Conhecido como o tipo de tumor que mais mata mulheres no Brasil, o câncer de mama segue representando um desafio para a medicina. A estimativa atual é de que o número de novos diagnósticos a cada ano corresponda a um Maracanã praticamente lotado – o estádio é o maior do país, com capacidade para 78,8 mil pessoas. Para aumentar as chances de cura e a qualidade de vida dessas pacientes, a oncologia tem apostado em novas tecnologias que ajudam a aprimorar o diagnóstico e o tratamento da doença.
Entre os principais avanços, estão o uso de inteligência artificial (IA) no rastreamento de tumores, a identificação mais precisa dos subtipos da doença, o surgimento de novas classes de medicamentos e terapias – como imunoterapia e hormonioterapia – e o aperfeiçoamento de técnicas de radioterapia e de cirurgias oncológicas.
– Nós temos um arsenal de tratamento muito maior hoje do que há 10 anos. E isso muda a questão da sobrevida, porque temos mais opções, linhas de tratamento que nos fazem ter a oportunidade de prolongar a vida dessas pessoas. Impulsionamos e melhoramos muito o tratamento e a qualidade de vida das pacientes – salienta Emanuelle Narciso, chefe do Serviço de Mastologia da Unidade 3 do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
Os especialistas destacam, contudo, que nem todos os progressos estão amplamente disponíveis no Brasil. A imunoterapia, por exemplo, é uma realidade na rede privada, mas ainda não foi totalmente incorporada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Já o uso da inteligência artificial, bastante difundido em outros países, ainda é algo incipiente até mesmo para as pacientes de instituições particulares.
De acordo com a estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca), são esperados 73.610 novos casos de câncer de mama por ano entre 2023 e 2025 no Brasil. Isso significa que o risco estimado é de 66,54 diagnósticos a cada 100 mil mulheres, conforme Emanuelle.
– É bem alto. E o câncer de mama no Brasil é a principal causa de morte por câncer em mulheres. O último dado de mortalidade que temos, que é de 2020, aponta 17.825 óbitos.
No Rio Grande do Sul, o índice de risco estimado fica em 36,6 casos para cada 100 mil mulheres. Diante desses dados, especialistas, instituições e órgãos de saúde somam esforços para conscientizar a população em campanhas como o Outubro Rosa e avançar em pesquisas sobre novos métodos de diagnóstico, medicamentos e terapias.
Antonio Dal Pizzol, oncologista clínico e diretor-médico adjunto do Hospital Santa Rita, que integra a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, ressalta que os avanços em relação ao manejo do câncer têm múltiplas dimensões:
Às vezes, quando falamos de cura do câncer, as pessoas imaginam um comprimido mágico. Isso está no ideário popular, como se fosse uma descoberta única. Mas, na verdade, é um grupo de descobertas. É um problema que vai ser resolvido ou mitigado por várias frentes.
ANTONIO DAL PIZZOL
Oncologista do Hospital Santa Rita
Contribuições da IA
Entre os avanços, alguns estão concentrados nas tecnologias de imagem. Na visão do oncologista, é nessa área que a inteligência artificial poderá fazer diferença primeiro, tornando o rastreamento da doença cada vez mais inteligente.
– Nós ainda não temos a total incorporação disso na prática. Hoje, ainda dependemos do olhar dos nossos radiologistas para analisar as imagens, mas talvez em um futuro próximo tenhamos ao menos o auxílio da inteligência artificial na análise dessas imagens para pegar sutilezas que poderiam escapar ao olho humano – projeta Dal Pizzol.
Na Santa Casa, conforme o especialista, há iniciativas de desenvolvimento e aprimoramento desses modelos, nas quais as tecnologias estão em fase de estruturação e maturação. Emanuelle, do Inca, reforça que o uso da inteligência artificial ainda não é uma realidade no SUS e, no serviço privado, é considerado algo incipiente e complementar ao trabalho dos especialistas que fazem o diagnóstico.
– Já é uma realidade no Brasil, mas ainda muito devagar. Por enquanto, os equipamentos que mais utilizam a IA por aqui são a mamografia e o ultrassom. Mas nos dois exames a tecnologia só faz uma menção de que julga ter algo diferente, ainda é o médico que vai rever o exame e dizer se de fato aquilo é ou não uma lesão – esclarece.
