Quando nasceu com a missão de enfrentar a pandemia de coronavírus, em maio de 2020, o plano gaúcho de distanciamento controlado apontou o caminho que seria seguido por dezenas de iniciativas semelhantes adotadas em outros Estados.
Após um ano de vigência, agora é o modelo pioneiro no país que busca mudar de rumo. Especialistas ouvidos por GZH sugerem que o novo sistema a ser apresentado em 10 de maio aprimore a capacidade de prever novas ondas de contaminação devido ao surgimento de variantes mais contagiosas do vírus, não dê tanta ênfase à disponibilidade de leitos de terapia intensiva (UTIs) e se sustente em indicadores mais claros e objetivos.
O governador Eduardo Leite afirma que o formato agora abandonado cumpriu um objetivo específico:
— Foi lançado em um momento em que havia paralisações de atividades e restrições muito severas. O problema é que isso se prolongou, e era importante que se tivesse alguma condição de restabelecer as atividades com segurança. O grande mérito do modelo foi justamente o de poder aplicar, por região, a restrição no momento apropriado pelo monitoramento constante e na proporção necessária.
Algumas das recomendações de epidemiologistas, infectologistas e matemáticos para o futuro do sistema já estão em discussão entre integrantes do comitê científico do Piratini, como a busca por parâmetros mais simples do que as atuais fórmulas matemáticas que orientam as definições das cores das bandeiras. Conforme revelado por GZH nesta terça-feira (4), o governo trabalha com a intenção de apresentar um novo modelo em 10 de maio com base em indicadores mais diretos, como nível de ocupação de leitos em vez de fórmulas que combinam diferentes índices e geram números complexos e difíceis de relacionar com a realidade.
— Um dos temas em discussão é simplificar o conjunto de indicadores e tentar identificar quais foram mais determinantes (para avaliar o cenário da pandemia). Ainda precisamos conversar mais sobre quais serão observados — afirma a integrante do grupo de trabalho de projeções epidemiológicas do comitê de dados do Piratini Suzy Camey, que também é professora de Estatística e Epidemiologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Doutor em matemática e professor da UFRGS, Álvaro Krüger Ramos defende que o próximo modelo leve em conta critérios que incentivem a prevenção e o combate da transmissão viral, como a taxa de positividade dos exames (um índice elevado pode indicar alto grau de contaminação), proporção de testes aplicados por população (o que poderia evitar que prefeituras testassem menos para reduzir registros), número de casos confirmados, taxa de transmissão (Rt) e dados brutos de hospitalização.
— Leitos livres deveriam ser considerados à parte, e com peso menor — recomenda Ramos, fazendo referência a um dado que hoje tem importância significativa.
Outra sugestão do especialista, que fez um estudo sobre o distanciamento, é diminuir os pesos e quesitos comparativos de hospitalizações, que atualmente são utilizados como critérios para medir o avanço da covid-19. Nessa mesma linha, o infectologista Alexandre Zavascki observa que as comparações entre níveis de internação ao longo do tempo acabaram gerando uma distorção nas análises. Se a quantidade de pacientes não variasse muito de uma semana para outra, mesmo com patamares muito altos de ocupação, a gravidade da situação não transparecia adequadamente.
— O modelo considerava de forma semelhante as situações em que os hospitais estavam vazios ou superlotados, se não houvesse variação significativa na quantidade de pacientes. Por isso, tiveram de criar instrumentos como as travas para manter o Estado nas bandeiras preta ou vermelha. É preciso abandonar o formulismo e interpretar o que os indicadores mostram — explica Zavascki.
É preciso abandonar o formulismo e interpretar o que os indicadores mostram
ALEXANDRE ZAVASCKI
Infectologista
Leite confirma que, embora as alterações ainda estejam em estudo, o novo sistema deverá se sustentar em índices mais objetivos, como os que já são publicados atualmente em boletins diários de monitoramento da pandemia: números brutos de casos e hospitalizações, por exemplo.
— Possivelmente, o que vamos encaminhar é um sistema de gestão do distanciamento, cujo nome também pode ser ajustado diante desse novo momento, que terá uma análise a partir dessa série de dados e informações, mas sem uma fórmula matemática. Olhando os dados desses gráficos e informações e emitindo alertas para cada uma das regiões — revela o governador.
Mas há armadilhas na mudança de indicadores a serem priorizados, como a demora no registro de novos casos de coronavírus.
— Em 29 de janeiro, por exemplo, tu olhavas para o número de casos diários e estavam abaixo de mil. Mas, em 15 de fevereiro (quando a pandemia estava se agravando no RS), olhávamos para trás e víamos que havia, na verdade, mais de 3 mil casos. Mais de 2 mil casos entraram para o sistema, retroativamente, ao longo das duas semanas seguintes — observa Camey.
