O corpo humano não é de trabalhar em silêncio. De alto a baixo, produz uma ampla variedade de sons. Muitos deles são a consequência natural de uma engrenagem complexa, que envolve sólidos, líquidos e gases em movimento constante. É o caso dos arrotos e da flatulência, mal afamados e pouco nobres, mas totalmente normais e esperados. Problemático seria não expelir os gases em questão.
Outros barulhos são resultado de mecanismos de defesa do organismo. Quando detecta algum tipo de intruso ameaçador, o corpo reage, tentando expulsá-lo. É o caso do espirro, da tosse e do soluço. Em grande parte das ocasiões, esse três não passam de manifestação sem maiores consequências – mas também podem ser o sinal de alguma enfermidade que merece atenção.
Há ainda os sons que denunciam, pela sua simples existência, que existe algo de errado em curso. Roncar, por exemplo, não deveria acontecer: significa um distúrbio do sono. Chiados no peito, por sua vez, são como a ponta de um iceberg: indicam que algo saiu de controle no sistema respiratório. Na base, pode estar uma crise de asma ou de bronquite, por exemplo.Nesta reportagem, GaúchaZH realiza uma excursão pelos meandros sonoros do organismo humano, explicando a origem e o significado de 10 dos ruídos corporais mais comuns.
Ronco
Dormir com alguém que ronca é um tormento que está na origem de muitos divórcios e até mesmo de casos documentados de surdez. Em geral, quem sofre é a mulher: o ronco é muito mais frequente em pessoas do sexo masculino, o que se deve em parte a causas anatômicas, como o padrão de distribuição de gordura.
Mas o que vem a ser o ronco? Trata-se de um ruído que decorre da vibração das estruturas da orofaringe – palato, úvula e língua. Essa vibração acontece quando o ar da respiração se movimenta com muita velocidade, por causa de um estreitamento da passagem. Os motivos são bem variados. Um dos mais usuais é o sobrepeso. Mais gordura no pescoço, por exemplo, pode levar a uma compressão da orofaringe. O álcool também leva ao ronco, por provocar um relaxamento na musculatura, fazendo-a vibrar mais. Há também causas anatômicas: queixo muito recuado, amígdalas ou língua grandes demais e o formato do rosto.
— Roncar não é normal. É um distúrbio respiratório do sono. Quem ronca deveria buscar um recurso para não roncar, principalmente se causa perturbação a outra pessoa — diz o neurologista Geraldo Rizzo, especialista em medicina do sono e diretor do Sonolab, laboratório de sono do Hospital Moinhos de Vento.
Rizzo afirma haver alternativas para todos os casos. Se o problema é excesso de peso, as opções incluem atividade física, dieta ou até cirurgia bariátrica. Se o álcool está na raiz, mudanças no hábito de ingestão de bebidas podem resolver. Se a língua é grande, só o ato de dormir de lado já pode desobstruir a orofaringe.
— Sempre existe solução — garante Rizzo.
Espirro
O espirro é um mecanismo de defesa do ser humano. Quando o organismo detecta a presença de algum corpo estranho ou a existência de secreção nas vias áreas (o que acontece no resfriado, por exemplo), desencadeia uma violenta reação involuntária para expulsar a ameaça ou desimpedir os caminhos.
— Encaramos o espirro como uma defesa natural, que não chega a determinar patologia nenhuma. É uma força de pressão positiva que sai das vias aéreas superiores e inferiores com o intuito de melhorar, de tirar um corpo estranho, ma secreção que fica presa — explica o otorrinolaringologista Sérgio Kalil Moussalle, do Hospital São Lucas da PUCRS.
O espirro só terá interesse médico quando acontecer de forma continuada, um atrás do outro, em quantidade. Nessa circunstância, a causa para o fenômeno pode ser uma doença. Deve-se procurar um médico para identificá-la e tratá-la. Os diagnósticos mais comuns são de rinite alérgica e de sinusite alérgica. Em alguns casos, envolve uma crise asmática. Os agentes causadores podem ser ácaros ou pólen, por exemplo, e vir de cortinados, forrações, carpetes e aparelhos de ar-condicionado. O médico vai realizar testes alérgicos e provavelmente solicitará exames de imagem, como tomografias dos seios da face e do tórax, em busca de sinais de processos inflamatórios ou infecciosos.
