Rozemara Jung, 38 anos, coleciona notas 10 na graduação em Serviço Social que iniciou no ano passado. A dedicação às provas e a atenção em cada aula só não são maiores que o empenho que a caxiense dispensa ao tratamento que iniciou dois anos antes, contra o câncer de mama metastático.
— Minha vida era do tamanho de uma bola de vôlei e eu senti ela ficar do tamanho de uma bola de pingue-pongue. Porque eu não sabia se teria horas, dias, meses ou anos de vida — conta a operadora de sistemas da Visate, atualmente afastada por licença médica.
A situação descrita acima ocorreu quando Roze, como é conhecida, escutou do médico que a doença a acompanharia até o fim da vida, e que o máximo a fazer seria tentar controlá-la. A partir daquele dia e daquele diagnóstico, que Roze ouviu acompanhada do filho, então com 14 anos, ela passou a receber os cuidados da equipe de cuidados paliativos do Hospital do Círculo, serviço que presta atendimento a pessoas com doenças graves e incuráveis, e que desde o início de agosto passou a ser um setor específico no hospital, o primeiro em Caxias.
Além de pacientes oncológicos, como Rozemara, a Medicina Paliativa — que desde 2011 é reconhecida pela Associação Brasileira de Medicina (AMB) como área de atuação — pode servir também a pessoas com doenças neurológicas, insuficiência cardíaca e pacientes pneumológicos, entre outras comorbidades. É uma especialidade que tem como característica a integração de profissionais de diferentes áreas, a fim de dar ao paciente que está com a vida ameaçada o protagonismo de escolher como irá se dar o encontro com a própria finitude.
— Quando a gente fala em cuidado paliativo, muita gente ainda associa a um processo de final de vida, quando se trata, na verdade, do cuidado centrado no conforto do paciente e da família, englobando a parte física, social e espiritual. Sai do âmbito daquela medicina paternalista, em que o médico diz o que o paciente vai fazer, para explicar o que é a doença, como ela vai evoluir, quais são as opções terapêuticas, os efeitos, e assim traz o paciente junto para a tomada de decisão — explica a médica intensivista e pós-graduada em Cuidados Paliativos, Dra. Fernanda Francieli da Silva.
"O CONCEITO MAIS BONITO DA MEDICINA"
Fernanda foi a responsável por elaborar o protocolo de cuidados paliativos para o setor especializado no Hospital do Círculo, onde atua junto a uma equipe formada por enfermeira, psicóloga, fonoaudióloga, fisioterapeuta, farmacêutico e assistente social.
— Sempre digo que é o conceito mais bonito da medicina. Enquanto cada especialista cuida de uma parte do corpo, o paliativista cuida da pessoa. Dentro da UTI eu acabava identificando muitos pacientes em sofrimento emocional, que poderiam não estar lá. Talvez pudessem estar com o seu sintoma manejado próximo à família, mas estavam privados desse cuidado, recebendo um suporte mecânico, sendo que a gente já sabia qual seria o desfecho. Por que não deixá-lo passar seus últimos momentos próximo à família? Só por uma obsessão da medicina de só curar e manter vivo, sem levar em conta a qualidade daquele restante de vida? — questiona a paliativista.
Para Rozemara Jung, a vida ganhou novo sentido desde o diagnóstico fatídico. Após passar por um turbilhão de emoções, o apoio da família e da equipe paliativista a ajudou a ressignificar a relação com a doença e a se tornar cada vez mais disposta a dar o seu melhor, para a família, para o tratamento e para os estudos:
— Quem me vê hoje não imagina que já cheguei ao ponto de dizer que preferia morrer a repetir o tratamento, caso o tumor voltasse. Aprendi a aceitar a doença e não quero passar o resto da vida como diz o Raul Seixas, "no trono de um apartamento, esperando a morte chegar" (trecho da música Ouro de Tolo). Vou lutar para viver a melhor vida que for possível pra mim, até o final. Tenho a esperança de que vou viver para exercer minha profissão.
