Não cabe ao paciente reunir coragem para fazer perguntas sobre seu estado de saúde. Quem deve assumir essa responsabilidade, especialmente em situações complicadas, é o médico, acredita o intensivista Rodrigo Kappel Castilho, coordenador do Programa Gerenciado de Cuidados Paliativos da Santa Casa de Porto Alegre e membro da diretoria da Academia Nacional de Cuidados Paliativos. Outros fatores – culturais, espirituais e emocionais – também podem contribuir para que o doente tenha dificuldade em tomar essa iniciativa.
– É o médico que tem de saber conversar. Ele tem de propor – orienta Castilho.
Para o coordenador, quanto mais precoce for o diálogo a respeito dos prognósticos, melhor. Se o diagnóstico ainda não estiver estabelecido, o médico deve sondar o quanto de informação o paciente gostaria de receber e se quer estar a par das possibilidades de tratamento. O mais frequente, segundo Castilho, é que o profissional proponha a conversa. São comuns, nessas ocasiões, perguntas como: “O que o senhor gostaria de saber?”, “Quando sair o resultado da tomografia, é com a senhora que devemos conversar?”.
Mas a comunicação, que deve estar entre as habilidades médicas, ainda é pouco treinada nas faculdades de medicina, sublinha o especialista.
A comunicação de notícias difíceis aproxima a expectativa do paciente com o real prognóstico. A maior parte dos pacientes com doença grave e incurável quer saber sobre sua doença. Mas se o paciente não quiser saber nada, pode delegar esse papel (de interlocutor com a equipe) a alguém da família. Ele decide e isso tem que ser respeitado sempre.
RODRIGO KAPPEL CASTILHO
Coordenador do Programa Gerenciado de Cuidados Paliativos da Santa Casa
Os familiares e também os médicos podem querer proteger o doente de um possível choque quando confrontado com a verdade nada animadora, mas não falar abre caminho para que se instale a chamada conspiração do silêncio: pessoas que convivem com o paciente sabem do doloroso fim que se aproxima, enquanto ele atravessa os dias sem ter plena consciência de que a doença se agrava e vai impor um número cada vez maior de limitações. A linguagem corporal pode deixar evidente que há um segredo no ar, o que só piora o clima das relações entre paciente, familiares e equipe assistencial, podendo provocar a piora da qualidade desses laços e inclusive afastamentos.
Castilho reforça a diretriz de Tatiana Bragança de Azevedo Della Giustina, do Conselho Federal de Medicina: se o paciente não tem oportunidade de participar do que está acontecendo, ele perde poder de decisão e autonomia.
– Se eu não sei que tenho câncer e pouco tempo de vida, não posso tomar decisões por mim mesmo. A comunicação de notícias difíceis aproxima a expectativa do paciente com o real prognóstico – enfatiza o médico. – A maior parte dos pacientes com doença grave e incurável quer saber sobre sua doença.
“O psicológico pode ajudar muito na parte física”
Ainda que o mais comum seja o médico tomar a iniciativa, Castilho frisa que, muitas vezes, a angústia é tão grande e a comunicação está tão truncada que o paciente questiona, ávido por saber o que, de fato, está acontecendo: “Por que não falam comigo? Nenhum tratamento está dando certo! Só emagreço...”.
– Se o paciente não quiser saber nada, pode delegar esse papel (de interlocutor com a equipe) a alguém da família. Ele decide e isso tem que ser respeitado sempre. Se mudar de ideia, estaremos à disposição – resume Castilho.
Outra possibilidade é o doente solicitar a restrição do compartilhamento de informações – pedir que a notícia de que seu quadro é incurável não seja transmitida a seus filhos ou pais, por exemplo.
– É um direito dele, mas temos que desestimulá-lo porque isso afasta as pessoas do contato. Tentamos demovê-lo dessa decisão. É importante estar em sintonia emocional, lidando com o que está acontecendo – acrescenta o intensivista.
O contrário também acontece: penalizado, um filho pode pedir que o médico não revele o diagnóstico ao pai ou à mãe doentes. Acolhimento, aqui, é a palavra-chave, segundo Castilho:
– O filho está sofrendo, mas o paciente não tem por que não saber o que está acontecendo. Está sendo difícil para esse filho. Acolho e valorizo o sentimento dele.
Um caso recente mobilizou profissionais da Santa Casa. Uma boliviana de 23 anos veio para Porto Alegre para tratar um câncer na língua. Logo os exames acusaram metástases pulmonares, e ela foi encaminhada aos cuidados paliativos. Duas barreiras dificultavam a comunicação, o idioma e uma traqueostomia (tubo colocado na traqueia para ajudar na respiração, conduzindo o ar direto para os pulmões), o que levou médico e paciente a optarem por se expressar por escrito.
