Alheia ao vai e vem de profissionais de saúde, macas e cadeiras de rodas pelos corredores, a tranquilidade predomina em uma sala no oitavo andar do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). As pessoas dentro dela praticamente não se movem e o silêncio é quase absoluto – ouve-se o apito do elevador do lado de fora, o tique-taque do relógio na parede e as vozes suaves das professoras. Um aviso na porta pede a colaboração: “Estamos meditando. Por favor, não interrompa”.
O grupo composto por pacientes, acompanhantes e funcionários da instituição se reúne há mais de um mês, sempre nas quartas-feiras pela manhã, para a prática de meditação mindfulness – também chamada de prática de atenção plena. Trata-se de uma das medidas adotadas pelo hospital para trabalhar diferentes aspectos da saúde física, emocional, social e espiritual, proporcionando maior bem-estar aos participantes.
— A intenção é que, a partir das práticas de meditação, da observação do corpo, das sensações, dos pensamentos e das emoções, as pessoas possam descobrir um pouco mais de si. Descobrir seu propósito de vida, seus valores, as coisas que são importantes para si. Esse processo de conexão e observação das necessidades tem relação com a espiritualidade no contexto da saúde de uma forma ampla — explica Angélica Adamoli, profissional de educação física do Serviço de Educação Física e Terapia Ocupacional do HCPA.
Especialistas destacam que a relação entre espiritualidade e saúde sempre existiu. Contudo, com a profissionalização da área, houve uma tentativa de separar o conhecimento científico da religiosidade, fazendo com que as pessoas parassem de falar sobre o assunto, embora ainda utilizassem esses instrumentos como forma de resiliência frente às doenças.
Marta Goes, enfermeira e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Saúde e Espiritualidade (Neise) do HCPA, comenta que esse cenário começou a mudar quando estudos sobre os benefícios dessa ligação passaram a ser publicados:
— Nos últimos anos, com os avanços das pesquisas na área da saúde, fomos entendendo que essa relação não só é importante, como também facilita e melhora a qualidade de vida. Existem inúmeros estudos em diferentes áreas da saúde que identificaram as relações positivas entre a espiritualidade e a saúde, mas isso foi lentamente sendo aceito.
Existem inúmeros estudos em diferentes áreas da saúde que identificaram as relações positivas entre a espiritualidade e a saúde, mas isso foi lentamente sendo aceito.
MARTA GOES
Enfermeira e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Saúde e Espiritualidade (Neise) do HCPA
Os estudos sobre essa temática são bastante antigos, mas só começaram a se consolidar no final do século 20, quando as grandes universidades americanas passaram a abrir espaço para esse tipo de pesquisa, conforme Fernando Lucchese, diretor dos hospitais São Francisco, Santo Antônio e Nora Teixeira, que integram a Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
O cardiologista e cirurgião cardiovascular comenta que, na década de 1990, foi criado um encontro anual em Harvard para reunir pesquisadores que estudavam a relação da espiritualidade com os resultados do tratamento médico. As primeiras reuniões tiveram cerca de 50 participantes, mas, em 2005, esse número já havia saltado mais de mil. Para Lucchese, esse movimento alertou que existia um longo campo a ser desvendado na medicina.
Contudo, o especialista ressalta que isso não significa propor tratamento espiritual no lugar dos tratamentos médicos já instituídos:
— Nós estamos considerando a espiritualidade um meio de dar apoio ao paciente, uma forma do paciente aceitar melhor a sua doença e se tratar com mais cuidado com as prescrições que recebeu. Ou seja, ninguém está sugerindo substituir tratamento médico por espiritualidade. Isso é uma premissa básica fundamental.
De acordo com Lucchese, muitos testes foram feitos ao longo dos anos e a produção científica relacionada ao assunto aumentou de forma considerável nas últimas duas décadas.
Espiritualidade x religiosidade
Ao falar sobre o assunto, os especialistas reforçam a necessidade de diferenciar dois termos que, embora possam ser confundidos, são essencialmente diferentes: religiosidade e espiritualidade. O cardiologista classifica o primeiro como uma “manifestação pública de grupos em apoio ao sagrado, que tem um ritual e uma frequência”.
