos nessas ocasiões.
Mais especificamente, ao sair da Fase para realizar as atividades previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 18 internos foram assassinados durante visitas a familiares ou realização de cursos profissionalizantes. Outros nove casos foram em atividades externas e envolveram adolescentes que estavam cometendo atos infracionais fora da unidade, afogamentos e houve até um assassinato durante deslocamento para audiência judicial, com agentes de segurança da escolta sendo rendidos e o socioeducando, de 17 anos, baleado fatalmente.
Não tenho dúvida de que os depoimentos dos jovens estão sendo monitorados pelas organizações criminosas na instrução processual. É uma espécie de reação para não permitir que o jovem saia do sistema do crime. Romper com facções não é simples.
JOÃO BATISTA DA COSTA SARAIVA
Ex-promotor e ex-juiz
— A situação é gravíssima. O dado é muito revelador da 'faccionalização' dos adolescentes. Os que vão para a Fase, em geral, já estão vinculados a facções ou acabam se vinculando dentro do sistema. Criam inimizades e participam dessa disputa de territórios do tráfico — avalia Rodrigo Azevedo, sociólogo e professor da escola de Direito da PUC-RS.
O especialista ressalta que o fato de adolescentes estarem sendo abordados por assassinos nas saídas autorizadas traz outra preocupação.
— O indicativo é de que as facções estão conseguindo monitorar os deslocamentos externos — afirma Azevedo.
A constatação é compartilhada por João Batista da Costa Saraiva, ex-promotor e ex-juiz, atualmente consultor na área de direitos da criança e do adolescente.
— Não tenho dúvida de que os depoimentos dos jovens estão sendo monitorados pelas organizações criminosas na instrução processual. Isso aí (assassinatos de internos) é queima de arquivo, vingança de grupo rival, um conjunto de extorsões. É uma espécie de reação para não permitir que o jovem saia do sistema do crime. Romper com facções não é simples, muitas famílias estão comprometidas também — diz Saraiva.
Sociólogo e autor do livro A Formação de Jovens Violentos, Marcos Rolim avalia que parte dos assassinatos dos adolescentes infratores não é esclarecida, seja pela ausência de comoção social ou pela sobrecarga de trabalho das polícias, e os autores não são punidos. Isso permite que matadores sigam a solta, atuando em uma guerra de facções capaz de desenvolver ambiente de insegurança para toda a sociedade.
— O sistema alimenta a violência, com ciclos de vingança que não terminam nunca. Esses matadores que ficam a solta não matam só infratores, mas as pessoas que estão na rua, próximas de bandidos, também ficam sob risco. Execuções em locais públicos atingem inocentes — alerta Rolim.
Diretor da Divisão da Criança e do Adolescente da Polícia Civil, o delegado Thiago Albeche destaca que os homicídios praticados por organizações criminosas estão entre os casos mais complexos de serem solucionados.
— As dificuldades são enormes por causa do poder intimidatório das facções. Toda a morte envolve uma vida humana e uma investigação de homicídio não é pautada exclusivamente pela repercussão do caso. A vida tem o mesmo valor para todos, mas é muito complicado apurar porque as testemunhas temem represálias e não colaboram — alega Albeche.
Para os especialistas, há necessidade "urgente" de rever procedimentos para reduzir a vulnerabilidade de adolescentes que ingressam na Fase. Eles sugerem aprimorar o sistema de proteção às informações sobre as saídas autorizadas para atividades externas.
— O grupo rival não deveria ter facilidade para obter essa informação (sobre saída). É o caso de pensar em medidas protetivas dos jovens e também dos agentes que atuam em escoltas — destaca Rolim.
Os entrevistados avaliam que o Programa de Oportunidades e Direitos (POD), criado no governo Yeda Crusius e mantido pelas gestões posteriores, tem reduzido a reinternação de adolescentes. Dentre os que aceitam aderir, pouco mais de 91% não voltam a cumprir medida restritiva na Fase, segundo estatísticas recentes. Aliar o POD, que oferece bolsa e capacitação profissional, com ações que quebrem o vínculo dos adolescentes com as facções, estimularia a proteção e a ressocialização.
As dificuldades são enormes por causa do poder intimidatório das facções. Toda a morte envolve uma vida e uma investigação de homicídio não é pautada exclusivamente pela repercussão do caso. A vida tem o mesmo valor para todos.
THIAGO ALBECHE
Delegado e diretor da Divisão da Criança e do Adolescente da Polícia Civil
— O ideal é romper com as relações criminais. O jovem precisaria ter sua vida redirecionada para outro lugar, outra cidade, mas isso envolve custo e trabalho — destaca Saraiva.
Rolim exemplifica a diretriz ao dizer que, "se o jovem voltar para o seu lugar de origem, volta para a guerra, para matar e morrer".
— Mas, se colocar ele, hipoteticamente, lá em Uruguaiana, não vai ter nenhum 'contra' esperando. Se somar o POD com a transferência de cidade, aumenta a chance de tirá-lo da dinâmica criminal — explica.
Para Saraiva, o Brasil precisa discutir, também como forma de quebrar os vínculos dos infratores com o crime organizado, propostas de aumento do tempo de internação de menores. Hoje são, no máximo, três anos. Ele destaca que outros países latinos, todos com maioridade penal em 18 anos, preveem privações de liberdade maiores: cinco anos no Uruguai e na Colômbia e até 10 anos no Chile.
No sistema prisional adulto, assassinatos são rotina
Execuções de adolescentes internos da Fase em saídas autorizadas, crimes vinculados a acertos de contas e à disputa entre facções do tráfico de drogas, repetem o ciclo sanguinário do sistema prisional adulto, quando apenados migram para o semiaberto. É o momento em que podem ser abordados mais facilmente por desafetos.
— Os próprios presos demonstram receio. A saída do fechado, por conta das facções, é muito complicada. Quando estão próximos da progressão, a preocupação deles é de não serem colocados numa casa dominada por facção contrária. Já tivemos caso de invasão de um semiaberto, o Patronato Lima Drummond, em Porto Alegre, para a execução de um homem — relata Paulo Irion, juiz da 1ª Vara de Execuções Criminais da Capital (VEC).
O magistrado ressalta que a VEC tem 400 vagas de semiaberto à disposição, o que é considerado insuficiente. Em consequência, diz Irion, muitos dos presos acabam monitorados apenas pela tornozeleira eletrônica.
— Aí o indivíduo vai para a rua, no vale-tudo. Com a tornozeleira, ele não está mais sob a custódia do Estado, tem de se cuidar por conta própria. Já aconteceram execuções na fila para colocar a tornozeleira — descreve o juiz.
Para o magistrado, o ciclo de assassinatos, tanto de adultos quanto de adolescente 'faccionalizados', é resultado da guerra pelo comando do comércio de drogas ilícitas.
— A grande maioria da massa carcerária vem da lei de drogas. Talvez seja hora de repensar a atual política de combate às drogas — diz.
O delegado Thiago Albeche, da Polícia Civil, entende que parte da solução é prover maior presença do Estado em áreas conflagradas para garantir segurança, educação e assistência social.
— A sociedade também precisa se conscientizar de que tudo isso é movido a lucro. Quando há procura e venda de drogas, as facções se fortalecem para comprar mais drogas, armas e impor sua força.