Na foto que ilustra esta reportagem, o escritor e analista aposentado Sadi Pierozan, 56 anos, abraça, sorridente, o personagem Zé Gotinha, símbolo da campanha contra a poliomielite no Brasil. Em 20 de agosto, Dia D de vacinação, Pierozan participou do evento na Redenção, em Porto Alegre, tentando sensibilizar as famílias para a importância da imunização das crianças em um cenário de queda nos índices que persiste há anos. Quer evitar que histórias de dor e sacrifício como a sua se repitam.
Natural de Vanini, no norte do Rio Grande do Sul, Pierozan teve paralisia infantil diagnosticada nos primeiros meses de vida — de repente, a perna esquerda ficou flácida e teve o desenvolvimento prejudicado. Ele é incapaz de enumerar todas as cirurgias a que foi submetido durante a infância, passada longe dos pais, na Capital, para que pudesse receber tratamento no Educandário São João Batista, em regime de internato.
O analista mora em Canoas, na Região Metropolitana, é casado com a dona de casa Sônia Maria Gomes da Silva Pierozan, 57 anos, e pai de Monique, 27 anos, e Luana, 17 anos. Coordena a Subcomissão da Pólio no Distrito 4670 da rede Rotary, que abrange cerca de 60 clubes em 33 municípios. No último final de semana, esteve em São Paulo, palestrando sobre o tema.
Nesta entrevista a GZH, ele relembra episódios marcantes de sua trajetória e faz um apelo emocionado pelo comparecimento às unidades de saúde. Diante da baixa adesão, o governo federal decidiu estender a campanha, direcionada à faixa etária entre um e quatro anos, até o final de setembro. Até o momento, o Rio Grande do Sul, por exemplo, atingiu somente 50% da meta, de acordo com a Secretaria Estadual da Saúde (SES).
— Vacinar é um ato de amor. Que a gente não perca mais nenhuma criança para a pólio. Depois de tantas décadas de vida, de tudo o que eu conquistei, já ficou para trás aquela vergonha de andar na rua, mas demorei para aceitar. Me emociono mais com a possibilidade de perdermos essa guerra — diz Pierozan, que tem problemas de mobilidade até hoje.
Diagnóstico: da noite para o dia, a perna esquerda flácida
“Morávamos para fora, em Vanini, então distrito de Casca. Meus pais eram agricultores, plantavam de tudo, um pouco para a subsistência. A vacina contra a pólio não chegou lá. O pessoal desconhecia, não chegava. Teve um surto na cidade. Minha mãe me contou, mas nunca fui atrás de detalhes. Eu tinha cinco meses. Foi da noite para o dia. Acordei com a perna esquerda flácida, ela não parava, ia para o chão. Aí me levaram no médico, e ele já disse o que era.”
Tratamento longe de casa: tentativa de fuga, correndo, de quatro
“Minha mãe tomou conhecimento de que, em Porto Alegre, tinha uma instituição que fazia tratamento das sequelas da pólio, o Educandário São João Batista. A partir dos três anos, me tornei interno. Foi um período traumatizante. Meus pais me levavam em março e me buscavam em dezembro. Passava o ano todo sem vê-los. Não tínhamos recursos, éramos cinco irmãos.
Tem uma lomba íngreme na frente do Educandário. Uma vez, minha mãe já estava comigo quase no portão, e eu desci a lomba de quatro, com as mãos e os pés no chão, fugindo. Não queria ficar. Depois me levaram de volta. Outra vez, ela me colocou em um ônibus lá no Interior. Eu era bem pequeno. Uma tia foi avisada para me buscar na rodoviária de Porto Alegre. O ônibus fez uma baldeação, desci, todos os passageiros trocaram de ônibus. Cheguei em outro ônibus, outro horário. Todo mundo estava desesperado.
No Educandário, fazia sessões de fisioterapia e estudava no turno inverso. Os médicos avaliavam, encaminhavam para cirurgias. Fiz inúmeras cirurgias, perdi a conta, todas na Santa Casa. Uma delas foi porque meu pé ficava praticamente pendurado. Eu arrastava o pé; se o erguesse, tropeçava. Depois, passei a cair menos.
Uma das operações, aos 11 anos, é um trauma para mim até hoje. A perna esquerda, a paralisada, tinha cinco centímetros de diferença em relação à direita. Cortaram na metade o osso debaixo do joelho, serraram, para aumentar a distância de uma ponta do osso à outra. O gesso sempre me dava muita coceira. Comecei a coçar com uma agulha de crochê, depois com agulha de tricô. Quando não dava mais conta, passei a coçar, por cima do gesso, com uma régua. Uma manta de algodão que estava embaixo do gesso subiu, formou uma espécie de garrote perto do joelho, trancando a circulação. Saía um cheiro ruim da perna. Uma freira insistiu para o médico abrir o gesso e olhar. Havia muitas feridas.
Para você ter ideia, ele queria amputar minha perna naquela hora mesmo. A freira pediu 24 horas para ver se voltava alguma coloração. Fiquei quase dois meses tomando injeções de penicilina. Ela foi em busca de doações, remédios. Salvou a minha perna.”
Lembranças boas: a convivência com crianças na mesma situação
“Minha infância teve coisas boas. Outras crianças estavam no Educandário na mesma situação que eu. A maioria tinha sequelas da pólio: umas mais, outras menos, algumas em cadeiras de rodas. Alguns internos tinham deficiência mental, mas a quase totalidade estava lá por sequelas de poliomielite.
