Quarto filho de um casal do interior de Xanxerê, no oeste catarinense, Paulo Ferronato tem algumas lembranças da época em que nevou na região, cerca de um ano depois do seu nascimento, ocorrido em 1964. Uma fotografia do menino em pé em cima de um banco com o cenário branquinho ao fundo é um dos poucos registros do fenômeno na região e um dos últimos flagrantes do bebê sobre as duas pernas. Em 1966, o guri faceiro que adorava brincar teve poliomielite.
— Fiquei tetraplégico. Em uma semana, eu andava; dois dias depois, não tinha mais movimento nas pernas e nos braços. Mexia os olhos e falava. Fiquei uma criança dependente — relembrou o administrador durante um webinar promovido pela Sanofi Pasteur na terça-feira (19) em razão do Dia Mundial de Combate à Poliomielite, lembrado neste domingo (24).
Se hoje assuntos como acessibilidade e a inclusão de pessoas com deficiência ainda são desafiadores, há mais de cinco décadas os percalços eram maiores. Sem centro de reabilitação na terra natal, a família Ferronato precisava se deslocar até Florianópolis para que Paulo fizesse fisioterapia. Ele também teve dificuldades para conseguir ingressar em uma escola, e quando conseguiu, precisava que os pais o carregassem por quatro andares até chegar na sala de aula.
— Não coloco a pólio como um obstáculo, mas como uma oportunidade de aprender na vida — diz Ferronato.
— A única solução que eu tinha era a educação e a militância. Fiz faculdade de Administração e comecei a militar no segmento das pessoas com deficiência.
Fico preocupado quando percebo que mães e pais de crianças não querem vaciná-las. Que mães e pais acreditem que a vacina vai fazer mal. Essas pessoas não vivenciaram a vida de pessoas com deficiência. Não tiveram que experienciar o preconceito e a dor de ter os sonhos interrompidos.
PAULO FERRONATO
Administrador que teve poliomielite na infância
Experiências como a de Ferronato foram uma realidade em todo o planeta anos atrás. Para se ter uma ideia, em 1988 o mundo tinha 350 mil casos de poliomielite em 125 países. O vírus, além de matar centenas de pessoas, deixou outras tantas com paralisia — o que originou o nome "paralisia infantil".
Atualmente, apenas duas nações têm registros do vírus selvagem: Paquistão e Afeganistão. No Brasil, a poliomielite foi eliminada em 1989. Em 1994, as Américas receberam a certificação de região livre da pólio selvagem pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Agora, das seis regiões da Organização Mundial da Saúde (OMS), somente uma não tem o certificado, a do Mediterrâneo Leste.
O problema da chamada hesitação vacinal
Enquanto os registros da doença no planeta estão cada vez mais escassos, um fenômeno tem ganhado força e colocado em risco esses baixos números: a queda na cobertura vacinal. De 2015 até agora, o Brasil amarga uma derrocada nos índices de imunização contra o vírus tanto no esquema primário (administrado aos dois, quatro e seis anos de vida) quanto nos reforços (administrados aos 15 meses e aos quatro anos).
Nesse período, o país passou de 98,2% de cobertura vacinal, em 2015, para 61,7% neste ano, considerando apenas o esquema primário. Ao observar o primeiro reforço, o percentual cai de 84,5% para 53,2%. Essa queda preocupa especialistas, sobretudo, por causa da possibilidade de que uma doença já combatida volte à cena, como foi o caso do sarampo, por exemplo, que foi eliminado das Américas em 2016 e voltou a provocar surtos aqui no país dois anos depois.
— Dois países das Américas têm altíssimo risco de reinfecção: Bolívia e Haiti. Equador, Venezuela, Guatemala, República Dominicana, Suriname e Brasil estão com risco alto, conforme a Opas. Para estabelecer esses riscos, foram consideradas diversas variáveis e a cobertura vacinal tem lugar de destaque. A população acha que a pólio não existe e não incentiva a vacinação. Mas a ameaça continua — destaca Luiza Helena Falleiros Arlant, membro da Câmara Técnica Assessora de Imunizações do Ministério da Saúde.
Para Juarez Cunha, presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), o fenômeno da hesitação vacinal, que é o atraso em aceitar ou a recusa das vacinas recomendadas apesar da sua oferta nos serviços públicos de saúde, pode ser compreendido através da análise dos “três Cs”: confiança, conveniência e complacência. O primeiro diz respeito à dúvida em relação a eficácia e segurança dos imunizantes. O segundo ponto fala sobre a disponibilidade física e acessibilidade geográfica às doses. Por fim, a complacência trata, justamente, do desconhecimento em relação à doença.
