Passados quase dois anos de pandemia, o Brasil segue longe de cumprir uma orientação repetida à exaustão por especialistas: testar a população em massa contra a covid-19. O país aplica exames em proporção muito menor do que nações ricas e abaixo do registrado na América Latina e África.
A ampla oferta de testes é apontada por especialistas como essencial para a população descobrir se está com coronavírus e isolar-se a fim de impedir a transmissão a parentes, amigos e colegas de trabalho. Além disso, a subnotificação de casos imprime um controle da epidemia restrito a indicadores tardios, como hospitalizações e mortes.
Mas, até agora, o Brasil distribuiu testes rápidos ou RT-PCR o suficiente para menos de um terço da população. O Rio Grande do Sul testou o equivalente a metade da população.
Por outro lado, o Reino Unido realizou número de testes equivalente a cinco vezes a própria população. A França, três vezes. O Chile, 1,4 vezes e a Argentina, 1,1. Até Namíbia e África do Sul testaram, proporcionalmente, mais do que o Brasil.
— Os números são claros: o Brasil testa muito pouco. O acesso a teste PCR é nas cidades mais desenvolvidas, pelo custo e pela necessidade de laboratório especializado. Com a vacina, muitos podem menosprezar sintomas da covid, confundi-los com rinite ou resfriado e não se isolarem. Investir em testagem é controlar a disseminação e reduzir a chance de casos graves. Se fosse perda de recursos, outros países não investiriam — afirma o microbiologista Afonso Barth, responsável pela análise dos exames PCR no Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
O Ministério da Saúde chegou a lançar, em setembro, um programa de testagem em massa no Brasil em pontos de grande circulação, como rodoviárias e aeroportos. A ideia era usar até 26 milhões de testes rápidos de antígeno por mês. Contudo, o plano não se concretizou: desde o início da pandemia, o governo federal não distribuiu nem 60 milhões de testes, segundo o Localiza SUS.
A discussão sobre aumentar a testagem ganhou força com a nova onda de Ômicron e a pressão para que o governo federal libere o uso de testes de farmácia que podem ser feitos em casa. No Brasil, para ser testado gratuitamente é necessário consulta médica em postos de saúde, que acumulam filas em meio à alta procura.
Nos Estados Unidos e na Europa, testes de antígeno são oferecidos gratuitamente pelos Correios ou em tendas nas ruas, escritórios e na entrada de escolas e universidades, sem necessidade de consulta médica. Na Dinamarca, qualquer indivíduo pode realizar até dois testes semanais sem qualquer custo.
Na Alemanha, vacinados devem apresentar resultado negativo de teste realizado até 48 horas antes de entrar em bares ou restaurantes — farmácias e tendas em locais de grande movimentação oferecem exame gratuito.
Ministério recomenda pontos de triagem
Questionado sobre o plano de testagem em massa, o Ministério da Saúde alega que envia testes conforme o pedido dos Estados e que, com o aumento da procura em janeiro, enviará, nesta semana, mais 14 milhões de testes rápidos. “Até o fim de janeiro serão disponibilizados 40 milhões de testes. As entregas ocorrem quinzenalmente a partir da demanda dos entes federados”, diz a pasta.
“Os testes devem ser aplicados para diagnosticar pessoas com e sem sintomas e podem ser usados em locais de grande circulação. A recomendação do Ministério é para que Estados e municípios façam pontos de triagem, onde as pessoas serão convidadas a fazer o teste rápido voluntariamente”, acrescenta a pasta.
Todavia, três especialistas entrevistados por GZH sublinham que, apesar do plano, o Brasil nunca teve, na prática, política de testagem massiva, o que prejudica o isolamento de casos positivos e favorece a alta transmissão do Sars-Cov-2.
O próprio ministro Marcelo Queiroga reconheceu, em entrevista à CNN na terça-feira (11), que o Brasil não testa o bastante, mas afirmou que o governo federal não poderia comprar testes sem ter a certeza de que municípios irão aplicá-los.
