Mais uma vez, o mundo enfrenta aumento galopante no número de casos de covid-19. No entanto, a Ômicron não está gerando reflexo proporcional em hospitalizações e mortes, sobretudo onde a cobertura vacinal é alta. A constatação motiva alguns cientistas a avaliarem, em otimismo cauteloso, que a união de uma variante menos agressiva com o avanço da vacinação pode marcar o início do fim da pandemia. A hipótese não é consensual - e gera debate entre analistas.
Resumindo a interpretação otimista, os médicos Zvika Granot e Amnon Lahad, da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel, declararam à imprensa que a Ômicron “é preocupante, mas não um desastre para a saúde” e que “pode ser o fim da pandemia”.
Na Espanha, onde mais de 81% da população tomou duas doses, o primeiro-ministro, Pedro Sanchéz, propôs que a covid-19 seja considerada endêmica e tratada como gripe comum. Segundo o Valor Econômico, o Ministério da Saúde brasileiro entende que a Ômicron será importante para a transição para endemia, mas que não é possível baixar a guarda.
A primeira premissa para entender que a pandemia está na reta final é a certeza de que uma hora acabará. N’O Globo, a pneumologista Margareth Dal Colmo, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), escreveu que pandemias costumam durar dois anos - depois, a doença se torna endêmica e causa menos casos graves, exigindo revacinação, como no caso da influenza.
A segunda premissa é de que a Ômicron parece ser menos agressiva, até para não vacinados. Estudo do Imperial College de dezembro aponta que o risco de hospitalização é até 45% menor do que o oferecido pela Delta, a cepa mais agressiva de todas. Talvez isso ocorra porque a Ômicron “estacione” no nariz, na garganta e na traqueia em vez de migrar rapidamente para o pulmão e causar pneumonia, mas pode ser também devido a grande parte da população estar vacinada ou com imunidade causada por infecções prévias.
Em entrevista ao jornal The Guardian, o professor de ciências respiratórias Julian Tang, da Universidade Leicester, afirmou que a Ômicron é o primeiro passo em um processo no qual o vírus se adapta à população humana para produzir sintomas mais inofensivos. Ele acrescentou que “é vantajoso para o vírus afetar as pessoas de um jeito a não deixá-las muito doentes, porque assim ele poderá ser transmitido na população e se espalhar ainda mais”.
Após o pico
Na Inglaterra e na África do Sul, a Ômicron chegou mais rápido ao ápice do que outras variantes, em cerca de dois meses, e depois perdeu força. Por onde passou, a Ômicron tomou o espaço das outras variantes - portanto, quando seu pico passar, não haverá espaço para grandes ondas, avalia o epidemiologista Pedro Hallal, professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e professor-visitante da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos.
Se a Ômicron desaparecer daqui a dois meses, o que vai sobrar? Exceto se surgir nova variante, vai ter uma circulação baixa de versões anteriores do vírus.
PEDRO HALLAL
Professor da UFPel e professor-visitante da Universidade da Califórnia (EUA)
— A Ômicron suplanta outras variantes, ela praticamente acabou com a Delta. Se a Ômicron desaparecer daqui a dois meses, o que vai sobrar? Exceto se surgir nova variante, vai ter uma circulação baixa de versões anteriores do vírus, para as quais as vacinas funcionam bem — diz.
Em meio à expectativa das autoridades de que metade da população da Europa esteja infectada em dois meses, Hallal acrescenta que a Ômicron talvez seja a doença com contágio mais rápido da história e que, dada sua menor agressividade, pode gerar imunidade natural para, no futuro, assemelhar-se a uma doença mais leve. Seria, finalmente, uma “gripezinha”?
— Bolsonaro não tinha razão quando falou que a covid era uma "gripezinha", até porque o vírus original era muito mais grave do que a Ômicron, basta ver que morreram mais de 600 mil pessoas no Brasil. Mas a Ômicron de fato é muito menos agressiva, gera menos casos graves, então talvez seja mais próxima de uma gripe — acrescenta.
Hipótese não significa "libera geral"
A médica epidemiologista Lucia Pellanda, integrante do Comitê Científico do Palácio Piratini, concorda que a Ômicron pode ser o início do fim da pandemia, mas ressalva que a hipótese não pode ser lida como “libera geral”. A interpretação de que uma nova variante magicamente acabará com a pandemia é simplista: doenças se manifestam em uma interação entre o agente causador e a sociedade.
