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No final de junho, o Brasil conheceu a história de Henrique Arouca, oito anos, um menino do interior de São Paulo que não tinha condições de comprar figurinhas para o álbum da Copa e, por isso, confeccionou o próprio álbum e desenhou as figurinhas, uma a uma.
Essa história, que provocou comoção no Brasil e no Exterior, revela um aspecto marcante da infância no país. Henrique, como milhões de crianças brasileiras, é criado apenas pela mãe, que ganha pouco mais de um salário mínimo, e, por força das circunstâncias, tem de habituar-se a privações. É provável que isso molde a personalidade dele, inclusive para o bem. Talvez se torne alguém resiliente, capaz de lidar com as frustrações, hábil e enérgico diante das dificuldades.
Dias depois de virar notícia, Henrique foi levado a um programa de TV e conheceu um outro Brasil e uma outra atitude perante a infância. O apresentador Luciano Huck presenteou-o com o álbum oficial da Copa – e também com todas as figurinhas necessárias para completá-lo. O menino que havia impressionado por esforçar-se e por lutar contra a adversidade era agora chamado a não fazer esforço algum e a conseguir de mão-beijada. Era como se o álbum que ele mesmo fizera não fosse muito mais válido e valioso do que o outro, produzido aos milhões por uma megacorporação.Essa segunda atitude é bastante conhecida em muitos lares brasileiros.
Na criação dos filhos, há pais que só sabem dizer “sim”, que dão tudo o que a criança quer, que fazem tudo por elas, que estão sempre presentes para proteger e defender. Criam uma espécie de redoma entre seus filhos e o mundo, um comportamento que pode se estender até o fim da adolescência.
O pai-helicóptero
Nos Estados Unidos, esse assunto ganhou notoriedade no debate público recentemente. Reportagens e livros levantaram a hipótese (contestada por outros meios de comunicação e outros livros) de que esse tipo de paternidade, que estaria espraiada na sociedade americana, terá como efeito gestar uma geração de adultos problemáticos, egoístas, autocentrados, incapazes de respeitar regras e limites, totalmente despreparados a lidar com frustrações.
Criou-se até uma designação específica para esse pai superprotetor, que está sempre sobrevoando o rebento, de forma a prontamente atender-lhe as necessidade e protegê-lo dos perigos: é o pai-helicóptero. Apesar da nomenclatura nova, trata-se de assunto surrado, naturalmente. É o clássico tema da criança mimada e dos pais que não são capazes de estabelecer limites. No caso brasileiro, especialistas acreditam que esse tipo de paternidade possa estar em ascensão.
– Uma das maiores demandas que tenho no consultório é justamente o treinamento de pais, que é orientar os pais sobre disciplina, limites e baixa tolerância à frustração por parte das crianças. A falta de limites está relacionada com essa dificuldade de tolerar as frustrações. Há um teórico, T. Berry Brazelton, que diz que a disciplina é o segundo presente mais importante que os pais dão aos filhos. O primeiro é o amor. A segurança que a criança encontra na disciplina é fundamental. A gente vive com limite a vida inteira. Tem horário, tem de parar na fila, tem de parar na sinaleira. São vários limitadores, pequenas frustrações que se têm no dia a dia, mas isso não nos afetará se, desde a infância, aprendemos a lidar com frustrações – afirma a psicóloga Daniela Cifali, especialista em psicologia escolar e em neuropsicologia.
Consequência de um estilo de vida moderno?
Daniela acredita que a ascensão da paternidade superprotetora é estimulada pelo estilo de vida moderno. Como pais e mães têm cada vez menos tempo para dedicar à prole, isso gera um sentimento de culpa que, na prática, traduz-se em atitudes permissivas, em paparicos e na tendência a só dizer “sim”. O fenômeno também estaria relacionado, segundo ela, à diminuição das famílias. Em lugar de vários filhos, hoje os casais típicos têm apenas um, no qual investem tudo.
