Apesar dos rigores dos prognósticos, das terapias, dos efeitos colaterais e da idade avançada, Inácio Vicente Berlitz encarava com a leveza possível o desafio contra um câncer no intestino que se disseminaria em metástases para outras partes do organismo. A equipe assistencial alertava a família de que o quadro era grave. Todos os cinco filhos, mais genros, noras e netos, haviam atendido à convocação que antecedera uma cirurgia delicada.
– Talvez ele não resista – antecipou um dos médicos.
A intervenção foi realizada com sucesso, e o octogenário prosseguiu com o tratamento, ainda sob a sombra de perspectivas nada animadoras. Nise Chagas Berlitz alertava os familiares de que o esposo estava “no final” e pedia que todos se preparassem.
– A palavra morte não existia. Falavam com ele com palavras que um bom entendedor entenderia, mas ele não ouvia. Eu não achava certo que ele não soubesse de tudo – recorda Nise.
Até que chegou o momento em que o paciente recebeu a informação de que as sessões de quimioterapia não estavam surtindo o efeito pretendido. Encaminhado para cuidados paliativos, medidas com o objetivo de proporcionar conforto e aliviar sintomas de doentes graves sem chance de cura, Inácio passou a ter outro tipo de conversa. Nise lembra do primeiro encontro com o novo médico, em que se estabeleceu um diálogo franco, com duração de duas horas e meia. Ela chorou enquanto ouvia o companheiro de 56 anos e quatro meses de convivência relembrar uma trajetória feliz. Inácio abriu o coração, surpreendendo a esposa. Entre os tópicos abordados, estava o fim iminente da vida.
– Como é que você se sente? – perguntou ele à esposa na saída da consulta.
– Tirei um peso da consciência – confessou Nise.
Ao chegar em casa, Inácio declarou, tranquilamente, a dois parentes próximos, envolvendo-os em um forte abraço:
– Quero dizer que sou muito orgulhoso pela família que formei e a amo muito. Meus dias estão contados.
Debate recorrente entre profissionais da medicina
A história de Inácio e Nise ilustra um drama frequente que envolve pacientes, familiares e médicos em consultórios e hospitais. Como abordar os temas mais difíceis no decorrer do tratamento de uma enfermidade severa? Que possibilidades discutir às vésperas de uma intervenção complexa, que coloca a vida em risco? De que forma relatar todos os comprometimentos decorrentes de um acidente vascular cerebral (AVC) altamente debilitante? Além dos tópicos sensíveis, há uma série de outras questões igualmente delicadas: o paciente deve saber de tudo que diz respeito a seu quadro clínico? As informações mais impactantes podem ser compartilhadas apenas com os familiares, para que o doente seja poupado de mais esse peso em uma situação que já se mostra desgastante ao extremo?
Falar de riscos improváveis, mas que existem, é submeter o paciente a uma tortura. Antes de uma cirurgia, conto sobre os riscos, mas sempre do lado do sucesso: ‘Sua cirurgia tem 90% de chance de dar certo’. Ao falar com a família, fale tudo. A omissão de informação é antiética. A família tem que saber.
J.J. CAMARGO
Cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre
Um debate recorrente entre os profissionais da medicina é sobre a falta de preparo da categoria para a comunicação de más notícias – mesmo aqueles com longa carreira pontuada por momentos fatídicos ainda admitem ter dificuldade para abordar essas questões de forma sincera e adequada.
Em recente coluna publicada em GaúchaZH, J.J. Camargo tratou desses tópicos. O texto, intitulado É tolice a ideia de que um paciente precisa ser preparado para o pior, narra uma experiência vivida pelo autor, cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Quando saiu da UTI para falar com a mãe do paciente Luciano, que o aguardava na companhia dos netos, Camargo não tinha boas notícias. “Metade pelo desespero de poupá-la, metade porque não conseguiria dizer o quanto o pai estava mal aos seus filhos adolescentes, escorreguei por uma esperança mentirosa”, escreveu. “Interpretando a mensagem positiva como uma frágil trégua na novidade assustadora do sofrimento, os garotos ganharam da avó o direito ao pátio ventoso. Sem outras testemunhas, a mãe do Luciano me abraçou para agradecer: ‘Obrigado, doutor, por me dar um tempo extra para preparar os meninos. Quando vi o seu ar de desânimo saindo da UTI, mais do que temer a verdade integral, eu entendi naquele instante que meus netos não suportariam o baque de perder o pai’”.