— Como as pessoas não conhecem, nunca viram alguém doente, acham que não precisam vacinar os filhos — explica o médico.
Para além dessas três razões, a pandemia acrescentou dois novos “Cs” à lista: comunicação e contexto.
— A comunicação vai afetar a confiança — diz Cunha, mencionando a disseminação de notícias falsas a respeito dos imunizantes.
— E o contexto sociodemográfico tem impactado não só na covid-19, mas nas coberturas vacinais, em especial, nos grupos de maior vulnerabilidade.
Sem conter a emoção, Ferronato lamenta que ainda existam famílias que desacreditam nas vacinas. Para ele, a imunização é um ato de amor e de respeito:
— Fico preocupado quando percebo que mães e pais de crianças não querem vaciná-las. Que mães e pais acreditem que a vacina vai fazer mal ou que é melhor não vacinar para não ter um filho autista. Essas pessoas não vivenciaram a vida de pessoas com deficiência. Não tiveram que carregar o filho na escola, experienciar o preconceito e a dor de ter os sonhos interrompidos.
O cenário no RS
Embora a cobertura atual esteja abaixo da meta de 95% em todo o território nacional, o Rio Grande do Sul está entre os cinco Estados com maior percentual de imunização. Aqui, a cobertura de 2020 foi de 84,1%, ficando atrás de Santa Catarina (88,2%), Ceará (86,8%), Paraná (86%) e Minas Gerais (85,9%). O Rio de Janeiro teve a pior cobertura do país, com 55,1%.
Mesmo com essa redução, o último caso da doença em solo gaúcho ocorreu em 1983. Desde então, não houve mais notificações, graças as coberturas vacinais altas e homogêneas, diz Juliana Patzer, especialista em saúde da Vigilância Epidemiológica do Centro Estadual de Vigilância em Saúde (Cevs).
— Podemos dizer que estamos em alto risco para a reintrodução do vírus em razão da queda nas coberturas vacinais. Há mais de cinco anos que o Estado não atinge a meta e, a cada ano sem atingi-la, acumulamos bolsões suscetíveis de grupos de que pessoas não vacinadas que permitem a circulação do vírus, caso ele seja reintroduzido — alerta a especialista do Cevs.
Como as pessoas não conhecem, nunca viram alguém doente, acham que não precisam vacinar os filhos
JUAREZ CUNHA
PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE IMUNIZAÇÕES (SBIM)
Com o propósito de diminuir o número de crianças não imunizadas, o Estado trabalha, atualmente, na Campanha Nacional de Multivacinação, que objetiva atualizar as vacinas da população menor de 15 anos.
— Isso inclui as menores de cinco anos, que são o público para imunização contra a pólio. Menores de cinco anos podem ser levados às unidades de saúde do seu município para atualizar a caderneta ou iniciar o processo — orienta Juliana.
A campanha nacional se estende até o dia 29 de outubro. Vale destacar que adultos que vão viajar para países onde o vírus ainda circula têm recomendação de ir a uma unidade de saúde para verificar sua situação vacinal e receber orientações pertinentes à imunização.
Em Porto Alegre, a vacinação contra a pólio está disponível em todas as 132 unidades de saúde — confira endereços e horários de funcionamento neste link.
VIP x VOP
- Introduzida no Brasil em 1955, a Vacina Inativada Poliomielite (VIP) entrou no Programa Nacional de Imunizações (PNI) em 2016 para administração no primeiro ano de vida das crianças (aos dois, quatro e seis meses de idade). Os reforços, aos 15 meses e aos quatro anos, ainda são com a Vacina Oral Poliomielite (VOP).
- Apesar de a VOP ainda estar em uso, as sociedades médicas e a própria OMS recomendam a adoção da VIP em todas as doses. Isso porque a VOP, no organismo, pode provocar mutação do vírus e torná-lo virulento mais uma vez. Mas esse fenômeno ainda não teve registro do Brasil, segundo Juliana Patzer.
- Luiza Helena Falleiros Arlant, integrante da Câmara Técnica Assessora de Imunizações do Ministério da Saúde, afirma que a vacina oral é “muito fácil” de ser administrada, mas faz ponderações: “Quando tínhamos 350 mil casos no mundo, ela foi a única que permitiu que vacinássemos milhares de crianças pela facilidade. Só que ela tem esse efeito colateral, que era uma raridade quando tínhamos milhares de casos. Porém, atualmente, esse evento passou a se tornar importante porque temos dois casos de pólio selvagem no mundo. Embora a oral tenha vivido seu momento ‘mágico’, o ideal é que se passe, paulatinamente, para a inativada”.