Antes da partida, brinde e bolo
Uma semana antes de falecer, vítima das complicações de uma doença cardíaca, em outubro de 2020, Angelina Cervelin pôde comemorar os seus 80 anos com direito a bolo e decoração especial. A festa foi realizada no quarto em que a idosa estava internada no Hospital do Círculo, sob os cuidados da equipe paliativista. Com a família reunida ao redor da cama, foi feito um brinde com vinho tinto, bebida preferida da bento-gonçalvense. A própria Angelina bebeu uma taça, a qual saboreou com gosto, como recorda a afilhada Letícia Bertoldi:
— Minha madrinha trabalhou como enfermeira até se aposentar, sempre ajudou os mais necessitados e se devotou à causa animal. Viveu uma vida muito bonita. Quando ela adoeceu e o quadro evoluiu até o ponto de não ter nada a ser feito além de amenizar a dor com remédios, a equipe do hospital teve muita sensibilidade e foi muito acolhedora, permitindo até que ela realizasse o último desejo, que era beber uma taça de vinho.
Por estar lúcida até o final da vida, Angelina pôde escolher até onde iria o seu tratamento e todos os passos foram respeitados conforme a sua vontade. Isso porque o tratamento com cuidados paliativos também se ancora nas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), documento aprovado pelo Conselho Federal de Medicina em 2012, que estabelece que qualquer pessoa pode deixar registrada em cartório as suas preferências diante do fim iminente por doença grave, degenerativa e sem possibilidade de cura.
— É um procedimento que nem todo mundo conhece, mas que o cuidado paliativo evidencia como uma forma de garantir que o paciente tenha as suas vontades respeitadas: se ele quer ser intubado ou não, se quer ficar em UTI ou só no quarto, etc. Vale tanto para delimitações terapêuticas quanto para outros desejos, inclusive de velório. Todas as questões que ele não poderia responder por estar inconsciente são cumpridas por já estarem previstas — explica Léa Cristina Montemezzo, enfermeira responsável pelo serviço de cuidados paliativos do Hospital do Círculo.
A enfermeira acrescenta que existe a orientação para que o documento fique de posse de alguém de fora do âmbito familiar, desde que seja uma pessoa de confiança. Quando a pessoa não tem esse documento, pode estar sujeita a situações que não irão ajudar no tratamento.
— Se o paciente não tem a DAV, corre o risco de ser submetido a procedimentos invasivos que não vão trazer benefício, que não vão modificar o curso da doença, e só vão gerar mais sofrimento — aponta.
Despedida com direito a Abba
Em março do ano passado, o Almanaque contou a história de Carlos Fernandes Sobrinho, morador de Caxias do Sul que sofria de esclerose lateral amiotrófica, doença degenerativa que ataca o sistema nervoso e compromete funções físicas. Já com o diagnóstico, Carlos reuniu o noticiário do dia em que nasceu sua neta, Rafaela, então com três anos, e compilou as matérias de jornal num documento encadernado, para deixar de legado um estímulo ao gosto pela leitura, assim como já tinha feito quando nasceu o neto Thiago, então com nove anos.
Carlos faleceu em outubro do ano passado, aos 70 anos. A filha, Jamile Fernandes, destaca como fundamental o cuidado paliativo que o pai recebeu desde o diagnóstico da doença incurável, e que acabou por vitimá-lo. Além de sessões com psicóloga, fisioterapeuta e fonoaudióloga, uma médica geriatra paliativista deu ao paciente o suporte para que seus últimos dias fossem vividos com dignidade e com a certeza de que suas vontades finais seriam respeitadas.
— Hoje não consigo imaginar um paciente em estado terminal sem cuidado paliativo para lidar com a ansiedade e com o terror de uma doença que não preserva nada além do intelecto. Meu pai desejou não estender a vida dele mais do que o corpo conseguia suportar, e foi uma decisão muito sábia e muito corajosa, ao meu ver. E só o profissional paliativo poderia dar essa garantia. Na noite em que ele passou mal, com uma grande insuficiência respiratória, munida do documento em que estava descrito o que ele permitia e o que ele não permitia que fosse feito, a médica possibilitou a ele partir da maneira como ele queria, sem sofrimento e com conforto. Ele foi sedado e não foi feita ventilação invasiva, que seria o caso se não fosse esse documento, e ele teria sofrido muito — conta a filha.