Se o paciente tem condições de decidir, se tem discernimento, é com ele mesmo que tudo tem de ser falado. Autonomia é a palavra que se tem de ter em mente. O paciente deve saber a verdade, tudo o que for do seu interesse e lhe permita preservar a dignidade e a autonomia.
TATIANA DELLA GIUSTINA
Conselheira e segunda secretária do Conselho Federal de Medicina
Camargo continua dizendo que “a verdade absoluta, que não pode ser omitida da família, não pode ser imposta ao paciente sem que ele tenha manifestado o desejo explícito de conhecê-la. E ainda assim, não se pode esquecer que muitas vezes, no desamparo da situação, a pergunta direta, ‘Eu vou morrer, doutor?’, tem apenas a pretensão desesperada de ouvir a negação confortadora”. Refutando a ideia de que as possibilidades dos piores desfechos devem ser explicitadas, o cirurgião prega que “nascemos para a felicidade, e portanto toda a tragédia sempre nos surpreenderá”. Revelar todas as más notícias em um único pacote é, nas palavras de Camargo, crueldade. “Ninguém tem todos os escudos de defesa disponíveis no primeiro instante de um enfrentamento que precisará ser amadurecido.”
A sensibilidade do profissional, argumenta o colunista, é pré-requisito fundamental para transitar nesse “terreno movediço”. Informações desnecessárias precisam ser filtradas, e o médico deve se apresentar como um parceiro.
O que expressa o Código de Ética Médica
Em entrevista posterior, o médico deu mais detalhes sobre o seu dia a dia:
– Quando você fala com o paciente, tem de eleger o que falar. Quando fala com a família, fala tudo. A omissão de informação é antiética. A família tem que saber.
Camargo dá o exemplo hipotético de um paciente que tem um tumor operável: ele precisa saber de tudo o que é necessário para tomar a decisão em relação à cirurgia que vai ajudá-lo.
– Falar de riscos improváveis, mas que existem, é submeter o paciente a uma tortura – defende o cirurgião. – Antes de uma cirurgia, conto sobre os riscos, mas sempre do lado do sucesso: “Sua cirurgia tem 90% de chance de dar certo”. Haverá médicos que falarão que o paciente tem 10% de chance de morrer. Respondo tudo sempre com uma visão otimista, tendo a sinceridade como base. Você pode dar a mesmíssima mensagem com palavras otimistas ou exercer o poder sádico de dizer tudo (de ruim) que é possível acontecer – acrescenta.
Acho importante o paciente saber a verdade. Há pessoas que não querem, mas traz benefício. Quando você está preparado, a morte fica mais calma para todos.
NISE CHAGAS BERLITZ
Viúva de Inácio
No quinto capítulo do Código de Ética Médica, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que versa sobre a relação com pacientes e familiares, o artigo 34 determina que é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal”. Dano, nesse caso, pode decorrer, por exemplo, de um estado psicológico frágil. Segundo a otorrinolaringologista Tatiana Bragança de Azevedo Della Giustina, conselheira e segunda secretária do CFM, as informações precisam ser transmitidas ao paciente de forma clara – evitando-se o “mediquês” – e eficaz. Saber de seu quadro é fundamental para que ele possa tomar decisões.
– Se o paciente tem condições de decidir, se tem discernimento, é com ele mesmo que tudo tem de ser falado. Autonomia é a palavra que se tem de ter em mente. O paciente deve saber a verdade, tudo o que for do seu interesse e lhe permita preservar a dignidade e a autonomia – explica Tatiana.
Após a conversa franca com o médico dos cuidados paliativos, Inácio Vicente Berlitz passou a recordar e a compartilhar, diariamente, recortes felizes do passado. O casal falava sobre a morte e também a respeito da impossibilidade de adivinhar o momento exato do fim. Nise ressaltava um dos ensinamentos do curso de Teologia: temos de viver o tempo presente.
– Pode levar pouco tempo, pode levar muito tempo, mas vamos aproveitar o aqui e agora – repetia ela. – Vamos viver com bastante alegria.
À medida que ficou cada vez mais debilitado, Inácio teve suas últimas vontades respeitadas: não queria ser entubado nem ficar em uma unidade de terapia intensiva. Pediu para morrer em um quarto, se possível na companhia da família. E assim foi. Faleceu um mês depois daquele encontro em que soube que não dispunha de muito tempo pela frente. Tinha 82 anos.
– Acho importante o paciente saber a verdade. Há pessoas que não querem, mas traz benefício. Quando você está preparado, a morte fica mais calma para todos – reflete a viúva.