A especialista considera que a implementação da IA será muito boa para algumas áreas, como na patologia. Para exemplificar, cita a imuno-histoquímica, um exame complementar de diagnóstico, que depende muito da observação do profissional que está avaliando:
– Quando tivermos um algoritmo para avaliar essas imuno-histoquímicas, uniformizará o processo. Acho que o que vai trazer de incremento é isso: serão laudos mais uniformes, porque vai ser sempre a mesma leitura, enquanto com o ser o humano vai variar de acordo com o conhecimento e experiência da pessoa, e a técnica que foi usada. Então, para algumas áreas vai ser um grande avanço.
A mastologista Maira Caleffi, que é chefe do Núcleo Mama do Hospital Moinhos de Vento e presidente voluntária da Federação Brasileira de Instituições Filantrópicas de Apoio à Saúde da Mama (Femama), acrescenta que a IA pode ser muito útil para outras áreas que trabalham com imagens e são capazes de utilizar banco de dados, como a radiologia.
Conforme a especialista, no Moinhos já existe uma aceleração da ressonância magnética por meio da inteligência artificial. O exame é importante para o diagnóstico da doença, mas normalmente demora entre uma hora e uma hora e meia. Com a IA, o tempo reduziu para 40 minutos, afirma Maira:
Com a IA, o exame consegue ser muito mais rápido e mais preciso. Como a ressonância gera muitas imagens, a IA faz um apanhado dessas imagens e ajuda o radiologista a interpretá-las. E não precisamos de tanto tempo para fazer o exame, o que também aumenta a viabilidade dos aparelhos.
MAIRA CALEFFI
Chefe do Núcleo Mama do HMV
Novas terapias
Para o oncologista Dal Pizzol, outro avanço está antes do início efetivo do tratamento. Trata-se da medicina de precisão, que analisa os tumores de forma mais aprofundada. Com ela, a biópsia atualmente consegue identificar os erros genéticos e moleculares para ajudar a entender melhor os subtipos de câncer e, consequentemente, o tratamento mais adequado.
– Cada câncer é único. E quanto mais entendemos onde é que está o erro molecular ou genético que fez essas células se tornarem malignas, melhor será a escolha desse tratamento. E existem vários tratamentos novos e várias inovações acontecendo do ponto de vista de medicações. Um bom exemplo é a imunoterapia – aponta.
O tratamento de imunoterapia envolve uma nova classe de medicamentos injetáveis, que buscam modificar o sistema imunológico da paciente para que ele possa atacar o câncer, destruindo as células malignas, explica o especialista. Entretanto, nem todas as mulheres e nem todos os tumores respondem a essa estratégia.
Dal Pizzol explica que a imunoterapia é diferente da quimioterapia, mas destaca que os novos tratamentos podem complementar os antigos. Dessa forma, é comum que pacientes com câncer de mama façam um tratamento combinado com as duas terapias:
– A imunoterapia já é uma realidade na rede privada, mas para um grupo selecionado de pacientes. O acesso na rede pública ainda tem vários desafios, porque não são medicações incorporadas de uma forma integral ou rotineira no SUS.
Segundo Emanuelle, a imunoterapia só é disponibilizada para pacientes da rede pública no decorrer de estudos clínicos realizados no Brasil. No Exterior, sobretudo nos EUA, o método já é uma realidade no tratamento de diversos tipos de tumores, não só para o câncer de mama.
Por isso, a especialista considera que o avanço poderá ser “uma das próximas aquisições definitivas, principalmente para o SUS”.
Entretanto, há outros métodos que já estão em uma fase mais avançada de incorporação no SUS, como os aperfeiçoamentos da hormonioterapia, acrescenta o oncologista clínico. Conforme o especialista, uma proporção importante dos tumores de mama é sensível a drogas que agem na questão hormonal e existe uma nova classe de medicamentos que melhora as terapias e está próxima de entrar na rotina de tratamentos da rede pública.
– Nos últimos tempos, tivemos a chegada de medicações que também atuam em um ponto muito importante do ciclo de vida dessas células, fazendo o benefício dessas terapias hormonais se expandirem muito. Essas drogas se chamam inibidores CDK-4/6 e são para um perfil de mulheres ainda mais amplo de doença avançada. São drogas de custo elevado, mas está sendo feito todo um esforço para viabilização de acesso tanto pelo governo quanto pela indústria – afirma Dal Pizzol.