Possivelmente, o que vamos encaminhar é um sistema de gestão do distanciamento, cujo nome também pode ser ajustado diante desse novo momento, que terá uma análise a partir dessa série de dados e informações, mas sem uma fórmula matemática
EDUARDO LEITE
Governador do Estado
Por isso, é preciso que os diferentes dados sejam observados de forma ampla, incluindo métricas mais confiáveis, como as internações em leitos clínicos (que permitem antever um posterior impacto nas UTIs e no número de óbitos). Outro desafio a ser enfrentado é a acomodação dos critérios científicos com pressões econômicas e políticas — que ao longo dos últimos meses levaram a flexibilizações como possibilidade de apelação e o sistema de cogestão.
— O principal recado é que o plano precisa ser técnico — resume o epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Pedro Hallal.
AS LIÇÕES DO PRIMEIRO ANO PARA O FUTURO
Veja alguns dos aprendizados desde que o distanciamento controlado entrou em vigor e que podem contribuir para sua renovação:
Acerto do formato
A ideia de se ter um conjunto de critérios que aponta o risco de contaminação e sobrecarga no sistema de saúde, dividido por regiões em razão da covid-19 e capaz de acompanhar a dinâmica da pandemia com momentos de maior ou menores restrições localizadas, é o grande achado do modelo gaúcho. Isso deverá permanecer.
Importância da simplicidade e da estabilidade
Entre as críticas mais frequentes ao modelo em extinção estão sua complexidade de cálculo, que resulta em índices difíceis de relacionar com a realidade de cada local, e mudanças tão constantes e abrangentes que motivaram declarações públicas de perda de sustentação como do prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, ou do presidente da Assembleia, Gabriel Souza.
Ênfase em indicadores precoces
Para especialistas como o doutor em matemática Álvaro Krüger Ramos, é importante privilegiar indicadores que apontem sinais precoces de agravamento da pandemia, como aumento na proporção de testes positivos e aumento da taxa de contaminação, do que focar em índices tardios como a disponibilidade de leitos livres de UTI. Dessa forma, fica mais viável tomar medidas de maneira mais precoce e evitar colapsos na rede de atendimento.
O risco da politização
O modelo tem de ser despolitizado. Funcionou muito bem de março a setembro porque era técnico. Parou de dar certo, embora a chegada da variante P.1 seja uma das explicações, porque virou modelo político em que se podia apelar, tinha cogestão, botava e tirava trava das bandeiras
PEDRO HALLAL
Epidemiologista da UFPel
O modelo perdeu a confiança de gestores e especialistas quando passou a acumular tantas mudanças (após 11 revisões em menos de um ano) que se descaracterizou.
— O modelo tem de ser despolitizado. Funcionou muito bem de março a setembro porque era técnico. Parou de dar certo, embora a chegada da variante P.1 seja uma das explicações, porque virou modelo político em que se podia apelar, tinha cogestão, botava e tirava trava das bandeiras — afirma o epidemiologista da UFPel Pedro Hallal.
Fiscalização efetiva
Uma das principais lições é que não adianta impor regras se elas não forem seguidas e adequadamente fiscalizadas. Para o presidente da Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs), Maneco Hassen, ainda é preciso discutir um modelo mais efetivo de fiscalização conjunta entre Estado e prefeituras:
— É importante ter um projeto estadual de fiscalização porque há muitas questões que os municípios não conseguem dar conta, em casos fora de ambientes de trabalho, como em festas e aglomerações em espaços abertos. Para barrar isso, só com apoio das forças de segurança.
Modelo de restrição
Para o epidemiologista Pedro Hallal, a experiência dos últimos 12 meses demonstrou que não adianta evitar restrições mais duras e manter a pandemia fora de controle por muito mais tempo em comparação à imposição de limitações mais pesadas, por períodos curtos, que derrubam a taxa de contágio da covid-19 e permitem aberturas mais amplas e prolongadas depois.
— Não controlar a doença destrói a saúde e a economia — argumenta Hallal.
Ordenação das prioridades
É preciso dar muita atenção à ordem em que diferentes setores da sociedade podem funcionar. Para especialistas, a permissão para que bares e restaurantes abrissem enquanto escolas permaneciam sem aulas presenciais, por exemplo, fragilizou o sistema e contribuiu para a constatação de que havia chegado ao esgotamento.
COMO É O MODELO ATUAL
Hoje, o distanciamento controlado combina 11 indicadores para medir a propagação e o avanço da doença, avaliar o risco e atribuir protocolos de segurança específicos para 21 regiões. Os índices são calculados a partir de fórmulas matemáticas com diferentes pesos levando em conta dados como casos ativos, hospitalizações, óbitos.
A partir disso, são definidas quatro cores de bandeiras: amarela, laranja, vermelha e preta, que indicam nível de perigo crescente e estabelecem diferentes protocolos sanitários. Por meio de acordo da chamada cogestão, prefeituras podiam adotar medidas da bandeira mais branda. Isso foi suspenso até 10 de maio, quando será apresentado o novo formato.