— O tratamento pode ser medicamentoso ou mesmo cirúrgico. Por exemplo, se houver uma polipose nasal, que são corpos estranhos na mucosa nasal, pode haver indicação de cirurgia — diz Kalil Moussalle.
Flatulência
Peidar é um ato tão importante que a evolução dotou os seres humanos de uma estrutura, na saída do ânus, que discrimina se o que vem lá é sólido, líquido ou gasoso. Graças a isso, podemos expelir os gases com certeza de que o que vai sair são mesmo gases (exceto em situações de diarreia, naturalmente). Espera-se que uma pessoa, em condições normais, solte de 18 a 20 traques por dia. A flatulência é uma consequência do processo de fermentação dos resíduos alimentares no intestino, realizado por bactérias. Geram-se gases, e esses gases precisam sair. Caso contrário, distenderiam o intestino e causariam dor.
— Na hora em que são eliminados, encontram uma certa resistência, há um turbilhonamento do ar, e por isso gera ruído. É como um instrumento de sopro. Causa embaraço socialmente, mas é absolutamente natural — explica o gastroenterologista Carlos Francesconi.
A quantidade de gás expelido vária conforme a dieta (fibras são o grande vilão). Outro fator que pode significar mais ou menos flatos é a capacidade de acumular gás. Algumas pessoas têm o intestino sensível, e pequenos volumes já estimulam a eliminação. Outras toleram quantidades maiores e se aliviam de uma vez só, quando vão ao banheiro. Apesar de ser um fenômeno natural, sem conexão com patologias, muitas pessoas costumam ir ao consultório médico por causa dos peidos, achando que se trata de sintoma de alguma doença.
— Nesse caso, o papel do médico é tranquilizar o paciente sobre a normalidade da eliminação — diz Francesconi.
Arroto
Assim como os flatos, o arroto também é a expulsão de um gás que está dentro do organismo e precisa ser eliminado. Mas há algumas diferenças significativas – e não estamos aludindo apenas ao orifício de saída. A primeira delas diz respeito à origem do gás. Enquanto, no caso da flatulência, os gases são formados dentro do intestino, no caso do arroto eles vieram de fora – de bebidas carbonatadas, como os refrigerantes, ou do ar que engolimos pela boca. Outra diferença é que o gás que sai no pum vem do intestino, enquanto o que sai no arroto está no estômago ou no esôfago.
No caso do esôfago, trata-se do ar que foi engolido e que ali ficou preso. Já o gás das bebidas carbonatadas vai mais longe, até o estômago, para depois ter expelido pela eructação. O gastroenterologista Carlos Francesconi explica que uma parte do gás dos refrigerantes e assemelhados pode ser absorvido pelo estômago, entrar na circulação sanguínea e ser eliminado pelo pulmão, via respiração:
— Por que uma pessoa fica com hálito de cebola ou alho? É porque foi para a circulação. Não é na boca que está o gosto da cebola e do alho.Como no caso da flatulência, a eructação é um fenômeno natural. Em situações mais raras, pode ocorrer um distúrbio que faz a pessoa arrotar sem parar, o que exige tratamento.
Francesconi afirma que essa situação pode aparecer em quem engole muito ar, o que em geral está relacionado com ansiedade, mas não se trata de uma doença, apesar de gerar desconforto.
Tosse
Se colocar um cotonete no ouvido e cutucar com alguma insistência, é provável que você vá tossir. Isso acontece porque existe ali um terminal de tosse. O terminal de tosse é uma terminação nervosa que, quando estimulada, faz o organismo interpretar que há alguma ameaça tentando entrar no sistema respiratório. Nessa circunstância, o corpo reagirá de forma a colocar para fora a partícula irritante, gerando uma mudança brusca da pressão intratorácica que aumenta poderosa e ruidosamente a velocidade de expulsão do ar. É isso a tosse.