— Considerando o comportamento das outras pandemias, é esperado o vírus evoluir para uma forma menos grave e mais transmissível, como a influenza, com a qual convivemos. Mas esse argumento é perigoso se as pessoas liberarem geral e deixarem o vírus correr solto por acharem que é mais leve. Vimos que ele pode gerar sobrecarga do sistema de saúde. Sim, essa onda vai passar, a subida dura umas cinco semanas. Mas qual o estrago que vai deixar? A gente não quer estrago tão grande. A hipótese da imunidade natural vimos que não dá certo. Otimismo e liberar geral, não. Otimismo com cuidados, sim. Se todo mundo se vacinar e usar máscara, é possível que a gente consiga, no pós-Ômicron, reduzir a transmissão — diz.
Aliás, afirmar que a Ômicron é mais branda não significa dizer que ela não é perigosa. A Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta que a variante é menos grave, mas não é leve. Ela pode gerar casos graves, sobretudo nos mais vulneráveis e em pessoas sem esquema vacinal completo. Os Estados Unidos, onde há bolsões de não vacinados, quebraram o recorde de hospitalizações da pandemia nesta semana.
— A Ômicron pode ser o fim para quem está com três doses, mas muita gente no Brasil e no mundo está sem três doses. Só crianças abaixo dos 11 anos são 13% da população por aqui — alerta a epidemiologista Ethel Maciel, professora da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
Argumentos contrários e cuidados necessários
Maciel destaca que a baixa vacinação em diferentes nações abre espaço para o surgimento de novas variantes que escapem da proteção das vacinas e mesmo da infecção natural gerada pela Ômicron.
— Não temos controle sobre o vírus, não sabemos qual mutação vai acontecer, estamos no campo da incerteza. A ideia de imunidade natural por doença cai por terra quando há variantes. É claro que estamos em uma situação muito melhor, há vacinas, mas é cedo para falar em fim da pandemia. A Ômicron poderia ser o fim da pandemia se estivesse todo mundo vacinado, mas não é o caso — diz Maciel.
Não temos controle sobre o vírus, não sabemos qual mutação vai acontecer, estamos no campo da incerteza. A ideia de imunidade natural por doença cai por terra quando há variantes.
ETHEL MACIEL
Professora da UFES e integrante da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco)
A cobertura vacinal baixa também preocupa a imunologista Cristina Bonorino, integrante dos comitês técnico e científico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI):
— Como as pessoas podem falar em fim de pandemia se a África não foi vacinada? Se o cenário for de vacinação massiva, a tendência da Ômicron ou de qualquer outra variante é de não causar doença grave, falamos isso desde o início. Até lá, temos que manter as medidas de prevenção. O perigo de chamar a variante da mais leve é eximir da responsabilidade de fazer qualquer coisa. A imunidade natural gerada pela infecção não suplanta a da vacinação.
Espera-se que o vírus evolua a ponto de perder força para, em vez de matar o hospedeiro, conviver com ele, reconhece o virologista Paulo Brandão, professor da Universidade de São Paulo (USP). Mas ele ressalta que a natureza é imprevisível, não uma lei matemática.
— As pessoas acham que estão adoecendo de Ômicron, mas é covid ainda, e ela é perigosa. Em um momento, uma variante é predominante, mas quando o cenário fica contrário, outra variante surge. Os coronavírus de resfriado ficaram mais atenuados, mas nem sempre o vírus fica menos agressivo ao longo do tempo. Um dos exemplo é o da raiva. Convivemos com ele há milhares de anos e ele não ficou nada mais atenuado. O ebola também. O Sars-Cov-2 deve ficar mais atenuado, mas não necessariamente isso acontecerá agora — diz o virologista.
Se 2022 aparenta ser um ano mais próximo ao “normal”, graças à vacinação, o cenário pré-pandemia não deve voltar tão cedo. Na semana passada, três ex-assessores do governo Joe Biden durante a pandemia publicaram um artigo no prestigioso Journal of the American Medical Association (Jama) no qual afirmam que o Sars-COV-2 veio para ficar e que, para atingir “um novo normal” com menor transmissão e mortalidade por covid-19, “é preciso melhorar significativamente a testagem, a vigilância, o uso de máscaras e a ventilação”.
O Brasil está longe disso: a testagem é baixíssima, menor do que em alguns países africanos, e a cobertura vacinal, sobretudo de três doses, precisa crescer. Mas, para as próximas semanas, há uma boa notícia: a vacinação de crianças começou no Brasil nesta sexta-feira (14). Nosso futuro dependerá, também, da proteção oferecida aos pequenos.