O Hospital Universitário (HU) de Canoas, na Região Metropolitana, tem sido alvo de denúncias devido a uma série de problemas que vão da falta de remédios a equipamentos estragados e até falta de produtos para a limpeza e higienização dos espaços. Familiares de pacientes relatam ter que comprar insumos para garantir atendimento na internação, especialmente na área da pediatria.
Além disso, funcionários estariam se demitindo em razão de salários atrasados. Dessa maneira, enfermeiros do turno da manhã precisariam ficar para ajudar os colegas no trabalho da tarde.
Equipamentos para a realização de exames também levariam dias para serem consertados, dificultando diagnósticos. É o caso dos aparelhos para exame de colonoscopia e de ressonância magnética — o segundo ficou quase 30 dias inativo. Também há denúncias de falta de sondas de alimentação, seringas e até pano de chão. O material estaria em falta, inclusive, dentro da farmácia do hospital.
Desde 27 de janeiro, o HU é administrado pela Fundação Educacional Alto Médio São Francisco (Funam), escolhida após o antigo gestor ser destituído em razão de uma série de suspeitas de irregularidades e desvios de verbas (veja mais abaixo). Com contrato vigente por pelo menos seis meses, a Funam nega qualquer irregularidade na administração do hospital.
A reportagem de GZH teve acesso a uma série de imagens, vídeos, trocas de mensagens entre funcionários e médicos e até notas fiscais de compra de material feita pela mãe de uma bebê internada no quarto andar, onde ficam a UTI Neonatal e o setor de pediatria, onde há leitos para 40 crianças. O problema seria mais amplo nesses setores, onde estariam faltando medicações básicas como dipirona e soro fisiológico.
Com a filha há dois meses internada na pediatria do HU, a balconista Raquel Soares, 25 anos, acompanha diariamente o caos na instituição. Ela própria chegou a ficar internada 15 dias no hospital antes de dar à luz a menina, que nasceu prematura de sete meses. Raquel conta que já precisou comprar cem unidades de sonda de aspiração traqueal para a filha, no valor de R$ 120, e outras 84 sondas de aspiração ao custo de R$ 100. Em outra ocasião, adquiriu com recursos próprios sete unidades da mesma sonda de aspiração traqueal e mais três unidades de sonda para oxigênio (do tipo óculos pediátrico), o que somou R$ 23.
— (Quinta-feira, dia 19) chegou um bebê recém-nascido e não tinha o material para colocar o acesso. Os médicos da UTI Neonatal conversaram com os familiares. E eles, os doutores, disseram que comprariam o material para o bebê — diz. —Há outras mães que compraram aqueles caninhos que ficam no nariz para levar oxigênio — acrescenta, referindo-se ao cateter nasal.
Alguns médicos, conforme relatos, estariam comprando produtos em falta no hospital com dinheiro do próprio bolso, na tentativa de amenizar os problemas dos pacientes internados.
— Tenho medo de que, caso venha acontecer alguma piora com a minha filha, não tenha o que fazer. Porque os médicos não terão o que fazer sem equipamento — receia.
Todos saberem não impede que os pacientes morram por falta de insumos. (…) Estamos todos por um fio. A paciência está esgotada.
MÉDICA DO HOSPITAL
sob condição de anonimato em troca de mensagens internas
As denúncias envolvem também atraso nos salários de médicos e enfermeiros do setor. Duas enfermeiras teriam pedido demissão na quinta-feira (19) devido ao atraso no pagamento dos salários.
— No turno da noite era para ter 15 enfermeiros. Ficaram sete. Imagina sete cuidando de 40 crianças? — questiona a mãe.
Cenário de caos
Sob a condição de anonimato, uma médica que atua no hospital relata que o cenário é de abandono total.
— Está um caos, todo mês tem falta de insumos por falta de pagamentos aos fornecedores. Este mês a situação está mais caótica. Chegou a faltar água destilada para o funcionamento dos ventiladores mecânicos. E faltam antibióticos, curativos, soro fisiológico, luvas, aventais e equipamentos de proteção individual (EPIs). Não tinha compressa para dar banho de leito nos pacientes na segunda-feira (da semana passada, dia 16). Mandamos e-mail para a direção e só retornam dizendo "estamos vendo" — afirma, contando que outro setor, o de nutrição, carece da falta de fórmulas infantis.
A mesma médica acrescenta detalhes e evidencia o tamanho do problema:
— A situação que a gente vive hoje no Hospital Universitário de Canoas é de guerra. Não se tem o mínimo para o funcionamento de um hospital. Faltam medicação, antibióticos, diuréticos, analgésicos, tanto na enfermaria quanto na UTI. Faltou água destilada para os ventiladores e os aparelhos de respiração. A situação é caótica. Não conseguimos entender como foi chegar num ponto assim.
Em uma troca de e-mails entre médicos internos, diretores e coordenadores de área, ao qual GZH teve acesso no dia 16 de maio, são citadas situações críticas na UTI 2. Três pacientes estavam com suspeita de diarreia por Clostridium difficile (bactéria) e não haveria papel-toalha para os enfermeiros higienizarem as mãos. Também estaria em falta o medicamento para o tratamento da patologia, chamado de metronidazol EV.