– Só que investir tudo nem sempre é o melhor. Quando damos tudo que a criança quer, estamos oferecendo satisfação imediata. Pesquisas mostram que mais tarde isso pode se refletir em depressão e em altos índices de drogadição. Onde é que, na sociedade de hoje, há essa satisfação imediata? É na droga. A primeira namoradinha que diz não, na adolescência, pode levar a uma depressão profunda, a uma tentativa de suicídio, porque o jeito como a pessoa aprendeu a lidar com a vida foi sempre tendo seus desejos satisfeitos pelos outros. No trabalho, também podem surgir problemas: dificuldades de relacionamento, não aceitar ordens, mudar muito de emprego – afirma Daniela.
Professor de Psicologia na Universidade Federal do Rio Grande (Furg) e coordenador do centro de estudos sobre riscos e saúde, Lucas Neiva-Silva ressalta que vivenciar frustrações é extremamente importante no processo de desenvolvimento do indivíduo. É necessária, na infância, a experiência de desejar e de não ter acesso ao que se desejou – porque o mundo jamais realizará todas as nossas vontades.
– Digo assim: nunca trate seu filho de um modo diferente do que o mundo irá tratá-lo. O mundo vai dar chances, mas para conseguir as coisas será necessário descruzar os braços, correr atrás e lutar. Mas hoje, como muitas crianças nunca escutam um “não”, crescem achando que o mundo é feito de “sim”. Acabamos criando pequenos imperadores – diz.
Como resultado disso, o especialista cita a criança que julga ter mais autoridade do que o professor na sala de aula, o adolescente que se torna rebelde porque acha que é a escola que tem de se adaptar a ele e o adulto que acredita ser centro do mundo – embora Neiva-Silva ressalte que esses desfechos não são uma regra, variando conforme o indivíduo. Uns podem ter problemas de internalização (ficando mais depressivos ou ansiosos depois de confrontarem um mundo que não lhes dá o que querem), enquanto outros podem apresentar problemas de externalização (em que a revolta contra o mundo conduz a comportamentos agressivos ou consumo de substâncias).
Para o psicólogo, sempre é possível intervir e fazer mudanças, mas quanto mais cedo o problema for enfrentado, mais fácil será esse processo. E quem desempenha o papel fundamental nisso são os pais. Neiva-Silva sugere algumas atitudes práticas, que podem evitar a criação de crianças mimadas, despreparadas para a frustração:
– Tem de trazer a criança para o mundo. Gosto da ideia de, desde muito cedo, ela ter uma mesada, o que funciona como uma educação de gestão financeira. A mensagem é: “Vou te dar o que precisas, mas se quiseres outra coisa, a tua mesada é para isso”. Então a criança tem R$ 20 e quer uma coisa que custa R$ 30. Dá para comprar? Não. E não é o pai que está dizendo esse “não”, é o mundo. Dar tarefas em casa também é superimportante. Coisas bem pequenas, como ajudar a colocar os pratos na mesa, arrumar a cama, colocar no lugar o que se bagunçou, servem para tirar a criança do centro do universo.
Treinamento para os pais
![Daniela Battastini / danibat fotografia Daniela Battastini / danibat fotografia](http://www.rbsdirect.com.br/imagesrc/24603255.jpg?w=700)
Ao perceber a dificuldade das famílias em encontrar um equilíbrio entre a disciplina e a negligência na educação das crianças, muitos profissionais têm oferecido um serviço especializado de treinamento dos pais, com o objetivo de ajudá-los a exercer uma paternidade mais adequada. Moradores de Camaquã, Jéssica Feitosa, 36 anos, e Jauner Garim, 39 anos, buscaram essa alternativa.
Há cerca de dois anos, Sofia, a filha do casal, hoje com seis anos, apresentou problemas sérios de indisciplina. A situação complicou-se quando ela entrou para a escola infantil e teve de se conformar a uma realidade de regras e rotinas. Reagiu com desrespeito e agressividade diante das figuras de autoridade.