— Não posso comprar 300 milhões de testes sem que haja garantia que esses exames sejam realizados lá na ponta, que nós tenhamos uma rastreabilidade desses resultados e que tenhamos uma política de isolamento que seja efetiva. Eu, pessoalmente, acho que a principal ação de combate à pandemia é ampliar a campanha de vacinação — acrescentou Queiroga.
O ministro acrescentou que, com a Ômicron, o governo está alerta para o aumento da capacidade de testagem da população.
— O Brasil, a despeito de não testar, experimentou, nos últimos seis meses, uma queda sustentável de óbitos. Não estou justificando que não se deva testar, mas muito dos testes que nós distribuímos ocorrem em função de demandas dos municípios. E como a pandemia caminhava para um controle, houve uma diminuição de solicitação dos municípios — afirmou.
Para Claudio Maierovitch, médico sanitarista na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Ministério da Saúde deveria não apenas aguardar o pedido de Estados, mas estabelecer diretrizes para orientar a testagem nacionalmente, combinar o número de testes para envio e estabelecer público-alvo.
Maierovitch também afirma que exigir consulta com médico em postos de saúde para realizar teste gratuito é um empecilho que deveria cair no Brasil. Ao citar sua experiência como presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) nos anos 2000, durante as discussões para liberação de autoteste para HIV, ele ainda pontua que receios sobre autoteste pertencem ao passado.
— Com o tempo, cada uma das dúvidas sobre autoteste foi resolvida. As pessoas não têm dificuldade de fazer, assim como não têm dificuldade de fazer teste de gravidez ou monitoramento de glicemia. Seria importante o governo ter campanha de esclarecimento sobre o significado dos resultados para que não signifique desestímulo às medidas de prevenção. Hoje, se faz quase uma ode à ignorância: é melhor ninguém saber se está positivo do que uma parte saber e não notificar ao governo. Se oferecermos teste, muito mais gente vai saber que tem o vírus. O teste faz parte do controle da epidemia — diz o sanitarista.
Por que o RS testa mais?
No Rio Grande do Sul, a proporção de testes segue distante de países ricos e mesmo abaixo de Uruguai, Argentina e Portugal, nações com tamanho parecida. Ainda assim, mantém-se bem acima da média nacional e superior ao registrado em São Paulo.
O governo Eduardo Leite (PSDB) lançou em julho de 2020 o programa Testar RS, o que incluiu a compra de milhares de testes de antígeno e RT-PCR para distribuição aos municípios. Também descentralizou testes para locais que não o Laboratório Central (Lacen), mantido pelo Piratini.
Na semana passada, o governo estadual pagou R$ 840 mil aos 28 municípios que aderiram à terceira fase do Testar RS, focado em aplicar testes rápidos em pessoas assintomáticas em locais de grande movimentação nas cidades com aumento de turistas no verão, no Litoral, Serra e Fronteira.
Terimar Ruoso Moresco, professora de Microbiologia e coordenadora da equipe de Diagnóstico Molecular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), avalia que o Testar RS e a descentralização de laboratórios para processar amostras em universidades foram decisões acertadas. Elas explicam o melhor desempenho gaúcho na testagem. Outros Estados também têm parcerias, mas não em tamanha abrangência.
UFSM, UFRGS e UFCSPA são algumas das universidades que já processaram exames PCR em contratos firmados com o governo Eduardo Leite. Outras instituições também firmam contratos com municípios, como Feevale, que tem contrato com 40 prefeituras da Serra, Região Metropolitana e Vale dos Sinos.
— O plano Testar RS leva testes para fora dos grandes centros. E o melhor desempenho pode ser pelas ações das universidades, públicas e privadas, que realizam testes em regiões distantes de Porto Alegre. Santa Maria é um exemplo, estamos a 400 km de Porto Alegre, mas aqui na UFSM fizemos 45 mil testes para a Região Norte. Assim como nós, várias instituições cobrem outras regiões que não são cobertas pelo Lacen — pontua Moresco.
A Secretaria Estadual da Saúde (SES-RS) foi contatada na terça-feira sobre o tema, mas não se posicionou até 16h desta quarta.