Com a melhora da pandemia de covid-19, a prefeitura de Porto Alegre começou, em julho do ano passado, a cancelar o financiamento de leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) via Sistema Único de Saúde (SUS). Cerca de 300 leitos de UTI deixaram de atender pacientes com coronavírus para receber pessoas com doenças que não foram tratadas nos últimos dois anos.
Dos 556 leitos intensivos exclusivos para coronavírus, mantidos no auge da crise sanitária, cerca de 260 seguiam em operação no final de 2021, de acordo com dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) obtidos por GZH. Na terça-feira (11), havia 41 internados com coronavírus em UTIs - e o número de vagas exclusivas deve cair mais daqui para frente.
Isso porque, em portaria de 30 de dezembro, o Ministério da Saúde parou de incentivar que hospitais reservem leitos de UTI para pacientes com coronavírus se não houver demanda. O país converterá 6,5 mil leitos intensivos focados em covid-19 para atendimento a outras doenças.
A partir de 1º de fevereiro, hospitais receberão diária do governo federal apenas pelo leito que estiver em uso, seja para atendimento a pessoas com covid-19 ou por outras doenças - os hospitais, portanto, deverão se organizar internamente para alocar pacientes. A alteração pode mudar: com o aumento das internações, o Gabinete de Crise do governo do Estado encaminhou pedido para o Ministério da Saúde manter a remuneração dos leitos de covid.
— O Ministério da Saúde estava remunerando por leito ocioso. Agora, vai acabar a divisão entre leito covid e não covid: haverá apenas leito geral de UTI, cada hospital se organizará e o Ministério vai pagar pelo uso do leito. O Ministério fez isso porque havia baixa demanda nacional por utilização de leitos covid, enquanto outras demandas aumentam. Mas lógico que pacientes com covid grave terão acesso a leito. Os hospitais terão que se organizar para fazer isolamento de pacientes — explica Vinícius de Castro Greff, diretor de contratos da Secretaria Municipal da Saúde (SMS) de Porto Alegre.
O Hospital Vila Nova, que abriu 120 leitos clínicos na pandemia e chegou a receber metade dos pacientes com sintomas graves de coronavírus de Porto Alegre, mantinha apenas 30 vagas para covid-19, com baixa ocupação. Em janeiro, todas serão destinadas a outras doenças – decisão que a instituição considera precipitada.
“Por cautela, entendemos que parte dos leitos deveriam ser direcionados à covid, ao menos até março, compreendendo datas festivas e feriados. No entanto, tendo por base o histórico atual, compreendemos que a ocupação está relativamente baixa, os demais perfis de pacientes estão com necessidade de internação e o município está precisando dos leitos”, diz, por meio de nota, a Associação Hospitalar Vila Nova.
Os leitos clínicos do anexo do Hospital Independência, financiados com doações de Zaffari, Gerdau e Ipiranga, seriam destinados para a covid-19 até junho, mas, devido à baixa demanda, passarão a ser usados para traumatologia e ortopedia até o fim de janeiro. Angelo Giugliani Chaves, diretor-técnico da instituição, expressa receio em relação à mudança:
— Neste momento, é uma temeridade, pois tivemos Natal, Ano-Novo e, depois, o Carnaval. Vemos na Europa, na China e nos Estados Unidos o aumento da covid. Por que o Brasil escaparia disso? Se fosse gestor, eu manteria os leitos para covid, porque isso é uma segurança para a cidade. Para mobilizar e montar esses leitos, o que inclui equipes médicas e de enfermagem, foi um sacrifício hercúleo. Desmobilizar e ter que mobilizar de novo daqui a dois meses? Não é como ir no supermercado, é complicado.
Os contratos com os hospitais Beneficência Portuguesa e Porto Alegre, que atendem por convênio, foram encerrados em agosto do ano passado. O Conselho Municipal da Saúde, órgão independente que fiscaliza a política de saúde em Porto Alegre, critica o fechamento de vagas em hospitais. Por nota, afirmou que a prefeitura não apresentou a prestação de contas sobre a decisão.
“Não houve criação de novos leitos, no sentido de manutenção, na gestão do prefeito Sebastião Melo. No período de março e abril, que foi um período crítico da pandemia, ocorreram contratualizações que, além de não se manterem, causaram uma série de problemas, envolvendo a Associação Hospitalar Vila Nova e o Hospital de Pronto-Socorro, além do Hospital Divina Providência, como retaguardas de compra de leitos”, diz o órgão.
“Além disso, houve contratualizações com hospitais que não eram credenciados com o SUS: Hospitais Porto Alegre e Beneficência Portuguesa, que também apresentava problemas estruturais. O Conselho Municipal da Saúde considera que todo o processo deve ser avaliado com cautela, inclusive do ponto de vista da legalidade”, finaliza a nota.
O Grupo Hospitalar Conceição, que praticamente triplicou o número de leitos de UTI, já fechou muitas vagas em áreas improvisadas. Como legado para Porto Alegre, o hospital deixará 55 leitos clínicos abertos a outras doenças em março deste ano.
— Entendo a estratégia do município em querer focar nos pacientes (que) não (sejam de) covid e, havendo necessidade, habilitar leitos. Mas devemos ficar alertas porque é possível ter casos de Ômicron aqui no Estado como tivemos de Delta, com surtos em cidades e hospitais — diz Cláudio Oliveira, diretor-presidente do Grupo Hospitalar Conceição.
