Se o Plano Nacional de Imunização (PNI) do Brasil é considerado modelo para o mundo, o Zé Gotinha é o garoto-propaganda desse status. Criado em 1986 pelo publicitário e artista mineiro Darlan Rosa, hoje com 76 anos, o boneco que une os traços das duas gotinhas da vacina contra a poliomielite marcou gerações. Com 35 anos de história, o personagem ganhou vida e estampou as principais campanhas de vacinação do país.
— Ele é o personagem mais conhecido do país. E não é por eu ter sido o criador. Mas ele é conhecido nos recantos da Amazônia, onde nem a televisão chegava. Ele é um patrimônio do Brasil — defende Darlan Rosa.
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Mas, antes desse sucesso, o Zé Gotinha precisou superar a resistência interna do próprio Ministério da Saúde, que não acreditava no potencial do boneco para liderar uma campanha de imunização. Ainda mais quando se tratava de uma ação para erradicar a paralisia infantil no país, com a meta de vacinar 95% das crianças menores de cinco anos em apenas um dia.
— Foi quando eu tive a seguinte ideia: fazer um concurso pra dar o nome ao personagem. Com isso, a gente faria o envolvimento da criança com o processo de vacinação e, se houvesse uma resposta massiva, a gente poderia pressupor que o personagem tinha o carisma para liderar uma campanha — conta o artista.
Mais de 11 milhões de cartas foram enviadas com opções de nomes, sendo 10 mil sugerindo o título de Zé Gotinha.
— Foi algo impressionante. Os Correios entregavam as cartas de caminhão, tamanha a quantidade — lembra.
Foi assim que o personagem ganhou fôlego – e a preferência da população – na guerra contra as doenças.
Confira, a seguir, a íntegra a entrevista com o criador do Zé Gotinha
Como surgiu a ideia do Zé Gotinha?
Darlan Rosa - O Brasil tinha assinado um compromisso com a América Latina de erradicar a poliomielite até 1994. E tinham me chamado para criar um logo, somente isso. Mas eu estava vindo da televisão, onde tinha um programa infantil diário por quatro anos, de 1967 a 1971. Nesse programa, eu contava história e desenhava para as crianças e fazia várias campanhas, do tipo não fumar, dormir mais cedo. Quando surgiu essa demanda, eu vi a oportunidade de fazer não só a logomarca, mas de fazer uma campanha. Eu estava me formando em publicidade na época. Então, eu criei o personagem, a partir das duas gotinhas da pólio. Eu criei o bonequinho e coloquei ele andando em cima dos anos nos quais o Brasil ia sanear pra poder fazer a erradicação da pólio. Essa, digamos, foi a logomarca.
E como passou de logomarca para um personagem?
Darlan Rosa - Eu tinha ido para o Nordeste e vi que o Exército ajudava nas campanhas de vacinação, era quase que uma operação de guerra, sabe? Pra poder fazer com que as que as mães levassem as crianças pra vacinar, porque havia uma rejeição à vacina. Diferentemente de hoje, era uma rejeição baseada numa desconfiança que as mães tinham de que a vacina podia trazer a doença ao invés de curá-la. Então, pensei: por que a gente não coloca a criança como parte desse processo de vacinação? Ao invés de o pai ter que levar a criança pra vacinar, por que a criança não pode levar o pai no posto de saúde? E sempre que eu levava o projeto, havia um receio do Ministério da Saúde. Um receio que eu não compartilhava.
Qual era o receio?
Darlan Rosa - Uma campanha de vacina custa milhões de reais, né? A ideia da campanha da pólio era vacinar todo o público-alvo em um único dia. Se a gente lança uma campanha dessas, usando o personagem, e a campanha fracassa? Eram milhões de reais perdidos. Eu não era funcionário do Ministério da Saúde. Era um consultor do Unicef. E existia uma resistência muito grande ao Zé Gotinha, que ainda não tinha esse nome. E aí me ocorreu a seguinte ideia: fazer um concurso pra dar o nome ao personagem. Com isso, a gente faria o envolvimento da criança com o processo de vacinação e, se houvesse uma resposta massiva, a gente poderia pressupor que o personagem tinha o carisma para liderar uma campanha. O Ministério da Saúde aceitou.
