Há alguns meses, Thais Krischer, 44 anos, buscou vacinas contra covid-19 e HPV no Centro de Saúde Modelo, em Porto Alegre. Por não integrar o público-alvo das imunizações, diz ela, os pedidos foram negados.
Diante da resposta, a analista de TI chegou a questionar se poderia se cadastrar para receber as doses caso sobrassem ou estivessem perto do vencimento. Porém, foi informada de que essa possibilidade não existe.
Ao final de dezembro, Thais deparou com uma reportagem informando que, ao passo que faltam vacinas em 40% das cidades do Rio Grande do Sul, R$ 32 milhões em imunizantes vencidos foram descartados no Estado em três anos e nove meses. Uma das justificativas é a hesitação vacinal devido à desinformação, resultando em baixa procura.
— As vacinas que estão sobrando estão sendo negadas para quem tem interesse — relata Thais. — No caso da vacina de HPV, eu teria de pagar algo em torno de R$ 3 mil na rede privada.
Após o episódio, a analista de TI entrou em contato com a ouvidoria do Ministério da Saúde para sugerir que pessoas interessadas em imunizantes, mas que estão fora dos grupos estipulados, possam se cadastrar para recebê-los antes de vencerem.
— A resposta que obtive foi, resumidamente, não — relata. — Ou seja, o governo prefere descartar vacinas ao invés de disponibilizá-las para quem tem interesse antes do fim da validade.
Redirecionamento de doses
Questionada sobre a impossibilidade de pessoas fora dos grupos indicados se vacinarem para evitar o descarte de doses, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) informou à reportagem, por nota, que o Programa Estadual de Imunizações segue as indicações de vacinação, público-alvo, faixa etária e tipo de imunizante de acordo com as recomendações do Ministério da Saúde.
"Não há orientação de cadastro para público em geral, visto que as vacinas possuem objetivos específicos para cada ciclo de vida", afirma o texto.
As prefeituras, entretanto, podem solicitar o redirecionamento de doses para outros públicos caso estejam sobrando e perto do vencimento, conforme a SES.
O Ministério da Saúde, por sua vez, informou, em nota, que a gestão é realizada de forma tripartite, com as ações de vacinação sob responsabilidade dos serviços de saúde estaduais e municipais.
A ampliação da oferta de vacinas para grupos além dos definidos pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI), diz o Ministério, é uma decisão dos gestores locais, "que podem avaliar, conforme as circunstâncias, a necessidade de otimizar o uso de imunobiológicos, especialmente quando próximos do vencimento. Essa ampliação, no entanto, deve estar respaldada por evidências que garantam a segurança da utilização em outros grupos".
Sobre a possibilidade de criar um cadastro para interessados que não integrem o público-alvo, como solicitou Thais, o Ministério não se manifestou.
Demanda dos municípios
Em entrevista ao programa Gaúcha+, da Rádio Gaúcha, na última segunda-feira (30), Marcelo Vallandro, diretor adjunto do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs), vinculado à SES, informou que os lotes de vacinas são distribuídos de acordo com a demanda dos municípios.
No caso da vacinação contra a covid-19, a estratégia é focada em grupos prioritários, nos quais a doença gera maiores efeitos — pessoas saudáveis e fora dos grupos, portanto, não têm esquema previsto.
Vallandro afirmou que o redirecionamento de doses é realizado pelos municípios recorrentemente, com controle de estoques, busca ativa e com base nas prioridades de vacinação. Em diversas campanhas, como no caso da gripe, inicia-se com a vacinação nos grupos estipulados e, em dado momento, o público-alvo é ampliado.
— O importante é que, em relação às doses, os municípios, a partir do uso da vacinação, façam a solicitação para a SES para que isso seja repassado. É muito recorrente — afirmou na entrevista.
Desta maneira, segundo Vallandro, caso um município identifique que possui lotes perto da validade e a procura esteja baixa, pode solicitar autorização ao Estado para ampliar a imunização para outros públicos.
— Essa logística é superimportante, e todo o cuidado é feito, mas a gente precisa ter a busca dos indivíduos pela vacina nos municípios, e a sua requisição. O que a gente tem visto, particularmente na covid, é uma baixa procura, e isso consequentemente acaba gerando o vencimento da vacina, por baixa demanda — apontou.
Conforme Vallandro, a SES trabalha junto ao Ministério da Saúde para superar a hesitação vacinal e fazer uso das vacinas em tempo. O diretor adjunto também alegou que muitas doses vêm com prazo curto e reforçou que o vencimento não ocorre por falta de monitoramento das equipes.
Procurada para comentar a experiência de Thais no Centro de Saúde Modelo relatada no início da reportagem, a assessoria da Secretaria de Saúde de Porto Alegre afirmou que "nunca se teve uma orientação direta por parte do Estado com relação a esse redirecionamento (de doses)".
Em nota, a Secretaria complementou: "No caso da vacina contra a covid-19, trabalhamos internamente para otimizar a aplicação nessas situações, sem comprometer a logística e sem a criação de listas externas. Já as vacinas de dose única, como a HPV, possuem uma gestão de estoques ainda mais controlada, minimizando perdas".
Microplanejamento
O Ministério da Saúde afirma em nota que, por meio do microplanejamento, oferece treinamentos e recursos a Estados e municípios para apoiar iniciativas que promovam "maior eficiência logística e ampliem o acesso da população aos imunizantes".
"Embora as situações locais sejam responsabilidade dos gestores locais, estas podem ser discutidas com as demais esferas do SUS para definir estratégias conjuntas que otimizem o uso dos imunobiológicos", prossegue o texto.
"As justificativas para o descarte de cada vacina levam em conta as particularidades enfrentadas em cada situação específica", informa o texto. "Perdas percentuais de vacinas são previstas em políticas públicas de saúde, devido à necessidade de reservas técnicas, como indicado em documentos da Organização Pan-Americana da Saúde (PAHO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS)."
O Ministério da Saúde ressalta que realiza o remanejamento de doses entre Estados e municípios, visando a reduzir perdas.
Recomendações de imunização
Em nota, a SES informou que as recomendações atuais para imunização contra a covid-19 no país são estabelecidas de acordo com as "faixas etárias, os imunizantes disponíveis, as recomendações dos fabricantes e os resultados de estudos nacionais e internacionais".
O Ministério da Saúde estabelece, no calendário de rotina, a vacinação de crianças de seis meses a menores de cinco anos, idosos e gestantes, de forma a reduzir a ocorrência de casos graves e mortes.
Nos grupos especiais, estão incluídas pessoas com maior vulnerabilidade e maior risco de desenvolver formas graves da doença, como pessoas vivendo em instituições de longa permanência, profissionais da saúde, indígenas, ribeirinhos, pessoas imunocomprometidas, pessoas com comorbidades, pessoas em situação de rua, entre outras.
Pessoas que não pertencem a nenhum grupo especial e nunca foram vacinadas contra a covid-19 podem receber uma dose da vacina disponível e indicada para a idade.
Já a vacina contra o HPV, segundo a recomendação do Ministério da Saúde, está indicada, no SUS, na vacinação de rotina nas unidades básicas de saúde, para crianças e adolescentes de nove a 14 anos. Também está indicada em situações especiais, por meio do Centro de Referência para Imunobiológicos Especiais (Crie), para situações como pessoas vivendo com HIV/aids, pacientes oncológicos, transplantados e pessoas com imunodeficiência primária.