Jamile conta que foi possível também para a família encarar a morte de Carlos com mais leveza, especialmente pelo cumprimento das diretivas antecipadas:
— Tudo ocorreu conforme meu pai pediu. Nas últimas 24 horas a gente ficou junto no quarto, e eu pude dizer a ele tudo o que senti vontade, e colocamos as músicas do Abba, que era a banda que ele gostava. Tenho fé que ele tenha podido escutar. Foi um momento magnífico, e isso só ocorreu porque a vontade dele estava documentada, por isso acho tão importante que as pessoas saibam que isso é possível.
"Existe vida na doença. Não precisa morrer antecipadamente"
Na última semana de agosto, o médico geriatra paliativista Dr. Maurício Ruiz Del Aguila esteve em Caxias do Sul à convite de um instituto de psicologia. Em duas noites, o médico amazonense, que é professor da Casa do Cuidar, instituição voltada para a prática e o ensino de cuidados paliativos, foi o palestrante do Jantar da Morte, encontro centrado na educação para a finitude, para o luto e para a despedida. O especialista conversou com a reportagem antes de um dos encontros. Confira:
Almanaque: O que a gente perde em vida ao não falar abertamente sobre a nossa própria morte?
Dr. Maurício Ruiz Del Aguila: Trabalhando com a finitude posso dizer que aprendi a viver. Acompanhando pessoas que às vezes vivem uma vida completamente sem sentido até vê-la ameaçada por uma doença crônica, percebo quando vira a chave e elas passam a viver intensamente, que é como a gente deveria viver sempre. Como se cada dia pudesse ser o último dia.
Pacientes de cuidados paliativos aprendem isso ao se colocar diante da própria finitude
Exatamente. Quando uma pessoa se vê frente a um diagnóstico ameaçador, ela repensa tudo. Em que lugar ele está, com que pessoas ele está, a que ele está dando mais importância, no que ela investe principalmente o tempo dela. A gente pensa muito em investir dinheiro, mas o tempo é algo muito mais valioso. E onde e com quem estamos investindo o nosso tempo? Qual o propósito da nossa vida? Essas questões vêm muito forte quando a pessoa está amedrontada diante do fim da sua vida.
Quais os principais equívocos que as pessoas ainda cometem ao falar sobre cuidados paliativos?
Ainda existe muito preconceito. É visto como se fosse matar o paciente. A gente ainda ouve isso até mesmo de colegas que não conhecem ou não foram sensibilizados para essa área. Ao olhar para um paciente com quadro de câncer avançado, em que já foram feitos até três ensaios de quimioterapia, e que as tentativas de tratamento estão fazendo mais mal do que bem, o cuidado paliativo vai colocar o paciente no centro do cuidado, não o vendo apenas como um diagnóstico, seja de câncer, de demência ou de insuficiência cardíaca. É um ser humano que tem uma biografia, que tem seus desejos, e, visto que a sua vida está ameaçada, isso precisa ser colocado como prioridade, inclusive para a família.
Qual a importância do trabalho em equipe para o cuidado paliativo?
O atendimento em nossos hospitais ainda é muito medicocentrista. E o médico sozinho, principalmente diante de um paciente tão complexo, não faz nada se não tiver um bom enfermeiro, um bom fisioterapeuta, fonoaudiólogo e psicólogo para lidar com todas as questões emocionais em sua mente. É um trabalho transdisciplinar, em que todo mundo tem uma importância do mesmo valor.
Podemos entender que o cuidado paliativo é mais sobre a vida do que sobre a morte?
Tenho pacientes em cuidados paliativos há cinco ou 10 anos. Existe vida na doença. Não precisa morrer antecipadamente. Enquanto há vida, tem de viver. A morte faz parte da vida, assim como o nascimento e o desenvolvimento. Ao saber que a morte pode estar próxima, o paciente consegue fazer planos de despedidas, consegue fazer as pazes com pessoas queridas que estavam afastadas, tem um tempo para olhar para trás e pensar no seu legado. Isso é lindo e transformador.
Saiba mais
A Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia disponibiliza em formato virtual a cartilha "Vamos Falar de Cuidados Paliativos", com dicas e orientações para profissionais de saúde, pacientes e familiares. Pode ser acessada em: https://bit.ly/2FM2jVE