Famosa nas primeiras décadas dos anos 2000, a chamada “pílula do câncer” continua a ser vendida sob a falsa promessa de cura da doença, como mostra reportagem do Grupo de Investigação (GDI) do Grupo RBS. Especialistas em oncologia ressaltam que a ineficácia do produto foi comprovada por estudos.
Substâncias com supostas propriedades anticâncer – tanto em termos de prevenção quanto de tratamento – costumam surgir regularmente, conforme os médicos ouvidos pela reportagem. Os falsos tratamentos aparecem como medicações que conseguiriam curar todos os tipos de câncer, sem efeitos colaterais, explica Sergio Roithmann, chefe do serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento (HMV).
As promessas seduzem pessoas que, muitas vezes, estão desesperadas. É comum, em pacientes com câncer, a busca por tratamentos alternativos ou complementares, muitos com um viés milagroso ou, por vezes, de teoria da conspiração – como aquelas que afirmam que a indústria farmacêutica não quer que esse remédio seja desenvolvido e divulgado, pois teria um impacto financeiro negativo, lembra Alice Zelmanowicz, chefe do serviço de Oncologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).
— Não existe “pílula do câncer” — afirma Roithmann. — Nós ainda não temos tratamentos definitivos para vários tipos de câncer. Nós fizemos muitos avanços, nós estamos curando muitos pacientes, mas tem situações ainda muito críticas.
Fosfoetanolamina sintética
A pílula do câncer, conhecida sobretudo por conter fosfoetanolamina sintética como princípio ativo, possui também uma série de outras substâncias e impurezas, ressalta Alice, também professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
A “pílula” foi criada ao isolar e sintetizar a fosfoetanolamina, uma substância produzida pelo próprio corpo humano, que faz parte do sistema imunológico. O criador da pílula acreditava que ingeri-la reforçaria o sistema imune, funcionando como uma imunoterapia.
À época, a posição do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e do Ministério da Saúde era de que não havia nenhuma evidência científica que indicasse que a pílula pudesse ter algum efeito positivo nos casos de câncer, recorda Gélcio Mendes, oncologista e coordenador de Assistência do Inca.
Com a crescente mobilização popular em torno do assunto, que chegou a envolver o Congresso Nacional, diversas instituições de pesquisa e universidades do país foram demandadas a conduzir estudos, por volta de 2015, na tentativa de validar a pílula como medicamento.
Foram desenvolvidos estudos pré-clínicos, em culturas de células em tecidos tumorais e com animais, para evidenciar se havia um princípio ativo real. A substância teve “baixíssima atividade nos tumores” nas células, lembra Mendes. Nos animais, não se observou efeito sobre o câncer. Um estudo feito no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo também não obteve resultados favoráveis. As pesquisas, portanto, demonstraram que não há atividade biológica, acrescenta Alice.
— Em 2016, 2017, entendeu-se que, do ponto de vista científico, a recomendação para a utilização dessa pílula entre os pacientes não era uma conduta adequada. E hoje, na oncologia, a gente entende que não é um medicamento a ser utilizado, não é uma substância que a gente deva indicar para nenhum paciente — ressalta Gélcio Mendes.
Na ocasião, ficou bem documentado que não havia efeito algum da medicação, nem expectativa de que pudesse valer a pena aprofundar os estudos, reforça Roithmann, do HMV. Por esses motivos, os estudos não evoluíram nem para a fase clínica (com humanos).
— Ela nunca foi nem solicitada, nem encaminhada para ter um registro na Anvisa como medicamento ou suplemento alimentar. Não existe pesquisa de qualidade que embase a solicitação. É uma coisa que não funciona. Foi testado e não funciona — acrescenta Alice Zelmanowicz.
Falsa promessa
O caminho até a aprovação de um medicamento é longo. Por vezes, pequenos sinais, no primeiro estudo in vitro, em células, podem surgir, mas não se confirmam nas próximas etapas – como no caso da fosfoetanolamina, cita Roithmann.
Ele aponta que com a rápida divulgação de informações na atualidade, ignoram-se estudos e a realidade, em busca de uma espécie de solução mágica — que pode fazer mal às pessoas. Algumas chegam a abandonar seus tratamentos por essas ilusões. Por trás disso, afirma, há pessoas faturando com as vendas, enquanto os pacientes estão, na verdade, comprando um placebo.
