Uma preocupação típica dos pais de hoje, motivo de brigas constantes e muita choradeira no seio das famílias, é o uso de eletrônicos pelas crianças. Diante de filhos ávidos por dedicar todo o tempo disponível a mexericar em smartphones, tablets, computadores e videogames, os adultos reagem com um misto de temor e sentimento de culpa, desconfiando que uma permissividade nesse campo pode trazer danos para o desenvolvimento emocional e intelectual de sua prole.
Enquanto alimentam essa justificável ansiedade, no entanto, deixam de se preocupar com as consequências que a criança pode sofrer por causa da utilização inadequada que eles mesmos – os pais – fazem das engenhocas digitais. É um erro. Uma série de pesquisas recentes alertam que está na hora de os adultos olharem para o próprio rabo. Aqueles hábitos que eles têm de correr para o celular a cada vez que ele tilinta com uma mensagem ou de checar obsessivamente a linha do tempo do Facebook, dizem os estudos, desvia a atenção que devia ser direcionada aos pequenos e traz prejuízos para eles.
Uma boa notícia é que profissionais e instituições da área começaram a despertar para esse problema, dando origem a iniciativas como a campanha Conecte-se ao que Importa, lançada neste ano pelo programa Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Dedica) e pela Associação dos Amigos do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
A partir da percepção de que as crianças estão se sentindo trocadas por celulares e tablets, a campanha tem feito circular, principalmente nas redes sociais, uma série de peças com imagens e frases provocativas, como "Mãe, qual é a senha para conversar com você?", "A conversa em casa pode passar dos 140 caracteres", "Tem gente solicitando a sua amizade dentro de casa", "Quando você larga o celular, é seu filho que vibra" ou "Seu filho passa muito tempo na frente da TV? Pois é, crianças tendem a imitar os pais".
A questão central é que, em um momento no qual os pais já quase não dispõem de tempo para dar atenção e interagir com os filhos, por causa das atribulações do dia a dia, os poucos momentos em que poderiam fazê-lo acabam sendo afetados pela onipresença dos eletrônicos e das redes sociais. Como consequência, as crianças podem se sentir desamparadas, deixadas em segundo plano.
– Isso está aparecendo muito, essa sensação de que a pessoa com quem o outro está falando virtualmente é mais importante do que a presença de quem está ali naquele momento. Para uma criança, a consequência disso é semelhante àquela gerada pelo pai que trabalha demais, de falta de tempo para o contato íntimo. Se a criança nunca se sentir interessante o suficiente para encher a vida dos pais, para os pais estarem interessados nas suas brincadeiras, nos seus assuntos, nas suas histórias, isso pode influenciar em aspectos como a autoestima, a segurança, a sensação de pertencimento à família, a proximidade emocional com os pais e até o desenvolvimento da empatia. As telas não têm problema, desde que também exista contato real, olho no olho, que se brinque, se conte história, se tenha contato, inclusive físico, de abraço, de afeto, de conhecer bem – afirma a psicóloga Aline Restano, integrante do Grupo de Estudos sobre Adições Tecnológicas (Geat).
Capacidade de concentração é alterada
A psicóloga Aline Restano observa que a obsessão dos adultos com seus brinquedos tecnológicos pode estar na origem de reações infantis como ficar agitado e briguento ou fazer escândalo na frente de estranhos – formas que a criança encontra para, já que não foi possível pelo positivo, conquistar a atenção dos pais pelo negativo. Mais do que essas reações comportamentais, no entanto, começam a surgir evidências de que o foco exagerado dos adultos nas telas táteis pode impactar também no processo de desenvolvimento da criança. O psicólogo Chen Yu, da Universidade de Indiana (EUA), publicou, no ano passado, um estudo mostrando que, quando o pai desvia a atenção durante uma brincadeira com o filho, a capacidade de concentração da criança também é afetada.
Um outro trabalho, feito na Universidade da Califórnia, com ratos, testou o que acontece quando uma mãe tem sua atenção distraída do cuidado com os filhotes. Os cientistas tiveram o cuidado de que os bebês ratos passassem a mesma quantidade de tempo com as suas mães, mas com qualidade de atenção diferente. Aqueles cujas mães foram distraídas tiveram um desenvolvimento emocional pior. A pediatra Tallie Baram, autora do estudo, interpretou o resultado como demonstrativo de que existe um determinado momento na infância em que a plena atenção dos pais é fundamental para o posterior desenvolvimento emocional, o que pode ser válido também para humanos.
O que se sabe é que a atenção é essencial para o desenvolvimento infantil – e que desviar o foco para celulares e assemelhados pode afetá-la.
– Quando a gente está com os filhos e está conectado com outras coisas, a interação sofre muito. A TV ligada no fundo, um bipe do WhastApp, o telefone tocando, tudo isso desvia o foco da atenção dos pais, impacta na qualidade da interação. Principalmente as crianças pequenas, que precisam muito da participação dos pais no desenvolvimento. Quando são novinhas, elas se desenvolvem, inclusive intelectualmente, recebendo afeto, recebendo atenção. Tem a coisa da capacidade que é herdada, mas o potencial se realiza se são dadas as condições. Um prejuízo na interação, se for excessivo, vai ter repercussões no desenvolvimento da criança – observa a psiquiatra da infância e da adolescência Laura Magalhães Moreira.
O também psiquiatra da infância e da adolescência Daniel Spritzer, coordenador do Geat, concorda que a atenção dos pais é fundamental para os filhos e que a falta ou a interrupção dela é sentida pelos pequenos, que tendem, inclusive, a interpretá-la como culpa sua, o que pode trazer consequências.
– Mesmo o pai estando fisicamente presente, é como não estivesse ali, ou, às vezes até pior, porque está ali, mas fazendo outra coisa, o que na cabeça da criança pode ser lido como uma rejeição. Mas é importante lembrar que o desenvolvimento psicológico é supercomplexo, depende de muitos fatores, então é complicado fazer uma projeção de efeitos a longo prazo. O que se pode dizer é que geralmente as crianças se desenvolvem de maneira muito melhor do que se imagina. Por isso, afirmações mais pessimistas sobre o desenvolvimento infantil geralmente não se confirmam a longo prazo.
Os especialistas recomendam, como vacina contra eventuais danos, que os pais aproveitem o tempo com os filhos para realmente ficar com os filhos, dedicando atenção plena, mantendo a TV desligada e o celular a distância, no silencioso. Também lembram que, para aquela onipresente preocupação com a avidez das crianças por eletrônicos, o melhor remédio é os próprios adultos limitarem suas interações digitais – porque os pequenos nada mais fazem do que reproduzir o exemplo dado pelos pais.