Como você deixou chegar nesse ponto? Se você é uma pessoa com obesidade ou convive com quem é, provavelmente já ouviu alguém fazendo perguntas como essa. Além de revelar desinformação, o questionamento é cheio de preconceito. No Dia Mundial da Obesidade, neste 4 de março, profissionais de saúde dizem que a combinação desses dois fatores atrapalha muito o combate à doença.
Em 2023, a campanha da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM) em conjunto com a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) e com apoio da Federação Mundial de Obesidade (WOF) tem como tema “Um outro jeito de olhar”. O objetivo é fazer entender que a obesidade é uma doença crônica multifatorial e mudar o estigma de que o excesso de peso é fruto de maus hábitos.
Segundo a médica nutróloga Andrea Pereira, da ONG Obesidade Brasil, não é só uma questão de força de vontade:
— Muitas pessoas não acreditam que a obesidade é uma doença, pensam que a culpa é da pessoa que não consegue se controlar. Ninguém fala para uma pessoa com diabetes que ela tem diabetes porque quer. Mas falam isso o tempo todo para as pessoas com obesidade. Não é uma questão simples. Não é só fechar a boca.
E, de fato, não é. A médica lembra que nem sempre há uma relação direta entre obesidade e excesso de consumo de comida.
— Todo mundo conhece alguém muito magro que come muito e não engorda. E tem pessoas que não comem tanto, mas engordam muito facilmente. Por ser uma doença, a obesidade faz o paciente engordar com muito mais facilidade. Até a resposta à atividade física é menor. Comer demais e fazer pouco exercício é uma combinação que não vai fazer todo mundo, necessariamente, engordar. Mas, para quem tem tendência e a pré-disposição, acaba sendo um fator agravante — explica Andrea.
É importante entender que a obesidade é uma doença crônica, caracterizada pelo excesso de gordura corporal. O índice de massa corpórea (IMC) é a referência que os médicos usam para classificar se uma pessoa tem ou não a doença. De modo geral (há particularidades envolvendo a idade e diferenças se é homem ou mulher), o cálculo divide o peso da pessoa pela altura ao quadrado. Quando o IMC é igual ou acima de 30, se considera obesidade, que pode ser de grau 1 (IMC entre 30 e 34,9), 2 (IMC entre 35,0 e 39,9) ou 3 (IMC maior do que 40,0). Um IMC entre 25 e 29,9 significa sobrepeso, que é uma espécie de pré-obesidade. Quanto mais elevado, maior a chance de aparecerem outras doenças, que são as comorbidades.
Andrea alerta:
— Pessoas com obesidade têm grande risco de ter pressão alta, diabetes, colesterol alto, problemas nas articulações, nos ossos, no pulmão, alteração no fígado por causa do excesso de gordura, e pelo menos 13 tipos de câncer que estão associados à obesidade. Também existe uma série de questões ligadas à saúde mental, como a depressão. Então, quando a gente trata a obesidade, a gente previne uma série de outras enfermidades. O mais grave é o risco cardiovascular, que pode até levar à morte.
Uma realidade que só aumenta
O número de indivíduos com sobrepeso e obesidade tem crescido nos últimos anos e gerado grande preocupação na saúde pública. Segundo o Atlas da Obesidade 2023, divulgado na quinta-feira pela World Obesity Foundation (WOF), 41% dos adultos brasileiros terão obesidade até 2035. Esse número é classificado pela entidade como “nível de alerta muito alto”. É a mesma classificação para a projeção do crescimento anual de crianças com obesidade no país: 4,4%.
O atlas também prevê que, mundialmente, uma a cada quatro pessoas (quase 2 bilhões) terá obesidade até 2035. E mais da metade da população (51%, ou 4 bilhões) viverá com sobrepeso. O impacto econômico do sobrepeso e da obesidade chegará a US$ 4,32 trilhões até 2035, o que representa quase 3% do PIB global, sendo comparável ao efeito da covid-19 em 2020.