— Infelizmente, as pessoas estão sendo lesadas. Porque está se criando uma falsa esperança. E tem depoimentos na internet, mas isso é tudo muito mágico, muito fantasioso e, na maioria das vezes, não corresponde à realidade — ressalva.
Na visão de Alice, do HCPA, há outra situação que também promove danos à população: a divulgação por boa-fé, quando há falta de conhecimento acerca do desenvolvimento de medicamentos e suplementos, ou comercialização irregular com a crença de que está ajudando.
Para Gélcio Mendes, do Inca, o problema está na recomendação como cura. A pílula continua a ser vendida, como uma espécie de suplemento. Com isso, o uso continua — o que é compreensível, pois tratam-se de pessoas em situação de alta vulnerabilidade, que buscam tentar melhorar as suas chances, pondera Roithmann, oncologista do HMV. A lógica é a mesma de uma crendice popular, acrescenta Mendes.
Existe remédio milagroso?
Não existe remédio milagroso que cure ou previna o câncer, salientam os médicos. Alguns medicamentos podem funcionar para vários tipos de tumores, mas não existe um tratamento ou remédio eficaz para todos – o câncer é um conjunto de doenças diferentes.
Roithmann alerta que, ao ver uma propaganda de uma medicação ou um procedimento que cura todos os tipos de doença, sem nenhum efeito colateral, é preciso desconfiar de que possa ser um golpe. O desenvolvimento de tratamentos contra o câncer aponta, justamente, na direção contrária: da individualização e da medicina de precisão. O oncologista recomenda que as pessoas conversem com seus médicos sobre essas informações.
Os perigos do tratamento alternativo
Alguns tratamentos parecem inocentes, mas, por vezes, geram efeitos colaterais. Mesmo os naturais – como fitoterápicos ou ervas – podem causar náusea ou diarreia, por exemplo.
De acordo com os médicos, a interação pode aumentar efeitos colaterais ou até mesmo remover o efeito do tratamento convencional. Mais grave ainda é quando pacientes abandonam os procedimentos em prol de um método alternativo não comprovado ou estudado cientificamente. A decisão pode afetar as chances de recuperação.
É perigoso utilizar medicamentos e suplementos alimentares ou realizar procedimentos que não sejam aprovados pelas agências reguladoras, pois há riscos.
Se o item nunca foi submetido para aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), talvez não tenha a segurança e qualidade necessárias para tal – ou seja, os dados, os efeitos colaterais e os riscos são desconhecidos, já que nunca foi testado adequadamente.
Por outro lado, caso a aprovação tenha sido solicitada, mas recusada, a decisão é baseada, geralmente, ponderando que o benefício potencial é inferior ao risco. No caso da fosfo, não há conhecimento aprofundado à população acerca dos malefícios – por não ser regulamentada, a substância não possui bula, que é fundamental, pois descreve os riscos.
A evolução nos tratamentos do câncer
O tratamento contra o câncer é complexo. Atualmente, inclui diversos recursos, mas depende de muitos fatores: do tipo de câncer, do estágio, da extensão, das condições do paciente, de outras doenças e outros tratamentos. Com novas tecnologias, há um grande desenvolvimento da terapia contra o câncer. Em outra frente, as drogas estão cada vez mais específicas e adaptadas aos tipos de tumor.
— Lembrando que a melhor maneira de curar o câncer é detectando precocemente. É isso que faz toda a diferença — salienta Sergio Roithmann, chefe do serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento (HMV).
De modo geral, o tratamento do câncer é realizado com uma associação de várias modalidades:
- Cirurgia: remove o tumor localizado
- Radioterapia: destrói células do câncer localmente
- Tratamento sistêmico: principalmente quando a doença já está mais disseminada, atua em todo o corpo. Inclui recursos como:
- Quimioterapia convencional: entra na circulação sanguínea e atua onde quer que o tumor esteja, atingindo as células cancerígenas
- Hormonioterapia: bloqueia hormônios em casos nos quais o câncer possa estar sofrendo efeitos destes
- Terapia-alvo: identifica características específicas das células do câncer para que sejam destruídas
- Imunoterapia: reforça e recupera a capacidade do sistema imune de reconhecer as células e destruí-las
- Terapias biológicas: utiliza mecanismos de ação do funcionamento normal ou anormal do câncer para combater o crescimento