Os vírus se tornaram os grandes vilões deste planeta — um deles, aliás, o responsável pela maior pandemia do século, a de coronavírus —, mas essa classe de seres vivos também pode contribuir para o avanço na luta contra o câncer. A ideia, aqui, é colocá-los a nosso favor para atacar tumores.
Durante décadas, as terapias tradicionais contra o câncer se resumiam a cirurgia, quimioterapia e radioterapia — ou seja, usar fortes remédios para atacar o tumor ou extrair fisicamente o tecido maligno. Mas a ciência pesquisa outras saídas mais efetivas e capazes até de vencer metástases — nos últimos 10 anos, a mais promissora é a imunoterapia, que estimula o sistema imune a lutar contra as células cancerígenas.
Há diferentes tipos de imunoterapia, algumas das quais já em uso contra alguns cânceres, como de estômago, pele, pulmão, rim, cabeça e pescoço, e bexiga. Uma nova frente que vem recebendo mais atenção nos últimos anos, com o avanço da engenharia genética, é a terapia oncolítica viral (onco = câncer e lise = destruição), que pode até virar vacina.
A ciência sabe que alguns vírus naturalmente preferem se replicar dentro de células cancerígenas a fazê-lo dentro das saudáveis. Partindo dessa premissa, a ideia é injetar vírus manipulado geneticamente para atacar células cancerígenas, poupando as que não têm a ver com a história. Dentre os mais pesquisados, estão o vírus da herpes, o adenovírus (típico de resfriado) e o vaccinia (da varíola).
Os vírus oncolíticos costumam despertar a resposta do sistema imune por serem vistos como invasores. Cientistas descobriram que esses vírus, durante o ataque aos tumores, ainda convocam as células de defesa para brigar contra as células cancerígenas, no melhor estilo "o inimigo do meu inimigo é meu amigo".
— Faz tempo que sabemos que alguns vírus, quando entram no organismo, infectam preferencialmente células tumorais e podem até destrui-las. A ideia é sedutora: sempre tratamos vírus como um inimigo, mas aqui usamos algumas características dele a nosso favor. Quando o vírus entra na célula para se replicar, ele também se torna um vetor, então eu posso modificar esse vírus geneticamente e colocar algumas proteínas para ele levar coisas que queremos, mas sem se replicar, o que evita que cause doenças — explica o médico Sérgio Roithmann, chefe do Serviço de Oncologia do Hospital Moinhos de Vento de Porto Alegre.
Sabemos que alguns vírus, quando entram no organismo, infectam preferencialmente células tumorais e podem até destruí-las. A ideia é sedutora: sempre tratamos vírus como um inimigo, mas aqui usamos características dele a nosso favor.
SÉRGIO ROITHMANN
Chefe do Serviço de Oncolologia do Hospital Moinhos de Vento
T-VEC estás em uso nos Estados Unidos
Apenas uma terapia oncolítica viral está aprovada hoje, com efeitos interessantes, mas restritos a um tipo específico de câncer: a T-VEC, em uso nos Estados Unidos, que injeta diretamente no melanoma um vírus da herpes geneticamente modificado. Ao entrar nas células cancerígenas, o vírus as destrói — mas, como foi programado para não se replicar, poupa as células saudáveis. Além disso, chama células de defesa para combaterem o tumor.
Outra versão de terapia oncolítica viral em desenvolvimento, e ainda mais promissora, é uma potencial vacina contra o câncer. Há ao menos 3.233 estudos em andamento com vírus oncolítico, dos quais quase 500 estão em fase 3, conforme revisão publicada em 2020 no Journal of Immunotherapy of Cancer.
A ideia central é pegar o vírus programado para atacar tumores e modificá-lo geneticamente para levar proteínas presentes também nas células malignas, algo parecido com a tecnologia das vacinas de vetor viral usadas contra a covid-19, como o imunizante de Oxford/Fiocruz.
— A diferença entre a terapia oncolítica e a vacina de vetor viral é que a terapia oncolítica mata as células tumorais que infecta, enquanto que a vacina de vetor viral não causa dano às células do corpo do vacinado — esclarece a imunologista Cristina Bonorino, coordenadora do Laboratório de Imunologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Ao entrar no organismo, o "invasor" ativa as células dendríticas, as primeiras guardas do sistema imune, responsáveis por encontrar um intruso, identificá-lo (é vírus? Bactéria? Parasita?) e instruir os linfócitos T a atacar as células cancerígenas que possuem a proteína inserida artificialmente no organismo.