De volta ao Brasil, uma das pesquisas mais recentes foi apresentada em 2022, realizada pelo Ministério da Saúde, por meio de inquérito telefônico. A Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas (Vigitel) mostra como evoluíram o excesso de peso e a obesidade, nas 27 capitais brasileiras, na população adulta, com mais de 18 anos de idade, entre os anos de 2006 e 2020.
Entre os homens, o percentual de indivíduos com excesso de peso (IMC igual ou maior que 25) passou de 47,5% em 2006 para 58,9% em 2020. No caso das mulheres, no mesmo período, o índice aumentou de 38,5% para 56,2%.
Em relação à obesidade (IMC igual ou maior que 30), o percentual de homens passou de 11,4% em 2006 para 20,3% em 2020. Entre as mulheres, no mesmo período, o índice aumentou de 12,1% para 22,6%.
Considerando apenas Porto Alegre, o percentual de indivíduos com excesso de peso, levando em conta homens e mulheres acima de 18 anos de idade, passou de 48,3% em 2006 para 58,8% em 2020. Em relação à obesidade, considerando o mesmo público e o mesmo período, o índice aumentou de 12,7% para 19,7%.
Como tratar a obesidade
Para evitar complicações e riscos à saúde, os médicos afirmam: a obesidade precisa de tratamento. Para Jaqueline Rizzoli, médica endocrinologista e membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), existem, atualmente, muitas opções eficazes que podem ajudar, mas é fundamental procurar um médico ou um nutricionista:
— Muito cuidado com as promessas milagrosas. Tem muita picaretagem. Receitas mirabolantes que não trazem benefícios, e sim riscos. É muito comum pacientes chegarem no consultório só depois que já fizeram várias tentativas por conta própria. A pessoa com obesidade precisa de acompanhamento profissional. Temos que avaliar e fazer exames para saber qual é a real situação, se é mais ou menos grave, que problemas de saúde ela tem, quais são os hábitos alimentares, se faz exercício físico e se tem condições de fazer, como podemos intervir para melhorar a rotina, enfim, são muito fatores a serem considerados.
A endocrinologista afirma que a base do tratamento sempre é a reeducação alimentar e a atividade física, mesmo quando se usa medicação ou se faz a cirurgia bariátrica (confira os requisitos no quadro abaixo).
— Atualmente, temos diversas opções de medicamentosos para auxiliar no controle da obesidade, mas infelizmente nenhum deles está disponível pelo SUS. Não fazem parte do rol da Agência Nacional de Saúde (ANS), apesar de diversas tentativas de incorporação destes tratamentos por parte de entidades e profissionais da saúde. Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), se pode realizar a cirurgia bariátrica, mas o número de cirurgias é muito inferior à demanda. Aqui no Rio Grande do Sul, tem levado de 6 a 7 anos entre a entrada na UBS até à realização da cirurgia — diz Jaqueline.
A nutróloga Andrea Pereira também explica que os tratamentos não podem abandonar os cuidados mais simples:
— Tanto o uso de medicação quanto a realização da cirurgia bariátrica precisam ser acompanhados de uma mudança no estilo de vida: reeducação alimentar e atividade física possível para cada pessoa. Atualmente, a gente tem medicamentos novos, com perda de peso muito importantes. São os análogos do GLP1 (liraglutida e semaglutida), que são os mais modernos. E estão surgindo cada vez mais, há muitos estudos fora do Brasil. Mas é importante frisar que estamos falando de uma doença crônica, ou seja, não tem cura. Tem controle. Não adianta você fazer o tratamento, perder peso e abandonar a rotina saudável, porque a tendência é você ganhar peso de novo. É um tratamento para a vida inteira.
A psicóloga e presidente da ONG Obesidade Brasil, Andrea Levy, destaca um ponto importante e nem sempre abordado: tratar a obesidade não é sinônimo de ficar magro.