Jéssica e Jauner levaram a menina a uma psicóloga, mas acabaram recebendo uma orientação inesperada: quem devia buscar acompanhamento eram eles, não Sofia. Foi assim que começaram a fazer o programa de treinamento para pais, com sessões semanais.
– Foi lá que entendemos que cobrávamos e exigíamos demais dela, que vimos como estávamos prejudicando nossa filha – conta Jéssica.
A mãe atribui o problema às dificuldades que Sofia teve no início da vida. Ela nasceu prematura, com apenas 28 semanas e 700 gramas, permanecendo 53 dias no hospital. Isso, segundo Jéssica, fez com que ela e o marido se tornassem muito protetores, muito exigentes.
– Ela teve de lutar pela vida, e acompanhamos isso. Eu tinha medo de que ficasse atrasada em relação às outras crianças e exigia muito. Nós buscávamos aquela coisa do filho perfeito, do filho modelo, e por isso cobrávamos muito. Isso frustrava a Sofia, mas não nos dávamos conta – afirma.
Em cada sessão do treinamento de pais, o casal recebia tarefas práticas. Depois de um mês, conta Jéssica, Sofia já era outra criança, mais tranquila:
– Uma coisa que mudou foi o reforço positivo. Eu dizia: “Sofia, se tu não arrumares os brinquedos, não vais ver o desenho que gostas”. A psicóloga orientou a fazer o contrário, a dizer: “Arruma os brinquedos para veres o desenho”. Essa foi uma das mudanças que impactaram. Ela passou a atender rápido.
Não dá para generalizar
Mesmo reconhecendo que o problema da falta de frustração na geração atual existe, os especialistas apresentam alguns poréns. Em primeiro lugar, apesar das aparências, não está comprovado que o fenômeno de pais superprotetoras e filhos mimados esteja em franco crescimento. Além disso, ainda que seja possível que perpasse todas as classes sociais, seria algo mais presente nas classes médias e altas. A realidade de uma grande massa de crianças é bem diferente: os pais não lhes fazem todas as vontades, porque simplesmente não têm condições materiais de fazê-lo.
Também as possíveis consequências da chamada "paternidade-helicóptero" devem ser encaradas com cautela. O psiquiatra Christian Kieling, coordenador do Programa de Depressão na Infância e na Adolescência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, procurou levantar pesquisas científicas sobre o tema e encontrou pouca coisa. Um dos estudos, por exemplo, associava um estilo parental superprotetor com situações de depressão em estudantes universitários dos Estados Unidos.
– Eles questionavam se o fato de as novas tecnologias permitirem que os pais fiquem supervisionando os filhos no college (alunos universitários), ligando de manhã cedo para eles acordarem, não atrapalharia o desenvolvimento desses jovens. Mas era um questionamento, não uma conclusão. Também se poderia argumentar o contrário, que é o fato de o adolescente estar deprimido que faz os pais supervisionarem tanto. Não temos um dado robusto, científico, para dizer, por exemplo, que um estilo parental assim ou assado na adolescência vai gerar mais depressão ou mais suicídio. Do que consegui encontrar na literatura médica, essa ideia é alarmista – avalia Kieling.
Para o especialista, a ideia de que estamos criando uma geração que não sabe lidar com as frustrações não funciona na prática:
– O que temos mais estabelecido é a importância do adolescente ter um espaço para oxigenar, para ter sua própria independência, ao mesmo tempo que pai e mãe têm de estar vigiando e protegendo em alguma medida. Há coisas diferentes nos estilos parentais hoje em dia, mas dizer que isso está formando uma geração de guris e gurias mimados, que não sabem lidar com a frustração, é um passo um pouco apressado demais. Essa possibilidade existe, mas não acredito que a literatura científica disponível dê suporte para afirmar isso.