Eram duas alas separadas: um dormitório para 30 meninos e outro para 30 meninas. Acordávamos cedo, fazíamos a higiene, esperávamos abrir o refeitório. Muita fisioterapia. Tinha colégio lá dentro também.
Quando olho para trás, vejo que isso foi indispensável na minha vida, mas, obviamente, naquela época, tudo que eu pedia era que cada ano lá fosse o último. Hoje, com pensamento de adulto, lamentaria muito se não tivesse tido essa oportunidade. As cirurgias foram fundamentais para me colocar de pé. Cheguei lá sem caminhar. Andava com as mãos e a perna boa no chão, a outra pendurada. Corria assim, inclusive.”
O retorno para casa e os anos seguintes
“Fiquei até os 11 anos no Educandário. Meus pais eram, de fato, muito pobres. Mudaram-se várias vezes. Por dois anos, morei de favor para poder estudar. Pelos 13 anos, voltei para Vanini.
Saí do Educandário usando uma órtese, tipo uma armadura por fora da perna. Não precisava de muleta. Usava muleta quando queria andar mais rápido. Aí a órtese foi ficando pequena, quebrou. Passei um tempo sem usar. Fizeram uma campanha para conseguir outra, mas não consegui me adaptar. Acabou sendo positivo, comecei a colocar mais a perna no solo. Fui evoluindo, comecei a usá-la para fazer o apoio. Isso me libertou das duas bengalas, passei a usar só uma.
Já joguei basquete de cadeira de rodas. Fraturei o fêmur da perna esquerda há 17 anos. Larguei o basquete e tive que me agarrar a outra bengala. Em outra ocasião, escorreguei na calçada e fraturei o pulso. Hoje em dia, uso uma bengala dentro de casa. Na rua, passei a usar duas.”
Namoro com a “morena de cabelos cor da noite”
“Aos 19 anos, retornei a Porto Alegre em busca de melhores oportunidades. Vim com dois sonhos: aprender a tocar violão e passar no concurso do Banco do Brasil. Não consegui nenhum (risos). Ia todo dia para o Sine, no setor que encaminhava pessoas com deficiência para vagas de trabalho. Fiquei seis meses dando com a cara na porta. Meu dinheiro começou a se esvair. Procurava qualquer vaga, o que aparecesse. Me falavam que já tinham preenchido. Pode ser que a deficiência tenha contribuído negativamente.
Pensei em voltar para o Interior. Apostei meus últimos caraminguás no jogo do bicho. Ganhei, e isso me permitiu ficar mais um tempo. Consegui emprego em uma concessionária de automóveis. Eles faziam questão de que fosse alguém com deficiência. Eu atualizava os dados dos clientes e registrava os horários de início e término do serviço dos mecânicos.
Aos 21 anos, morava em um porão que passei a dividir com um ex-colega do Educandário. Era um lugar extremamente pequeno, de três metros por três, mais um banheirinho. Um dia, ele estava com a namorada, e fui dar uma volta. Entrei em um salão de baile perto da Avenida Protásio Alves para passar o tempo. Fiquei escorado no balcão, olhando o movimento. Em uma mesa, tinha uma morena com cabelos cor da noite. Ela percebeu que eu a olhava. Estava com o irmão, e eu comecei a achar que era o namorado dela.
Lá pelas tantas, ela fez um sinal com o copo de cerveja, me convidando. Meu coração disparou. Eu teria que ir caminhando até lá. Estava com bengala, não tinha como esconder. Ela percebeu minha indecisão e veio até mim. Conversamos. Combinamos outro encontro para o dia seguinte. Ela me deu um anel (como garantia de que compareceria ao encontro). Estamos juntos até hoje. Temos duas filhas. Fiz faculdade de Direito. Passei em um concurso do Tribunal Regional do Trabalho. Me aposentei como analista há dois anos.”
A tristeza pela queda nos índices de vacinação
“Encaro isso com muita tristeza. Cada criança que perdermos para a pólio, é uma coisa lamentável. Quando cheguei à Redenção, no Dia D contra a pólio, estava bem vazio. Saí andando. Descobri uma pracinha lotada de crianças. Muitos pais fechavam a cara, achavam que eu era um deficiente pedindo dinheiro. Abordava e dizia: ‘Sou do Rotary. Ali adiante tem um trailer da prefeitura, estão vacinando’. Quando se davam conta de que eu não estava pedindo dinheiro, alguns me parabenizavam. Para os mais resistentes, mostrava as bengalas: ‘É isso que você quer para o seu filho?’ A adesão à campanha foi excelente na parte da tarde.”
Apelo às famílias: vacinar é ato de amor
“Não deixem de vacinar. Vacinar é um ato de amor pela criança. Que a gente não perca mais nenhuma criança para a pólio. Depois de tantas décadas de vida, de tudo o que eu conquistei, já ficou para trás aquela vergonha de andar na rua, mas demorei para aceitar. Eu me emociono mais com a possibilidade de perdermos essa guerra. A pandemia e as fake news atrapalharam muito a vacinação.”
Esquema do calendário básico infantil:
Vacina Poliomielite 1,2,3 inativada (VIP)
Dose: 0,5 mL via intramuscular
Esquema: três doses (aos dois, quatro e seis meses)
Vacina Poliomielite 1,3 atenuada (VOP – gotinha)
Dose: duas gotas, por via oral
Esquema: reforço aplicado aos 15 meses de idade e aos quatro anos