Nos últimos cinco anos, entre 2014 e 2018, 29 adolescentes internos da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase) foram vítimas de mortes violentas. Do total, 18 foram assassinados durante saídas autorizadas pelo juízo para visitar familiares ou realizar cursos. Um outro caso foi de execução de um adolescente enquanto ele se deslocava para uma audiência judicial sob escolta, o que não impediu quadrilheiros de fazerem a abordagem fatal a tiros.
Autoridades e especialistas nos temas da infância e juventude são unânimes ao apontar que a letalidade contra adolescentes infratores é reflexo da guerra entre facções do tráfico, que desde cedo estão cooptando jovens, os tornando alvos de inimigos ou mesmo vítimas de queima de arquivo. Confira abaixo a entrevista com o juiz Charles Maciel Bittencourt, do 3º Juizado da Infância e Juventude da Capital, responsável pela execução de medidas socioeducativas dos adolescentes infratores.
Como avalia a ocorrência de 29 mortes de internos em cinco anos, sendo 18 assassinados em visitas à família ou realização de cursos?
São números significativos e que retratam um momento de grande reflexão. A violência contra os jovens vulneráveis aumentou assustadoramente nos últimos tempos. Em 1990, tínhamos cerca de 5 mil mortes violentas de crianças e jovens de zero a 19 anos. Em 2015, foram quase 11 mil. Mais que dobrou. São dados da Fundação Abrinq.
O perfil do jovem que está indo a óbito é, sem dúvida, de vulnerabilidade social. Predomina a população pobre, negra, que vive sem condições econômicas, sem acesso a serviços básicos de saúde e educação, com escolaridade baixíssima, muitos são analfabetos ou semianalfabetos. E muitas vezes com grande número de irmãos, com familiares ligados ao crime ou com dependência química. Hoje vivenciamos um problema de divisão de territórios e as facções utilizam os jovens para praticar atos infracionais. Em razão disso, eles acabam sendo depois descartados ou vítimas de atritos com os 'contras'.
Muitos jovens não conseguem circular duas quadras além de suas residências ou no bairro vizinho. Outras vezes, pagam por questões familiares: queriam se vingar de um parente dele, mas, como não conseguiram, mataram ele.
Esses jovens assassinados estavam cooptados pelas facções do tráfico?
Genericamente falando, eu imagino que eles tiveram no passado alguma vinculação que resultou nisso. Eles ou alguém da família. É como se fosse uma represália. E, às vezes, acabam perseguidos por auxiliarem investigações quando são apreendidos. Nestes casos, é quase uma queima de arquivo.
Como são as saídas autorizadas da Fase?
Existe a medida socioeducativa de internação sem atividade externa (ISPAE) e com atividade externa (ICPAE). Depende do ato infracional cometido. E, às vezes, o jovem pode progredir para o direito de ter atividade externa. Hoje, em todo o Estado, temos 222 jovens cumprindo o ICPAE, com atividades externas. Eles têm direito a fazer visitas graduais, desde que tenham bom comportamento, estejam indo bem na escola, não tenha fato grave onde cumpre a medida. No primeiro mês, é uma visita. Até que ele evolui ao direito de fazer a visita todo o final de semana.
Em regra, a família tem de buscá-lo na unidade. E depois o leva de volta. Sair sozinho só em casos excepcionais ou se for maior de 18 anos. O jovem assume o compromisso de ficar na casa com a família. Para sair, só se for com algum responsável. Se for pego sozinho na rua, perde a visita e pode regredir para o regime sem atividade externa.
O senhor acredita que os inimigos desses jovens contem com informações privilegiadas sobre os períodos de saídas autorizadas deles, passando a organizar emboscadas?
Não creio que eles estejam monitorando isso pela via judicial. Nunca tive relato disso, nunca chegou reclamação de familiar ou da Defensoria Pública sobre informação privilegiada de inimigos. Até pelo contrário, quando a Fase tomou conhecimento de situações de risco para jovens, ela já procurou protelar as visitas. Quando o jovem vai ser desligado da Fase em período de semiliberdade, e sabemos que existe algum risco, propomos a aplicação do programa de proteção à criança e ao adolescente ameaçado de morte. Tudo depende do perfil do jovem. Se ele utiliza rede social, acaba se expondo, mostra que está com a família, e a informação rapidamente circula. Hoje é tudo muito rápido.
O que fazer para diminuir o risco de vida desses jovens?
Aumentar e aprimorar o POD (Programa de Oportunidades e Direitos). Até 2017, tínhamos 180 vagas no POD. Em 2018, foi ampliado pra 1,1 mil vagas para todo o Estado. O jovem recebe oportunidade de fazer cursos e ele tem que estar vinculado à escola para receber o auxílio econômico. Uma pesquisa recente indicou que, dentre os jovens que aderiram ao POD, 8% vieram a óbito no futuro. Dentre os que não aderiram, esse taxa foi de 17%, mais do que o dobro.