O que diz a prefeitura
A Secretaria Municipal da Saúde (SMS) afirma que está transformando leitos para tratamento de coronavírus em vagas para atendimento a outras doenças porque a demanda criada pelo Sars-Cov-2 está baixíssima, enquanto a de outras doenças mostra-se alta.
— A Ômicron certamente vai causar mudança no número de casos e, eventualmente, em internados. Acompanhamos isso diariamente, mas temos segurança de que o grande percentual de vacinados em Porto Alegre fará termos uma pressão hospitalar menor. O gestor público tem escolhas a fazer, e há centenas de pacientes que precisam de internação com urgência para outras doenças. É totalmente indesejável termos capacidade hospitalar ociosa — diz o médico intensivista João Marcelo Lopes Fonseca, assessor de planejamento da pasta.
Vinícius de Castro Greff, diretor de contratos da SMS, garante que haverá vagas para pacientes com coronavírus, se houver piora da epidemia.
— Provavelmente, não haverá déficit. Mas, se vivenciarmos uma nova onda da covid, o prazo para religar leitos é de três a cinco dias, com contratação de pessoas e pleno funcionamento. Estamos preparados para tomar medidas necessárias — diz Greff.
Sobre os convênios com os hospitais Beneficência Portuguesa e Porto Alegre, o diretor de contratos da SMS afirma que estão em análise pela Procuradoria-Geral do Município (PGM).
— Esses dois hospitais foram utilizados durante o auge da pandemia por requisição administrativa. Agora, se verifica a possibilidade de contratar ou não estes entes pelo SUS. Neste momento, não tem uma definição, até porque há óbices legais que podem inviabilizar a contratualização desses parceiros, e isso está sendo analisado pela PGM. As instituições precisam ter todos documentos, mas têm dificuldade de certidão de dívida negativa — conclui.
Em nota, a SMS destaca que o Hospital Beneficência Portuguesa e o Hospital Porto Alegre não mantêm contrato com a Prefeitura de Porto Alegre. "No mês de fevereiro, com o decreto de calamidade pública em decorrência da pandemia, foi feita uma requisição administrativa - modalidade de intervenção do Estado na propriedade privada, prevista em lei - de leitos clínicos e de UTI para atendimento de pacientes com covid-19 aos dois hospitais, tendo em vista que já havia sido feita toda a ampliação possível da rede junto aos prestadores contratualizados", afirmou por meio de nota.
"Além disso, foi realizada a contratação de leitos clínicos e de UTI junto ao hospital privado Divina Providência, pelo período de seis meses, sendo remunerados pela sua efetiva utilização. Todos os esforços da prefeitura foram na tentativa de absorver a alta demanda de internações por covid-19, o que só foi possível devido à força-tarefa realizada em parceria com os hospitais públicos e privados da Capital", diz a Secretaria Municipal da Saúde.
O que dizem os hospitais citados pelo Conselho Municipal de Saúde (CMS)
O presidente da Associação Beneficência São Miguel, responsável pelo Beneficência Portuguesa e, desde dezembro, pelo Hospital Porto Alegre, estranha a menção pelo CMS e cita que as instituições "prestaram seu papel" em ajudar a salvar vidas durante o ápice da covid-19 na cidade.
— Fomos importantes na pandemia. O Beneficência Portuguesa lotou seus 15 leitos de UTI com pacientes de covid. Atendemos e ajudamos o sistema. O que nos manteve de pé não foi o contrato com a prefeitura, mas com operadores de saúde (convênios). Temos a consciência tranquila de que cumprimos nosso papel. O hospital não deve em nada do ponto de vista médico. Hoje, o SUS de Porto Alegre está nas mãos de Vila Nova, Independência e Santa Casa. Não enxergo o que esses hospitais têm a mais do que o Beneficência Portuguesa — diz França.
Sobre o Hospital Porto Alegre, fechado em novembro, o presidente da Associação Beneficência São Miguel diz que a instituição também colaborou para atender pacientes e que está apta a firmar contrato com a prefeitura.
— O que a prefeitura alega, que o Beneficência Portuguesa tem dívida e não pode contratualizar, o Hospital Porto Alegre está disponível, com 10 leitos de UTI, pronto-atendimento e unidade de endoscopia. Estamos abertos a conversar. Não negamos a dívida do Beneficência Portuguesa, queremos equacionar, estamos dispostos a conversar. Mas me causa estranheza o Conselho Municipal da Saúde colocar dessa forma — acrescenta.
O Hospital Divina Providência, que atende na modalidade privada, informou por nota que possuía 191 leitos em março de 2021 e que, no ápice da epidemia, abriu 99 leitos a pacientes com covid-19. "No período de março e abril de 2021, mesmo o hospital apresentando uma taxa de ocupação acima de 108%, numa ação solidária, e a pedido da SMS da Capital, acolheu, em caráter excepcional, 20 pacientes do SUS encaminhados pela regulação municipal devido à indisponibilidade completa de leitos na rede pública".
O Divina Providência cita que, na terceira onda de agravamento da pandemia, "atendeu, diariamente, mais de 4.417 pacientes acometidos por covid-19, dos quais 310 provenientes do SUS. A remuneração se deu pela ocupação, ou seja, exclusivamente quando o leito foi utilizado".
O Hospital Vila Nova não se pronunciou sobre o assunto.