Culpa e medo são pontos em comum nos relatos de mais duas gaúchas que contam ter sido vítimas de abusos de João Teixeira de Faria, 76 anos, o João de Deus. O Ministério Público de Goiás pediu a prisão preventiva do médium, após série de mulheres alegarem ter sido vítimas durante atendimentos. Ele nega as acusações. Nesta quinta-feira (13), será divulgado novo balanço com número de vítimas que procuraram a Promotoria no Rio Grande do Sul.
Naturais de Porto Alegre, as duas mulheres ouvidas por GaúchaZH contam que os abusos aconteceram entre 2009 e 2010. Outras três gaúchas, que falaram com a reportagem na terça-feira (11), tinham relatos parecidos. Assim como as demais, as duas viajaram até Abadiânia, no interior goiano, onde o médium mantém a Casa Dom Inácio de Loyola. Espécie de hospital espiritual, o local atrai multidões em busca de cura e meditação.
Há nove anos, uma psicóloga gaúcha, que atualmente mora em Brasília, esteve no município acompanhada de dois amigos. Um deles, australiano, buscava cura para dor crônica nas costas. Os três viajaram até o município e, em jejum e vestindo roupas brancas, juntaram-se às longas filas na casa espírita.
— É um lugar que impressiona. Tem gente do mundo inteiro. As pessoas parecem que têm olhar de hipnose. Mesmo uma pessoa cética começa a se questionar. Tenho miopia muito alta. Não fui com expectativa de cura, mas pensei "vai que ele fala algo" — detalha a mulher, hoje com 38 anos.
João de Deus teria apontado para a psicóloga, que estava na fila. "Você tem uma energia muito forte. Vou fazer um atendimento especial", teria dito. Perto da sala onde aconteciam essas assistências, mulheres formavam fila aguardando serem chamadas.
— A salinha dele é meio escura, com álbuns de fotografias. Ele começa a falar das previsões que fez, de quem esteve ali. Tenta te impressionar pela notoriedade — recorda.
De repente, começou a passar a mão na minha cintura e no meu quadril. Foi subindo a mão. Virei e disse: "fiquei tonta". Ele me levou para a salinha, sentou numa poltrona. Parece hipnose. Me disse para ajoelhar na frente dele. Eu fiz. Fico furiosa de lembrar disso.
PSICÓLOGA
38 anos
Durante o atendimento, o médium teria pedido que ela virasse de costas para "fazer uma limpeza e tirar a energia ruim". A psicóloga conta que foi levada para outro cômodo.
— De repente, começou a passar a mão na minha cintura e no meu quadril. Foi subindo a mão. Virei e disse: "fiquei tonta". Ele me levou para a salinha, sentou numa poltrona. Parece hipnose. Me disse para ajoelhar na frente dele. Eu fiz. Fico furiosa de lembrar disso. Disse que o meu chacra do peito estava truncado. Tocou entre meus seios e começou a massagear. Me afastei. Disse que estava tonta — relata.
A psicóloga diz que pediu para a amiga entrar na sala, mas o médium teria recusado. Com insistência, teria conseguido que a outra mulher a acompanhasse.
— Pensei que ele ia parar. Mas ele me olhava nos olhos e começava a puxar minha mão em direção ao pênis dele. Quando vi o que ele estava querendo, simulei que passei mal. Ele dizia: "A gente tem que continuar. Os teus chacras vão ficar abertos para espíritos ruins". Como uma ameaça. Imagina se fosse alguém que acreditasse naquilo — narra.
"Quando ouvi esses relatos, percebi que não estou sozinha"
Outra jovem conta que frequentou os atendimentos de João de Deus entre 2010 e 2012. Aos 19 anos, acompanhou a mãe até uma casa no limite entre Três Coroas e Canela, na Serra, onde o médium recebia multidões. Cerca de um mês depois, viajou até Abadiânia. Mãe e filha retornavam ao município goiano a cada dois meses. A jovem diz que foi abusada três vezes.
— Quando entrei na sala dele, me pediu para ficar de costas. Começou a passar a mão no meu corpo. Dizia que estava me passando energia. Dessa vez, não vi maldade. Mas foi agravando. Na segunda, me fez colocar a mão no pênis dele. Na terceira, tentei sair correndo, chorando. Era um misto de culpa, nojo, medo e a sensação de que podia estar enganada — recorda.
A mulher diz que não teve coragem de contar a ninguém sobre os abusos. Nem mesmo para a mãe, que seguia em tratamento com o médium.
— Quando a mãe decidiu ir de novo (para Abadiânia) briguei com ela, chorei, disse que aquilo não ajudava em nada. Ela não entendeu, me chamou de ingrata. O mesmo que ele me disse quando tentei fugir. Naquele dia, vi que não adiantava contar. Nem minha mãe ia acreditar em mim. Chorei muitas noites no meu quarto sozinha. Agora, quando ouvi esses relatos, percebi que não estou sozinha. Muitas sofreram como eu sofri — afirma.
Universitária, 27 anos, de Porto Alegre
Abusos teriam ocorrido em 2010, em Abadiânia (Go)
"Havia um colchão num corredor, onde ele me mandava deitar. Em uma das visitas, pediu para que tocasse o pênis dele. Repetidas vezes. Agora fico lembrando, tinha colocado uma pedra nisso. As imagens voltam na minha cabeça. (Chora). Tento lidar com a culpa de ter permitido aquilo. Mas eu acreditava nele, o que dizia era lei. Todo mundo acreditava.
Na última vez, tentei fugir. Mas ele tinha chaveado a porta. Dizia que eu deveria ficar feliz com aquilo, que era uma forma de cura. "É a forma de te curar". Dessa vez, ele tinha me feito fazer sexo oral nele. Arrastei o trauma por muito tempo. Me sentia culpada. Não queria que ninguém tocasse em mim. Até hoje, não tinha falado para ninguém sobre. Consegue imaginar o que é guardar isso seis anos?".
Psicóloga, 38 anos, de Porto Alegre, moradora de Brasília
Abusos em 2009, em Abadiânia (GO)
"Entendo perfeitamente quem foi abusada sexualmente por ele. No meu ceticismo, consegui me livrar. Ele disse: "tu tem que ficar aqui, é especial. Tu vai conquistar o que quiser". Tenta te empoderar. Disse que ia voltar mais tarde. Ele disse que eu nem precisava ficar na fila.
Quando me dei conta, disse que ia voltar lá e confrontar ele. Mas minha amiga me convenceu a não fazer. Tinha uma multidão idolatrando ele. Eu seria a maluca. Na hora pensei "isso deve ser serial". Tinha muitas meninas bonitas na fila.
Você se sente uma idiota, uma imbecil. Como acreditou na lábia dele? Durante muito tempo, pensei isso. Sou uma pessoa formada, instruída, e caí nessa. Agora tenho falado para o maior número de pessoas possível. Abadiânia vive em torno desse cara. Ele atrai as pessoas. Depois disso nunca mais voltei lá. Falei mal dele a vida inteira."