Como se pode ver, trata-se de um mecanismo primordial de defesa similar ao espirro. O espirro, porém, está mais ligado às vias aéreas superiores, enquanto a tosse tem mais relação com as vias aéreas inferiores: traqueia, brônquios, pulmões. José Miguel Chatkin, presidente da Sociedade Brasileira de Pneumologia e professor de pneumologia da Faculdade de Medicina da PUCRS, orienta que se procure um médico em caso de tosse continuada, por período superior a uma semana, porque nesse caso ela pode ser sintoma de algo mais grave:
— A tosse pode estar associada a uma grande variedade de enfermidades, de uma simples infecção viral a um tumor.
Uma recomendação enfática de Chatkin é não usar xaropes contra a tosse, exceto em condições médicas muito específicas, já que eles anestesiam os terminais de tosse, suprimindo o mecanismo de defesa:
— A tosse é sempre um sinal de alerta. Não se deve nunca anestesiar a tosse.
Soluço
O soluço é uma contração espasmódica do diafragma. Ocorre quando alguma terminação nervosa do nervo frênico – que se estende do pescoço até o já mencionado diafragma – sofre algum tipo de irritação.
— Esse nervo está passando por um desfiladeiro, que tem de estar livre para ele ficar tranquilo. Se por acaso alguma coisa ali não está bem, é motivo de surgir o soluço. A função é mostrar que tem alguma coisa errada, como um funcionamento inadequado do tubo digestivo — explica o pneumologista José Miguel Chatkin.
Quase sempre, o soluço aparece devido à inalação de um ar mais frio ou à ingestão de água gelada, tem duração de poucos minutos e se extingue por si só. Para acelerar seu fim, pode-se segurar a respiração por algum tempo, o que modifica pressões e temperaturas internas, com algum grau de eficácia. Na grande maioria dos casos, não passa, portanto, de uma situação incômoda e um pouco ridícula, que costuma despertar alguns risos ao redor. Mas há alguns casos mais raros em que o soluço exige atenção médica. Se ele for persistente, isso significa que há alguma causa permanente provocando-o – há muitas possibilidades, como uma infecção ou até mesmo algum tumor que invadiu a área por onde está passando o nervo frênico.
— Existem situações complicadas, em que o soluço dura muito tempo e é preciso internar o paciente para fazer anestesia — relata Chatkin.
O pneumologista recomenda que se procure um médico quando o soluço se prolongar por mais de um dia.
Chiados no peito
O pneumologista José Miguel Chatkin compara o chiado no peito ao vento que passa por uma fresta em uma janela e assobia:
— O ar está vindo em uma velocidade e encontra um espaço pequeno para passar. É exatamente o que acontece com o chiado, ou sibilância: o ar está querendo sair, mas existe uma diminuição do calibre do brônquio ou da traqueia por onde ele deve passar. Daí ele chia.
Esse ruído, que às vezes pode ser ouvido a distância, sempre preocupa e exige atenção médica. Ele indica que o ar que entra está encontrando dificuldade para sair, o que pode dever-se a um fechamento da traqueia, mas em geral tem origem em uma inflamação dos brônquios. As causas mais frequentes são asma e bronquite crônica. Em fumantes, pode ser um caso de doença pulmonar obstrutiva crônica. O tratamento envolve uso de broncodilatadores e anti-inflamatórios.
— Geralmente, o chiado vem junto com falta de ar. Na pessoa que tem asma, mesmo que esteja sem sintomas, há sempre uma inflamação presente. Quando chega a ponto de aparecer o sintoma, é porque a inflamação está saindo do controle. É difícil fazer o paciente entender isso, mas o asmático tem de se tratar sempre, mesmo sem sintomas. Por quê? Porque está evitando a próxima crise — alerta Chatkin.
Ruídos abdominais
Quando a barriga ronca, logo associamos à fome. Essa associação está correta. O ruído abdominal resulta de movimentos que ocorrem no aparelho digestivo, principalmente depois de um período de jejum.