E qual foi o resultado desse concurso? Receberam muitas sugestões de nomes?
Darlan Rosa - Nós fizemos o concurso e vieram mais de 11 milhões de correspondências. Foi um negócio impressionante. Chegou ao ponto que as secretarias estaduais de Saúde, para onde as correspondências eram enviadas, tiveram que arrumar uma sala pra poder despejar a correspondência, porque os Correios mandavam de caminhão. No final, foi preciso fazer um sorteio, porque houve uma quantidade muito grande de crianças que deu o mesmo nome. O Unicef acreditava muito no projeto e me pediu pra ir em todas as capitais para realizar um workshop de comunicação, ensinando os vacinadores a fazer o próprio material de divulgação.
Era uma campanha colaborativa?
Darlan Rosa - Quando eu criei o Zé Gotinha, eu desenhei sem detalhe da mão e do pé. Isso porque eu queria que qualquer pessoa, mesmo que não soubesse desenhar, fosse capaz de desenha-lo. Essa era a minha ideia: fazer um projeto que pudesse ser compartilhado, ser executado por qualquer pessoa. Durante um ano, eu viajei às capitais para dar essa oficina de comunicação. Isso porque um vacinador, na época do da pólio, tinha que fazer cartazes constantemente, sabe? Não dava tempo de ir pra uma agência. Eles faziam com pincel atômico. Isso era 1986, nós não tínhamos redes sociais, a televisão custava uma fortuna. Era coisa feita no mano a mano. Foi então que o Zé Gotinha começou a virar um instrumento de divulgação nos Estados. Com a pressão dos Estados, o Ministério aceitou fazer o filme da campanha com o Zé Gotinha. Na primeira campanha, alcançamos 96% de vacinados. Foi aí que eles não tiveram mais dúvidas da força do personagem.
Foi quando o Zé Gotinha passou a fazer campanha para outras vacinas, isso?
Darlan Rosa - Sim, foi criada uma família. Pai e mãe, irmã e o Juquinha, irmão do Zé Gotinha. Usamos, inclusive, para a campanha do pré-natal. Usando o Zé Gotinha para todas as vacinas. A gente não podia descuidar da vacinação de rotina. Porque a campanha que acontecia duas vezes por ano, contra a pólio, por exemplo, por si só não cria cultura de vacina. Então é preciso que as mães sejam esclarecidas. Por isso é que utilizou o Zé Gotinha pra fazer o pré-natal, porque já começava a incutir nas mães essa cultura da vacina.
Qual a sua visão sobre essa queda nos índices de vacinação de crianças?
Darlan Rosa - O governo deveria trazer explicações, informações, inclusive com personagem Zé Gotinha, pois ele representa a vacina, né? Há uma má utilização do personagem. Os pais já não sabem mais quais as vacinas que as crianças precisam tomar.
E como fica o Zé Gotinha nisso tudo?
Darlan Rosa - Na realidade, o Zé Gotinha nunca parou de trabalhar. Ele pode ter parado a nível nacional, mas os Estados sempre usavam ele, sempre usam. Não tem um posto de saúde que eu fui durante a minha vida que não tinha lá um adesivo colado na geladeira com o dizer “a casa do Zé Gotinha”. Todo mundo cuidou dele com muito carinho. Então, esse Zé Gotinha é um patrimônio do Brasil, sabe? Eu não tenho dúvida da força desse personagem. Não foi porque eu criei, não. É porque nós conseguimos colocar ele no imaginário popular. Inclusive, ele foi elevado a status de logomarca do SUS, né? Ele nunca deixou de de ser o representante da vacina.
Como criador do Zé Gotinha, como tu vê o uso atual, na pandemia contra a covid-19?
Darlan Rosa - Um descaso do governo não ter usado o Zé Gotinha pra poder comunicar, em 2020, as informações até chegar a vacinação. Comunicar os cuidados que você deveria ter, né? Ele teria prestado um serviço primordial. Diante disso, eu fiz uma campanha, nas minhas redes sociais, com o dizer: “fique vivo enquanto você me espera”. O governo poderia ter feito isso até a chegada da vacina.