O receio era de que o surto se alastrasse para os demais pacientes da unidade. A resposta dos encarregados de resolverem o problema foi a seguinte: “Estamos cientes e fazendo todos os esforços para que a situação se resolva rapidamente”.
Quando informada pelos médicos e funcionários sobre a falta de água destilada para umidificação de ventiladores mecânicos da UTI Neonatal, a administração questionou a possibilidade de usar água filtrada no lugar. A recomendação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), entretanto, é que seja utilizado fluido estéril. Caso contrário, há risco de incidência de pneumonia associada à ventilação, com risco de morte.
Em outra troca de mensagens, no dia 17 de maio, há uma relação de produtos com estoque zerado no sistema hospitalar, entre os quais, álcool gel 70% e até pano de chão para uso na limpeza. Uma médica desabafa:
“Esta situação não deve ser considerada normal. Se há falta de dinheiro, deve ser administrado de modo que os leitos oferecidos pelo hospital possam tratar os pacientes. Um leito não é apenas uma cama, é médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, insumos, equipe multidisciplinar e medicações”.
Chegou um bebê recém-nascido e não tinha o material para colocar o acesso. Os médicos da UTI Neonatal conversaram com os familiares. E eles, os doutores, disseram que comprariam o material para o bebê
RAQUEL SOARES
Balconista e com a filha na pediatria
Um pouco mais adiante, na mesma troca de mensagens, outra médica questiona: “Será que não seria mesmo o caso de restringir internações até normalização dos estoques? Parece que essa situação está muito pior do que na outra administração... Tínhamos faltas, mas eram menos frequentes”.
Uma mensagem também chama a atenção pela dramaticidade. Foi enviada para um médico, que é diretor clínico de um setor. Ele alega que a direção e os coordenadores sabem dos graves problemas. E recebe a seguinte resposta da remetente: “Todos saberem não impede que os pacientes morram por falta de insumos. (…) Estamos todos por um fio. A paciência está esgotada”.
Falta de fórmula para crianças
Desde terça-feira (17), há relatos de falta de fórmulas infantis no Hospital Universitário. E até o café da manhã desse dia, que estava destinado à direção, foi retirado do almoxarifado, para ser dado aos pacientes internados. “Não temos nada em estoque. A partir do lanche da tarde desta terça-feira, só teremos chá”, diz trecho de outra troca de mensagens. A reportagem ainda teve acesso a outras conversas semelhantes.
Os médicos também conversavam entre eles se alguém já teria comunicado o Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) e o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers) sobre a "desassistência" que ocorre na instituição de saúde. Com carência de materiais importantes, há temor entre médicos, enfermeiros e funcionários de contaminação por covid-19, pois há vários casos registrados nas unidades.
Será que não seria o caso de restringir internações até normalização dos estoques? Parece que essa situação está muito pior do que na outra administração. Tínhamos faltas, mas eram menos frequentes
MÉDICA DO HOSPITAL
sob condição de anonimato em troca de mensagens internas
Também há o relato de uma cena inusitada, encaminhado para a reportagem por uma ouvinte. O fato ocorreu com uma amiga dela. Uma mulher que estava sendo submetida a uma intervenção cirúrgica no pé precisou ter o procedimento interrompido por causa do equipamento, que estragou durante a operação. O médico tentou consertá-lo, o que não foi possível. A cirurgia foi interrompida e a paciente, liberada. Agora aguarda em casa ser chamada novamente para retomar a cirurgia.
O que diz a prefeitura de Canoas
A Secretaria Municipal da Saúde de Canoas informou que os salários dos funcionários foram quitados no sétimo dia útil do mês. A prefeitura também disse que não é responsável pela administração do hospital.
Confira alguns trechos da entrevista que o secretário municipal interino da Saúde de Canoas, Eloir Vial, concedeu à GZH no começo da noite de sexta-feira (20).
A prefeitura de Canoas está a par das denúncias em torno do Hospital Universitário?
Tomamos conhecimento dessa informação de que estaria faltando materiais e de que as cirurgias estariam paradas em função da falta de materiais. Deslocamos imediatamente a equipe que trabalha nessa área de monitoramento e fiscalização. O que constatamos lá, inclusive recebi fotos comprovando, é que os materiais e medicações estariam sendo entregues dentro da normalidade. Da mesma forma, o bloco cirúrgico, que estaria fazendo cirurgias de traumato. Vamos verificar o que poderia ter acontecido nas últimas horas, para tentar entender o que aconteceu. Porque, neste momento, os materiais se encontram sendo entregues e os atendimentos sendo realizados. Esta é uma informação importante para nós e para a comunidade. A gente sabe que, para entrar para cirurgia no bloco, não tem como entrar sem medicações e profissionais. A gente vai buscar ver o que poderia ter acontecido. É o nosso dever.
A administração do hospital informou que os salários foram pagos no sétimo dia útil do mês. Todos os salários de funcionários e médicos estão em dia?
A informação que eu tenho é que os salários e os repasses estão em dia.
