O início da imunização de professores em Esteio a partir desta quinta-feira (6) enquanto trabalhadores da educação do resto do Rio Grande do Sul aguardam sua vez é mais um exemplo a ilustrar a descentralização no combate ao coronavírus no Brasil.
Gestores e especialistas discutem a autonomia conferida pelo Ministério da Saúde para Estados e municípios mudarem a ordem dos grupos prioritários a despeito do estabelecido no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO) – a decisão é criticada por analistas entrevistados por GZH.
O PNO é o documento do Ministério da Saúde que define a ordem de imunização dos 28 grupos prioritários. Diz, por exemplo, que idosos devem ser vacinados antes de pessoas com comorbidades – e que, em seguida, entram indivíduos em situação de rua, presos, trabalhadores do sistema penitenciário e professores. A questão é que o governo federal não obriga que essa ordem seja seguida ao pé da letra por governadores e prefeitos, segundo a própria pasta.
O Ministério da Saúde informou a GZH que recomenda a gestores seguirem a ordem do PNO, mas que Estados e municípios "têm autonomia para montar seu próprio esquema de vacinação" e "dar vazão à fila de acordo com as características de sua população, demandas específicas de cada região e doses disponibilizadas".
A pasta não acompanha cada alteração da fila em Estados e municípios em virtude do tamanho do Brasil e justamente por conta da liberdade que concede aos entes federados. Como consequência, categorias profissionais ganham dose em uma cidade ou Estado enquanto em outras regiões, não, a depender da disposição do gestor e da força do sindicato (veja exemplos abaixo).
Um dos casos mais emblemáticos é o adiantamento das vacinas para professores em São Paulo, Distrito Federal e Espírito Santo. A decisão, capitaneada pelo governador paulista João Doria (PSDB), desagradou a outros governadores, que defendiam o prosseguimento da ordem do Ministério da Saúde. Enquanto isso, sindicatos do setor da educação de outros Estados passaram a cobrar de seus políticos a mesma priorização.
No Rio Grande do Sul, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) opta por seguir a orientação do governo federal. A pasta informou por e-mail que os municípios “têm autonomia para implementar estratégias de vacinação, a partir das realidades locais”, desde que a liberdade seja “exercida dentro do grupo prioritário que está sendo vacinado no momento, que deve seguir o Plano Nacional de Imunizações”.
Em Esteio, caso citado no início deste texto, a vacinação de professores não fere nenhuma orientação, afirmou o prefeito do município, Leonardo Pascoal (Progressistas). Ele explica que secretários municipais da saúde decidiram com o governo do Estado que as doses das atuais remessas devem ser aplicadas em pessoas com comorbidades até os 40 anos, mas que Esteio já atingiu essa faixa etária, detém vacinas no estoque, não tem presos nem agentes penitenciários e, portanto, pode avançar para os profissionais da educação.
— Estamos à frente na vacinação. Não vamos preterir ninguém, vamos seguir vacinando os grupos prioritários, conforme previsto nas resoluções e, com as novas doses, faremos a adequação ao plano nacional, antecipando a vacinação dos professores, o grupo subsequente — afirma Pascoal.
O prefeito de Esteio menciona ainda que está amparado pela decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski de segunda-feira (3). No parecer, a ser votado pelo plenário da Corte, o ministro suspendeu a antecipação de vacinação para professores e agentes da segurança no Rio de Janeiro, mas avaliou que Estados e municípios podem adotar estratégias de combate à covid-19 de acordo com realidades locais.
— A decisão do ministro Lewandowski é de que Estados e municípios podem fazer alterações, desde que sejam observados parâmetros e haja publicidade. Nossa decisão tem embasamento jurídico e técnico, não é atitude de rebeldia. Antes da decisão do ministro, entendemos que não havia amparo legal. Agora tem. A opção poderia ser de vacinar abaixo de 40 anos com comorbidades, mas decidimos adentrar no grupo de professores com essa idade. Quando a determinação for reduzir a idade do grupo de comorbidades para chegar aos 39 e 38 anos, vamos voltar a eles e, se sobrarem doses novamente, vacinaremos professores com 39 e 38 — diz Pascoal.
Para a epidemiologista Carla Domingues, doutora em Saúde Pública e ex-diretora do PNI por oito anos (2011-2019) no Ministério da Saúde, a autonomia que o governo federal deu para que Estados e municípios mudem a ordem da vacinação pulveriza um processo que deveria ser conduzido pela União.
— O Ministério da Saúde delegou a possibilidade de decidir como será feito o processo de vacinação a Estados e municípios. Está escrito isso. Hoje, o PNI apenas define a ordem de distribuição das vacinas, mas não a política de vacinação. Ninguém pode ser penalizado por fazer diferente — diz Carla.
Segundo a epidemiologista, a autonomia confunde a população e impede que o governo acompanhe em nível nacional os impactos da imunização nos grupos prioritários.
— Desde o começo da pandemia, vemos que o Ministério da Saúde deixou de ser o eixo condutor do combate à covid. Não definiu critérios para fazer lockdown, para fazer tratamento contra a covid nem para abrir e fechar leito de UTI, e aí cada Estado buscou sua estratégia. O mesmo acontece agora. Não tem nenhuma lei definindo que tem que seguir o que está no PNI. A decisão era pactuada com Estados e municípios em um pacto federativo que todo mundo cumpria. Agora, o Ministério da Saúde abriu mão desse pacto e disse que cada Estado e município tem autonomia — acrescenta a ex-diretora do PNI.
Para a médica Raquel Stucchi, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) e professora de Infectologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a autonomia dada pelo Ministério da Saúde gera desorganização na campanha nacional e coloca trabalhadores com entidades de classe menos fortes no fim da fila, apesar do risco para a covid-19.
— Se nosso objetivo é diminuir mortalidade, temos que vacinar todos os acima de 60 anos, depois diabético, cardiopata, pneumopata e outras doenças, independentemente da idade. Mas isso deveria vir do Ministério da Saúde. A autonomia dá margem para a pressão de sindicatos em cada gestor. Se você deixa para o prefeito decidir, vem o sindicato das empresas de transporte, o sindicato dos professores ou quem tiver mais força política no momento ganhar a discussão e receber a vacina. Aí o obeso, o diabético e o imunossuprimido segue morrendo — diz Raquel.
Veja casos de vacinação à revelia do PNO
- Em Bagé, agentes funerários foram imunizados junto aos idosos acima de 67 anos, a despeito de o PNI não considerar a categoria prioritária.
- Em São Leopoldo, a prefeitura passou a usar a “xepa” das vacinas de cada dia para imunizar professores da Educação Infantil. A Secretaria Estadual da Saúde afirmou a GZH na terça-feira (4) que o resto de doses não usadas deve ir para o grupo prioritário vacinado no momento, mas que não cabe ao Estado tomar medidas a respeito desse novo movimento em São Leopoldo.
- A cidade de São Paulo vacinou, em abril, motoristas de metrô e de trem, categoria que está no fim da fila dos grupos prioritários.
- Na mesma toada, Porto Alegre começou nesta terça-feira a vacinar 58 servidores da Trensurb após articular junto à prefeitura a inclusão no grupo de profissionais da segurança pública.
- Diversos Estados, incluindo Amazonas, Pará e Goiás, anteciparam a vacinação de forças da segurança, o que inclui policiais, brigadianos e bombeiros. Posteriormente, o Ministério da Saúde autorizou a mudança na ordem, o que deu o sinal verde para o Rio Grande do Sul fazê-lo em abril. O movimento veio após a pressão da categoria pelo crescimento no número de infecções e mortes dos profissionais que atuam nas ruas.