— A religiosidade é mais fácil de ser estudada. Porque tu podes contar quantas vezes o indivíduo foi ao culto por mês ou por ano. Espiritualidade é mais do que isso: é uma busca individual ao sagrado. Ou seja, o indivíduo pode ser espiritualizado sem ter nenhum tipo de vínculo religioso. São convicções pessoais que respeitam e admitem o sagrado como parte da sua vida. Por isso que se fala que mesmo os ateus têm sua espiritualidade — esclarece Lucchese.
[...] o indivíduo pode ser espiritualizado sem ter nenhum tipo de vínculo religioso. São convicções pessoais que respeitam e admitem o sagrado como parte da sua vida. Por isso que se fala que mesmo os ateus têm sua espiritualidade.
FERNANDO LUCCHESE
Diretor dos hospitais São Francisco, Santo Antônio e Nora Teixeira
Marta aponta que a espiritualidade foi sendo lentamente apropriada na área da saúde justamente por um “temor” de confundir essas questões. A relação foi se tornando possível à medida que os profissionais foram se aprofundando, entendendo a diferença entre os conceitos e identificando como as diferentes manifestações de espiritualidade podem impactar de forma positiva na saúde das pessoas.
— A espiritualidade é uma compreensão ampla, é uma característica intrínseca do ser humano. Se manifesta não só por meio das crenças ou dos aspectos religiosos, mas da relação das pessoas consigo mesmas, com a comunidade, não necessariamente precisando dos elementos que vêm da religião. Então, à medida em que vamos diferenciando isso, vamos entendendo que as pessoas têm elementos de espiritualidade independente de terem religião ou não — destaca a enfermeira.
Conforme Lucchese, houve uma aceitação maior dessa realidade em algumas especialidades — entre elas, a cardiologia, a cancerologia e a psiquiatria. A Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC) criou, inclusive, um Departamento em Espiritualidade e Medicina Cardiovascular (Demca), do qual o especialista é membro e que, atualmente, é o maior da entidade em número de sócios.
Benefícios
Entre os resultados positivos apontados por estudos da área, está a melhora na sobrevida e a redução dos marcadores inflamatórios nos pacientes que têm a relação entre espiritualidade e religiosidade elevada, afirma Marta Goes. Menor risco de infarto e de acidade vascular cerebral (AVC), maior qualidade de vida, menor índice de depressão e menor uso de substâncias psicoativas também são benefícios citados pelas pesquisas.
Fernando Lucchese comenta que esses benefícios fizeram com que os hospitais implementassem a chamada anamnese espiritual, em que os pacientes são questionados sobre sua espiritualidade no momento da consulta. O especialista conta que implementa o método diariamente no seu consultório, buscando saber se a pessoa atendida tem crenças, atividades religiosas e como se porta diante disso.
Iniciativas no HCPA
De acordo com Marta, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares de Saúde e Espiritualidade é composto por profissionais de diferentes áreas e foi criado com o objetivo de começar a trabalhar a educação dos funcionários do hospital sobre o tema. Assim, realizam seminários, fóruns e webinários esclarecendo a importância das crenças e valores, das diferentes religiões e de que modo isso pode ser agregado ao cuidado do paciente.
— Nós desenvolvemos um plano de trabalho sobre crenças e valores, onde até as anamneses foram trabalhadas, as equipes são treinadas no sentido de saber como coletar dados sobre espiritualidade e saúde e desenvolvemos um cadastro de instituições religiosas, que tem o objetivo de atender as pessoas que estão internadas no hospital e que não têm acesso à sua comunidade religiosa — explica.
Diante da solicitação de familiares, o setor administrativo do hospital faz o contato com esses representantes religiosos, pedindo uma visita ao paciente. Marta comenta que é um cadastro bem ativo e que os profissionais de saúde sempre percebem um alívio quando as pessoas têm suas crenças atendidas. Também aponta que muitos pacientes apresentam extrema angústia, ansiedade e dores que não aliviam, apesar dos analgésicos, porque têm “assuntos inacabados”:
— Existem necessidades não só físicas ou psicológicas, mas de natureza espiritual. E existem manifestações de comportamento que sinalizam que essa pessoa necessita de um cuidado espiritual. Então, tudo aquilo que pudermos agregar ao cuidado, que traga conforto emocional e espiritual ao paciente, vai reverter em uma melhora. Temos vários relatos de pessoas que tinham histórias assim, em que propiciamos esse atendimento e houve uma melhora nesses sintomas, nesse sofrimento espiritual.