— A expectativa tem de estar dentro da realidade de cada pessoa. É um tratamento muito individual, que precisa ter metas factíveis. O paciente precisa aceitar e entender que não precisa ficar magro. A frustração é muito possível se ele não for bem acompanhado. É importante focar nas conquistas, e não no que ainda falta. Se o paciente precisa perder 40 quilos e, até agora, perdeu 20, ele já vai ter um ganho na locomoção, nas atividades do dia a dia, na saúde mental. O tratamento da saúde mental faz parte do tratamento da obesidade — aponta Andrea.
Para quem é recomendada a cirurgia bariátrica?
É indicada, segundo a endocrinologista Jaqueline Rizzoli, em casos específicos, de maior gravidade:
- obesidade grau 3, com IMC igual ou acima de 40;
- obesidade grau 2, com IMC igual ou acima de 35 e com alguma comorbidade;
- obesidade grau 1, com IMC entre 30 e 34,9, para alguns pacientes que tenham também diabetes.
Causas e prevenção
A obesidade pode ter várias causas, por isso, é classificada como uma doença multifatorial. A endocrinologista Jaqueline Rizzoli afirma que, normalmente, há uma combinação de genética e ambiente.
— Podemos dizer que 40% das pessoas desenvolvem a doença devido à propensão genética e 60% devido ao que chamamos de ambiente obesogênico. São as características do estilo de vida. Uma pessoa é sedentária por que não gosta de se exercitar ou por que trabalha demais e não tem tempo? Tem local seguro e iluminado para caminhar perto de casa? Qual é a qualidade, e não apenas a quantidade, da alimentação? A rotina tem pouco ou muito estresse? Como está a qualidade do sono? Costumamos dizer que a genética carrega a arma, mas o ambiente dispara o gatilho. O ambiente pode potencializar ou amenizar a genética — exemplifica Jaqueline.
Por isso, a prevenção também está muito ligada ao estilo de vida, como explica a nutróloga Andrea, da ONG Obesidade Brasil. Não significa que a pessoa não vai desenvolver a doença, mas pode reduzir as chances:
— Há muitos trabalhos mostrando que a prática regular de atividade física reduz as chances de uma pessoa ter obesidade porque ela vai ter um gasto calórico maior. Outro ponto é uma alimentação equilibrada. O que é um prato saudável? Metade de verduras e legumes, um quarto de carboidratos, um quarto de proteína. É o mais indicado, se possível. Assim como evitar calorias vazias, como os doces, por exemplo. São muito gostosos, mas não são nutricionalmente ricos. As comidas muito processadas e industrializadas são muito calóricas. Então, o caminho é realmente tentar comer alimentos mais naturais, preparados em casa. E o ideal é que esses cuidados comecem desde a infância, especialmente nas famílias com tendência à obesidade.
Os riscos do preconceito
Os profissionais ouvidos pela reportagem são taxativos: o preconceito é enorme e nocivo. Diz Andrea Levy, psicóloga e presidente da ONG Obesidade Brasil:
— Está por todos os locais, o tempo todo. A falta de acessibilidade é uma das coisas que mais representam o preconceito. Faltam mobiliários adequados, desde as poltronas do cinema e do avião até caixões e macas. Quando surgiram as poltronas para pessoas com obesidade, ouvíamos muito: "Como assim? Em vez de emagrecer, ganha uma cadeira melhor? Ela que se controle!". Mulheres não vão no ginecologista porque não cabem na maca, então, não fazem os exames preventivos. Elas podem ter câncer e não descobrir. Isto é gravíssimo. Faz com que muitas pessoas nem busquem ajuda profissional. O maior dano é que o preconceito pode matar.
A nutróloga Andrea Pereira reforça:
— O preconceito se estende até entre os profissionais de saúde, que muitas vezes negam o tratamento adequado. Dizem que o paciente não precisa de medicamento, que é só uma questão de força de vontade, de fazer dieta, de malhar. A divulgação de informação é muito importante porque as pessoas precisam entender estamos falando de uma doença crônica.