Há relatos de demissões de enfermeiros e funcionários devido aos atrasos salariais. O senhor sabe disso?
Não, neste quesito, ficarei devendo. Vamos apurar isso e as demais situações para saber quais as motivações disso.
O hospital pertence à prefeitura, apesar de a instituição ser administrada pela Fundação Educacional Alto Médio São Francisco. O que compete a vocês fazer nessa parceria?
Para todos os prestadores de serviços de hospitais há uma contratualização. Nessa contratualização, estão as obrigações e os direitos das partes. O que compete ao prestador do Hospital Universitário são a gestão do hospital e a prestação do serviço. E para isso nós fazemos os repasses para os recursos. A gestão e os atendimentos são realizadas pela fundação.
Vocês não receberam denúncias de problemas, especialmente na ala da Pediatria, onde ocorre falta de material para as crianças?
Não, especificamente, nenhuma. O que soubemos foi sobre falta de sondas e outras coisas, e deslocamos equipes para irem lá. Constataram esta tarde (sexta-feira, dia 20) que estavam sendo entregues. Vamos ver nas últimas horas o que poderia ter ocorrido. Por vezes, há muitas medicações em falta no mercado. Mas a gente vai procurar saber o que pode ter afetado o serviço nas últimas horas.
Chegou até o senhor o relato de que médicos do setor da Pediatria estariam comprando remédios com dinheiro do próprio bolso, fazendo “vaquinhas”, para conseguir os medicamentos para as crianças?
Não, posso assegurar com certeza que não chegou. Temos uma metodologia de conduta com nossos prestadores para que qualquer situação, seja ela qual for, nos seja comunicada. Não chegou nenhuma informação e, se tivesse chegado, seria tomada uma medida imediata.
Saiba mais
No domingo (22), a prefeitura divulgou uma nota em que a Secretaria Municipal da Saúde orientava para que pais ou responsáveis levassem as crianças diretamente às unidades de pronto atendimento (UPAs) Boqueirão e Rio Branco, onde receberão atendimento. A emergência do setor pediátrico está com atendimento suspenso. A falta de profissionais e a lotação do espaço foram os motivos alegados para a suspensão. Os serviços de maternidade, UTI infantil e internação pediátrica seguem operando normalmente.
O que diz a Fundação Educacional Alto Médio São Francisco (Funam)
Procurada para comentar sobre as denúncias, a administração do hospital respondeu: “O aparelho para colonoscopia já está em funcionamento. Tivemos dificuldades com a aquisição de materiais, mas já estamos normalizando o estoque. Parte chega na quinta-feira (19) e outra parte na sexta-feira (20). Os salários estão em dia”.
Números
A Funam informou que, neste momento, estão internados no hospital 343 pacientes. São cerca de 1,5 mil empregados, no modelo Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), e mais 300 profissionais autônomos.
O HU recebe diretamente pacientes na Emergência Pediátrica e no Pronto Atendimento Obstétrico. Os demais atendimentos (consultas especializadas, cirurgias e exames) são via rede referenciada. No pronto atendimento obstétrico ocorrem, em média, 1,5 mil atendimentos por mês, com cerca de 330 partos. Na Pediatria acontecem, em média, 1,8 mil atendimentos por mês, entre emergência, internações e UTI.
Entenda a situação na Saúde de Canoas
O Ministério Público Estadual denunciou, em 2018, oito pessoas por participação em organização criminosa, peculato e lavagem de dinheiro envolvendo o contrato do Grupo de Apoio à Medicina Preventiva e à Saúde Pública (Gamp), com a prefeitura de Canoas.
O Gamp, que era o responsável pela administração anterior, havia assinado contrato com a prefeitura no final de 2016 para receber R$ 1 bilhão em cinco anos. Após o início do serviço, os salários de funcionários passaram a atrasar e surgiram suspeitas de irregularidades.
O atraso nos salários de funcionários resultou em greve de profissionais de enfermagem, técnicos, farmacêuticos e radiologistas. Houve paralisação nos atendimentos em dezembro de 2018.
Conforme GZH noticiou na época, para o Ministério Público, o Gamp, "travestido de entidade assistencial sem fins lucrativos, se trata de uma típica organização criminosa voltada para a prática de inúmeros delitos, em especial peculato e lavagem de dinheiro, entre outras fraudes que esvaziam os cofres públicos".
Segundo auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE), o Gamp teria comprado remédios superfaturados e gastou indevidamente verbas públicas com consultorias, aluguéis de escritórios, passagens aéreas, locação de carros, hospedagens e até consumo de bebidas. Enquanto isso, teriam faltado recursos para salários, medicamentos e insumos.
O grupo administrava os hospitais Universitário (HU), do Pronto Socorro de Canoas (HPSC), duas unidades de pronto atendimento e quatro de atendimento psicossocial. O contrato com o grupo foi encerrado no começo deste ano. A Funam assumiu o gerenciamento, a operacionalização e execução dos serviços de saúde do Hospital Universitário, após ser vencedora do processo seletivo para contrato emergencial, realizado pela prefeitura de Canoas. O termo de colaboração 003/22 tem a vigência de seis meses e passou a vigorar em 27 de janeiro de 2022.