Outros avanços
A chefe do Serviço de Mastologia do Inca, Emanuelle Narciso, também aponta que está em elaboração um novo protocolo terapêutico para acompanhamento do câncer de mama, no qual algumas drogas que antes não eram previstas passarão a ser contempladas formalmente. Nessa lista, estão alguns quimioterápicos que não eram muito utilizados no SUS, como platina para triplo negativo.
Entre os avanços que já estão mais estabelecidos na rede pública, Emanuelle cita as terapias-alvo para tumores com HER-2 superexpresso – mais agressivo e com maior risco – que utilizam medicamentos como trastuzumabe e pertuzumabe, e os inibidores de ciclina, que são indicados para tumores do tipo luminal.
– A terapia-alvo recebe esse nome porque é direcionada a uma estrutura da célula, que é o receptor HER-2 e que é superexpressa nesse tipo de tumor. Então, a terapia bloqueia isso, por isso que é alvo, ela agride só quem tem aquilo. A quimioterapia não é direcionada assim – explica.
Para além dos medicamentos, Dal Pizzol ressalta que há avanços nos equipamentos de radioterapia, que têm tornado essa etapa menos tóxica para as pacientes. Isso porque, hoje, é possível ter maior precisão do desenho da área a ser tratada, o que faz com que as mulheres tenham um tempo menor de tratamento e, consequentemente, uma toxicidade menor nos órgãos adjacentes, como coração, pulmão e pele.
Os equipamentos utilizados na etapa do diagnóstico também estão mais desenvolvidos, segundo os especialistas. Um exemplo disso é uma tecnologia que passou a ser usada pelo Hospital Moinhos de Vento neste mês para aumentar a segurança e a precisão de exames diagnósticos.
Chamado de Faxitron, o equipamento é indicado para a retirada de lesões suspeitas vistas por mamografia. Maira Caleffi comenta que o uso do aparelho melhora a qualidade das amostras, oferecendo um resultado mais fidedigno, e certifica o cirurgião de que a porção retirada está adequada para os testes posteriores:
– No momento em que olhamos no aparelho essas lesões suspeitas, como microcalcificações, conseguimos retirá-las, visualizá-las através do equipamento (uma espécie de mamógrafo dentro da sala) e colocá-las diretamente em solução de formalina 10%. Nessa fase pré-analítica, o tempo é uma questão sensível, que pode impactar nos resultados de testes realizados em células tumorais.
Cirurgias mais inteligentes
As técnicas cirúrgicas também evoluíram, possibilitando procedimentos menos invasivos. Segundo o oncologista clínico, isso também está relacionado à medicina de precisão, que ajuda na escolha da agressividade da cirurgia – ou seja, quanto de mama terá que ser retirada.
– Hoje, o cirurgião não vê somente o tamanho e onde está o nódulo, ele vai para a cirurgia municiado com os conhecimentos genéticos e moleculares, para que possa fazer procedimentos menos agressivos. É uma cirurgia mais inteligente. Também é um avanço importante: as mulheres estão saindo com mutilações menores, porque entendemos melhor que tipo de tumor ela tem – reforça.
Rodrigo Leite, cirurgião oncológico membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e titular do Departamento de Mastologia e Reconstrução do Hospital de Amor de Barretos, explica que a cirurgia pode ocorrer antes ou depois de outros tratamentos, como quimioterapia e imunoterapia. O procedimento pode ser curativo ou para melhorar a qualidade de vida de mulheres que não têm chance de cura.
O especialista considera importante destacar que nem todas as pacientes precisarão passar por uma mastectomia. A escolha do procedimento é individualizada e depende muito da extensão e das características da doença. Leite ressalta que a cirurgia conservadora, chamada de quadrantectomia, também é uma forma de tratamento segura, quando possível e corretamente indicada.
Já a reconstrução da mama pode ser feita juntamente à retirada do tumor ou depois. Emanuelle acrescenta que, no SUS, já é disponibilizada a reconstrução imediata, tanto com expansor quanto com implante.
– Estamos diminuindo cada vez mais o porte cirúrgico da paciente, principalmente com as técnicas de linfonodo sentinela, e tentando diminuir a morbidade do chamado esvaziamento da axila. E é importante falar que o diagnóstico precoce ajuda a diminuir o porte cirúrgico e a mutilação dessa paciente – frisa o cirurgião oncológico, acrescentando que a cobertura de mamografia é baixa no Brasil e que muitos diagnósticos de câncer de mama ainda ocorrem em estágio mais avançado.