Para além de matar o tumor em um local específico, o sistema imune fará uma varredura em todo o corpo para encontrar outros tumores com essa proteína, como um aspirador-robô autônomo, o que poderia encontrar e eliminar metástases. A médio prazo, o corpo também aprenderia a eliminar futuras células cancerígenas derivadas do primeiro tumor, caso haja recidiva — mas não de outros cânceres, vale destacar.
Personalização do tratamento
Um obstáculo é que cada indivíduo tem um tumor específico, com células distintas e proteínas únicas, o que reduz a eficácia de uma possível vacina que use proteínas vistas como "universais" para qualquer tumor. Em busca de personalizar o tratamento para aumentar a eficácia da vacina, cientistas estudam coletar uma amostra do tumor, sequenciar as células cancerígenas, reunir algumas proteínas presentes e modificar o vírus para trazer as substâncias específicas das células cancerígenas de cada paciente.
Manipular um vírus geneticamente é caro, complicado e exige laboratório equipado e barreiras sanitárias, então ainda se busca um atalho no processo: simplesmente colocar as proteínas do tumor sequenciado no líquido da vacina, ao lado do vírus. Em camundongos, essa solução funcionou bem, mostrou estudo do Centro de Pesquisas do Hospital da Universidade de Montréal, no Canadá, divulgado neste mês na revista Nature Communications.
Essa seletividade da terapia oncolítica viral é um dos grandes pontos fortes: o foco é apenas nas células cancerígenas, e não as sadias, que morrem na quimioterapia e radioterapia. Pacientes sofreriam menos efeitos colaterais (como queda na imunidade, fraqueza e perda de cabelos) e ainda estariam protegidos, no futuro, contra o aparecimento de novos tumores.
— O vírus oncolítico leva uma proteína do tumor na qual tu vai focar a resposta imune. A químio e a radioterapia simplesmente matam células que estão em divisão, incluindo as boas, causando todos aqueles efeitos adversos. Por enquanto, não existe terapia perfeita e única para ser usada. Mas a imunoterapia virou o jogo no combate ao câncer. É outro paradigma, assim como a vacina de RNA mudou a paisagem das vacinas. Câncer era a coisa mais complexa que existia e agora estamos nos aproximando da cura. É uma questão de tempo. E dinheiro — sintetiza a imunologista Cristina Bonorino.
Tire suas dúvidas
- O que é um vírus oncolítico? É um vírus que mata células cancerígenas.
- O que é a terapia de vírus oncolítico? É um tipo de imunoterapia que usa alguns vírus para atacar células de certos tipos de câncer.
- O que é a imunoterapia? É um tipo de tratamento contra o câncer que estimula o sistema imunológico a combater as células cancerígenas.
- O sistema imune não ataca, normalmente, o tumor? O sistema imune sabe que o tumor é um inimigo e que não deveria estar ali, mas as células cancerígenas conseguem escapar do ataque das células de defesa. O pulo da imunoterapia é adaptar nossa imunidade para impedir que as células cancerígenas escapem de nossas defesas.
- Quais são os principais tipos de câncer? O Instituto Nacional de Câncer (Inca) aponta que os tipos mais comuns de câncer são de pulmão, próstata, intestino, estômago e fígado. Nas mulheres, a incidência maior é de mama, intestino e pulmão.
Não será a bala de prata
Especialistas observam que a terapia oncolítica viral não deve ser a bala de prata para resolver todos os cânceres, mas pode ser uma ótima opção para tratar tumores que, hoje, não têm cura. Vencidas as limitações estruturais de manipular um vírus dentro de hospital para personalizar o tratamento, o uso desse tratamento tem grande potencial, sobretudo ao lado de outras imunoterapias, diz Vladmir Lima, diretor da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC) e coordenador do Comitê de Oncogenômica.
— A imunoterapia é um universo, o que inclui a terapia de vírus oncolítico. Provavelmente, ela terá, no futuro, uma aplicação cada vez maior e individualizada, usada com outras imunoterapias. Você pode pegar um câncer que não responde a inibidores de checkpoint (um tipo de imunoterapia que tenta estimular a resposta das células de defesa), infectar o tumor com vírus oncolítico para gerar uma resposta imune do organismo e aí adicionar o inibidor de checkpoint para aumentar a resposta imune. Muito provavelmente, é isso que vai acontecer — afirma Lima.
O médico Sérgio Roithmann, do Hospital Moinhos de Vento, projeta o dia em que será possível modular o sistema imune para o melhor tratamento.
— Quem sabe, no futuro, teremos a manipulação de nosso sistema imunológico para o tratamento contra o câncer. Acho que usaremos várias armas, dependendo do tipo de tumor e de onde ele está no corpo. O que a humanidade precisa é de mais cartas na manga. Acho que daqui a cinco anos vamos testar fortemente em seres humanos uma vacina contra o câncer — diz.