Além desses atendimentos, o HCPA oferta diferentes práticas integrativas e complementares, que estão nas premissas da Organização Mundial da Saúde (OMS) por serem consideradas importantes para trabalhar diferentes aspectos da saúde física, emocional, social e espiritual. E a prática de meditação mindfulness, oferecida para pacientes, acompanhantes e funcionários, é uma delas.
No encontro da última quarta-feira (14), as professoras Angélica Adamoli e Gisele Battistelli, profissionais de educação física do Serviço de Educação Física e Terapia Ocupacional do HCPA, ensinaram as técnicas de meditação para outras 12 pessoas. O primeiro momento foi marcado pela explicação do método e por práticas formais, que envolvem a atenção plena no corpo e na respiração, observando pensamentos, reconhecendo emoções e as sensações corporais e mentais.
Os participantes também compartilharam suas impressões sobre a atividade e foram instruídos sobre as práticas informais, que envolvem levar esse modo de atenção plena e presença para atividades do cotidiano, que geralmente são feitas de forma automática – como tomar banho, lavar a louça, comer e conversar com amigos.
— Isso, na vida como um todo, é superimportante e necessário. Mas, aqui no hospital, trabalhamos com muitas pessoas com dor crônica e com problemas relacionados ao estresse, ansiedade, depressão. Porque especialmente em momentos de adoecimento, ocorrem muitas situações desafiadores, que não podemos mudar, mas a ideia é entender como podemos viver aquilo de uma forma que possa cuidar mais de mim? É um processo muito enriquecedor.
Em tratamento para dependência de álcool, Humberto Hilgert, 59 anos, participava de sua segunda sessão de meditação. O paciente conta que, no decorrer de sua vida, buscou conhecimento sobre diferentes práticas espirituais, por isso, se sente muito à vontade durante a atividade e consegue ficar muito sereno. O paciente também relata que a espiritualidade lhe ajudou a enfrentar diferentes desafios ao longo dos anos:
— Estou em tratamento para a bebida, já fumei durante 35 anos, mas aprendi coisas com a espiritualidade. É claro que vim pedir ajuda, porque reconheço que não é uma coisa simples depois de beber uma vida inteira, mas a meditação já me ajudou muito — comenta.
Humberto também considera a atividade um importante recurso para quem está tentando “se resgatar”:
— Isso é um sonho, na verdade, para quem está querendo se resgatar. É uma coisa fora de sério e eu só tenho que agradecer que tenha mais esse recurso. Me sinto privilegiado.
[...] Eu só tenho que agradecer que tenha mais esse recurso. Me sinto privilegiado.
HUMBERTO HILGERT
Paciente HCPA
Quando pode atrapalhar?
Alguns estudos indicam, contudo, que também pode haver um “coping” negativo, que é quando a espiritualidade impacta de forma negativa na saúde, acrescenta Marta. Isso geralmente ocorre com as religiões em que a doença é associada à culpa:
— Isso pode piorar o estado de saúde da pessoa. É quando a pessoa acredita que a doença é um castigo divino. Esse é o grande cuidado que temos em relação à religião, porque, às vezes, as pessoas trazem isso da sua própria educação.
Portanto, a enfermeira do HCPA enfatiza que os profissionais tentam resgatar o lado positivo da espiritualidade dos pacientes, já que isso pode afetar o modo como a pessoa se relaciona com seus hábitos de saúde – o que também pode impactar no uso ou não de medicações e na adesão ou não de tratamentos.
— Não podemos esquecer que a pessoa traz uma bagagem com ela e isso vai impactar no modo como ela reage à doença. Por muito tempo, os profissionais de saúde ignoraram, mas hoje não podemos mais ignorar a importância disso na saúde da pessoa — aponta Marta.
Lucchese ressalta que a interferência negativa da espiritualidade na saúde é um dos fatores que preocupa os especialistas, por isso, tem sido bastante discutido dentro do Demca. Nesse sentido, também alerta que o fanatismo religioso pode ser perigoso para a saúde:
— Por exemplo, quando se fala de uma religião que não permite certas práticas médicas, é uma coisa grave, porque impede a vida do paciente. Existem religiões que partem do princípio de que são curativas e que é preciso suspender a medicação alopática para usar só os critérios que a religião impõe como tratamento. É muito perigoso.