Até ali, a jovem não sabia que não ficaria curada. Castilho perguntou quanto ela queria saber e em que momento. A boliviana pediu para que ele falasse. “Infelizmente, a notícia não é boa. A doença que poderia ter potencial de cura já não tem mais”, redigiu o médico. As perspectivas de sobrevida eram ruins mesmo com quimioterapia. Depois de idas e vindas na disposição para ser comunicada sobre o tratamento, a paciente decidiu voltar para o país de origem e passar seus últimos momentos ao lado da família e dos amigos.
– Ela está confortável. O psicológico pode ajudar muito a parte física – afirma Castilho.
“O ideal é falar a verdade para que ele decida”
Chefe do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia do Hospital Moinhos de Vento, a neurologista Sheila Martins está habituada a lidar com urgências. Quando ocorre um acidente vascular cerebral (AVC), por exemplo, cada segundo é precioso e pode impactar no processo de recuperação. Quanto mais tempo passa, maior é a região cerebral impactada. Sheila conta que a conduta é tentar falar diretamente com o paciente sempre que possível, se ele estiver em condições de ouvir.
Nunca tiro a esperança de o paciente melhorar. Esperança faz parte do processo para se conseguir a reabilitação (de um AVC).
SHEILA MARTINS
Neurologista do Hospital Moinhos de Vento
– Falamos: “É um AVC, é uma situação crítica, a chance de ficar com sequelas é muito grande, mas existe um tratamento que pode diminuir as sequelas ou evitar que aconteçam”. Isso pode gerar comoção, a pessoa não está esperando – relata Sheila.
Muitos pacientes querem ligar para o médico de referência naquela hora, para ter um endosso a mais, o que pode significar mais tempo perdido. Mas, de acordo com Sheila, na maior parte dos casos, a equipe que está atendendo o AVC consegue manejar a situação conversando diretamente com o paciente e a família.
– O ideal é falar a verdade para que ele tome a decisão para a vida dele – orienta a neurologista, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Passada essa fase mais tumultuada, vem o período de reabilitação. Em geral, segundo Sheila, os pacientes querem saber a extensão do comprometimento deixado pelo AVC. Essa conversa depende de fatores como a idade e o nível de lucidez para compreender o que está sendo dito.
– Nunca tiro a esperança de melhorar. Esperança faz parte do processo para se conseguir a reabilitação – explica a médica.
O período de maior melhora tende a ser o dos primeiros três meses, mas depois disso também podem se verificar progressos. A adaptação à nova realidade vai sendo acompanhada nos encontros no consultório. “Doutora, eu vou melhorar mais do que isso?” é uma dúvida corriqueira. Há casos em que a neurologista tem de dizer que, naquele momento, a chance de progresso é pequena, mas que existem alternativas para facilitar o dia a dia e incrementar a qualidade de vida.
– Geralmente, na resposta, vou além do que me perguntam. A pessoa precisa se planejar – justifica Sheila. – Pessoas com uma vida produtiva ou que são as provedoras principais de suas famílias têm que saber (a verdade) para se organizar.
O caminho difícil e demorado até a certeza do diagnóstico
Quando o quadro é muito ruim, especialmente no início, Sheila fala a verdade, salientando, entretanto, que há possibilidade de melhora. Ao paciente, as notícias são informadas aos poucos, enquanto que, para os parentes, esse relato é mais acelerado, já que pode ser necessário que a rotina e a casa sejam adaptadas para receber o doente com sequelas. A reabilitação de um AVC grave tende a se prolongar. Profissionais de outras áreas, como psicólogo, assistente social, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e fonoaudiólogo, são um reforço indispensável para o acompanhamento.
Em sua especialidade, Sheila também depara com pacientes acometidos por esclerose lateral amiotrófica (ELA), enfermidade degenerativa que afeta o sistema nervoso de forma progressiva e provoca paralisia motora irreversível. Como o caminho até a certeza do diagnóstico pode ser difícil e demorado, primeiro é preciso ter certeza do que se trata. Esta é mais uma das conjunturas que exigem cautela por parte dos médicos. Novas formas de reabilitação, pesquisas recentes e a possibilidade de participar de estudos clínicos devem ser ressaltadas. Estimular o paciente e a família a se manterem confiantes é imprescindível.
– As doenças neurodegenerativas têm sido muito estudadas, e as pesquisas de ponta têm avançado – analisa Sheila.