— Tem de entender que o aparelho digestivo não é um cano reto. É um sistema hidráulico, um tubo oco recoberto por músculos. Ele produz ondas porque empurra para a frente o conteúdo que há dentro dos intestinos. Isso cria um certo turbilhonamento, um ruído. Após as refeições, esses movimentos são mais rítmicos, acontecem com certa frequência, então não acumula muito líquido, tudo vai sendo empurrado devagarzinho. Mas quando estamos em jejum existem as ondas de limpeza do organismo, que começam no estômago e vão até o intestino grosso. Aí se ouve o ronco com mais facilidade, porque acumulou mais água e mais ar. Não há sinal de doença nisso — explica o gastroenterologista Carlos Francesconi, professor do departamento de medicina interna da UFRGS.
O ronco da barriga pode estar relacionado a uma questão médica no caso de uma infecção intestinal, mas nesse caso os sintomas mais relevantes serão as dores. Francesconi afirma que a situação em que um som abdominal alarma é quando detecta-se o chamado ruído metálico – mas, nesse caso, o som só é perceptível com uso de um estetoscópio.
Estalo nas articulações
Você movimenta alguma articulação – do tornozelo, do joelho, do cotovelo, do pescoço, qualquer uma – e produz-se um estalo ruidoso. O que é isso? Preocupa?
O fisiatra e neurofisiologista Anthero Sarmento Ferreira explica que esse fenômeno, tecnicamente conhecido por crepitação, tem duas vertentes: uma normal e outra indicativa de um problema que requer tratamento.
— O primeiro caso é uma coisa natural, que tem a ver com os gases intra-articulares que nós temos. Com a mobilidade da cápsula articular, esses gases se deslocam e dá-se uma situação de vácuo, que provoca o som. É a mesma coisa que acontece quando estalamos os dedos de propósito. Não tem importância nenhuma do ponto de vista médico — afirma Sarmento Ferreira.
A crepitação, porém, acontece em algumas pessoas como consequência de desgaste da cartilagem articular – nesse contexto, o ruído pode vir do roçar de osso contra osso. Na base do desgaste cartilaginoso, estão patologias como a artrose e a osteoartrose. A indicação pode ser de medicamentos que regenerem a cartilagem e fisioterapia. Como identificar o estalo normal e benigno do outro, associado a patologias? O fisiatra diz que é simples. Se houver dor acompanhando o barulho, estamos falando do segundo tipo. Limitação de movimentos também é sinal de alerta:
— Se o ruído está associado com dor, há um processo inflamatório ativo, tem doença naquela articulação. Se for só o ruído, não tem motivo para se preocupar.
Zumbido no ouvido
Esse ruído tem a particularidade de não ser percebido por mais ninguém além da pessoa que dele sofre. Para essa pessoa, no entanto, a experiência pode ser limitadora.
As causas do zumbido no aparelho auditivo são bastante variadas. Uma delas é o próprio envelhecimento. Em indivíduos de mais idade, as células do ouvido interno começam a apresentar graus diferente de degradação, o que origina o barulho. Entre as situações mais comuns, está o trauma sonoro, que acontece em pessoas que se expuseram a muito ruído devido a sua profissão ou pelo costume de escutar música em alto volume, situações que provocam lesões nas células internas. Até mesmo hábitos errados de postura – como o costume de inclinar a cervical para mexer no celular – podem causar contraturas no pescoço e levar ao zumbido.
— O zumbido aparece através do aparelho auditivo, mas pode vir de outras áreas. Quase sempre, o zumbido indica que há degeneração de algum tecido nobre dentro do sistema nervoso central. Qualquer lesão no sistema nervoso central pode aparecer como zumbido no ouvido — afirma o otorrinolaringologista Sérgio Kalil Moussalle.
A primeira preocupação de um profissional, portanto, será descartar causas mais graves, como um tumor na cabeça. O ruído também pode ser o primeiro sinal de uma AVC em curso. Afastadas essas possibilidades, nem sempre será possível determinar a origem com precisão.
— O paciente que foi bem investigado e não constatou nada nos exames pelo menos vai para casa conformado com o zumbido dele e vai pensar em outras coisas — observa o otorrino.
A conformidade é importante porque, em geral, não se consegue eliminar por completo o barulho enervante. Mas há algumas medicações que podem aliviá-lo, aparelhos auditivos calibrados para abafar a frequência do ruído e a recomendação de atividade física, que reduz a percepção do problema.