A Rússia anunciou nesta semana o desenvolvimento de uma vacina contra o câncer – a tecnologia, que utiliza RNA mensageiro (mRNA), não é novidade, conforme especialistas. Além disso, o imunizante tem caráter terapêutico, e não preventivo.
O desenvolvimento de vacinas com tecnologia mRNA contra o câncer vem sendo estudado há cerca de 15 anos, principalmente contra melanoma, câncer de pulmão e pâncreas, lembra Rafael Vargas, chefe do Serviço de Oncologia da Santa Casa e professor da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Foi graças a esses estudos que a tecnologia pôde ser empregada para a produção de vacinas contra a covid-19, utilizando a mesma plataforma, adiciona Paulo Gewehr, infectologista do Hospital Moinhos de Vento.
A tecnologia trouxe novas oportunidades para o desenvolvimento de vacinas mais específicas, mais rápidas e sem envolvimento de produtos biológicos, já que são produzidas sinteticamente, sem micro-organismos vivos, conforme Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBIm). Isso possibilita o desenvolvimento das chamadas vacinas terapêuticas.
O câncer gera mutações no DNA, produzindo neoantígenos, que são vistos como corpos estranhos, fazendo com que o sistema imunológico ataque o câncer. A tecnologia utiliza o mRNA para produzir proteínas semelhantes às do tumor, que são reconhecidas como antígenos, fazendo com que o sistema imunológico crie anticorpos.
O princípio é o envio de uma espécie de “receita” que ensina o organismo a produzir determinada proteína – que pode ser um anticorpo contra uma doença ou uma proteína específica para combater um tumor ou tratar Alzheimer ou diabetes, por exemplo. O recurso pode ser benéfico no controle de doenças, salienta Kfouri.
As vacinas são personalizadas – isto é, são desenvolvidas para cada paciente que tem ou já teve a doença. Cada tumor é diferente do outro. A chamada imunoterapia com RNA mensageiro identifica os antígenos do tumor específico do paciente e constrói um imunizante direcionado a ele.
— Antigamente, se dava um micro-organismo, um vírus ou uma bactéria, morta ou atenuada, e fazia o sistema imunológico desenvolver anticorpos. No RNA mensageiro, você não está colocando o tumor lá, está colocando um código que vai fazer sintetizar uma proteína que vai ser reconhecida pelo sistema imunológico como antígeno e vai criar anticorpos. E aí, se vier a desenvolver câncer no futuro, os anticorpos vão atacar — destaca Vargas.
Ao longo da última década, novas plataformas de DNA e RNA mensageiro surgiram, acelerando a produção da vacina e diminuindo custos – algo que costumava ser demorado e caro.
Cautela nas expectativas
A Rússia afirmou que os resultados foram promissores nos estudos pré-clínicos (ou seja, em laboratório, podendo ser em rato ou culturas de células). Os especialistas, contudo, são cautelosos. Não há dados científicos disponíveis para a comunidade científica. Para validar o uso da tecnologia, são necessários estudos em humanos – os chamados ensaios clínicos, de fase três, que comparam a vacina com o tratamento considerado padrão, com um número adequado de pacientes, para comprovar a eficácia.
— Tem várias vacinas de 2013 a 2019 que são vacinas para o câncer de melanoma, pâncreas, pulmão, glioblastoma, que avançaram para estudos com seres humanos e falharam em demonstrar benefício. Não quer dizer que não funciona, mas ainda estamos conhecendo melhor como funcionam essas vacinas, desenhando melhor os estudos em seres humanos para ver se é ou não promissor — avalia Vargas.
Para o vice-presidente da SBIm, a tecnologia russa, como toda nova vacina, precisa passar por todas as fases de desenvolvimento e de estudos para comprovar que é segura e eficaz.
— As classes de vacinas chamadas vacinas terapêuticas, que não são para prevenir, mas para tratar doenças, pode ser um futuro, e não tão distante quanto a gente imaginava — pontua.
Para Vargas, o anúncio da Rússia pode ser classificado como uma espécie de sensacionalismo. Gewehr avalia tratar-se de “uma mera notícia”, que necessita de confirmação científica – não se sabe a confiabilidade das informações até a publicação dos resultados.
O oncologista da Santa Casa ressalta que as vacinas que, atualmente, ajudam a evitar o desenvolvimento de câncer e estão disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) são os imunizantes contra a hepatite B, que previne a cirrose e, consequentemente, câncer de fígado; e contra o HPV, prevenindo infecções contra o papilomavírus humano, que induz câncer no colo do útero.