Alguns dos principais hospitais de Porto Alegre registram, desde fevereiro, um aumento na entrada de pacientes com covid-19 mais jovens e sem comorbidades em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs). Algumas instituições verificam, ainda, maior tempo de permanência na internação, o que contribui para o esgotamento do sistema hospitalar. O fenômeno aponta para uma possível mudança no perfil de doente de risco em comparação ao início da pandemia, quando os mais idosos eram as principais vítimas.
A principal hipótese para a mudança é o aumento das infecções por conta da transmissão comunitária, em solo gaúcho, da nova cepa de Manaus, a P1. Há estudos indicando que ela é até 2,2 vezes mais transmissível, mas não se sabe ainda se isso pode causar um quadro mais grave do que variantes anteriores.
Cientistas sugerem que o segundo colapso no sistema de saúde de Manaus foi causado pela variante P1, que consegue escapar dos anticorpos formados por uma infecção anterior – na prática, isso joga por terra a expectativa de imunidade de rebanho alcançada por contaminações e reforça a expectativa por vacinas.
No Hospitalar Nossa Senhora da Conceição, referência para o atendimento de casos de coronavírus pelo Sistema Único de Saúde (SUS), a idade média de internados em UTIs pela doença caiu de 65 anos, na primeira semana de dezembro, para 54,2 anos, na última semana de fevereiro.
No Hospital de Clínicas de Porto Alegre, a média de idade de internados em UTIs em 2020 e no mês de janeiro de 2021 girava em torno de 60 anos. Em fevereiro, caiu para 56,6 anos e, em março, para 48 anos. No Mãe de Deus, a média de idade era de 64,3 em novembro e de 59,2 em fevereiro.
No Hospital Moinhos de Vento, a média de idade de internados em leitos intensivos por covid-19 caiu de 61,05 anos, em dezembro, para 60,2 anos, em fevereiro. A variação soa pequena por conta dos superidosos, que puxam a média de fevereiro para cima, mas aumentou a proporção de jovens em estado crítico: o último boletim indica que 41% dos pacientes em leitos clínicos e de UTI tinham menos de 60 anos, contra 25% há três meses.
Cepa mais transmissível
Uma das hipóteses ventiladas por médicos é de que a cepa de Manaus, por ser mais transmissível, esteja aumentando o número de infectados jovens, o que se reflete mais tarde em hospitais. Ao mesmo tempo, também se discute se a nova variante é, também, mais agressiva.
— O fato de aumentar a transmissibilidade acaba aumentando o potencial de contaminação na faixa etária mais jovem. Se aumenta a proporção de jovens contaminados, aumenta também a de hospitalizados. Pode ser uma resposta às aglomerações que testemunhamos. E ainda há o potencial de ser uma variante com potencial mais grave, porque se sabe que a variante da África do Sul tem potencial mais grave — diz a médica epidemiologista Ivana Varella, do Hospital Conceição.
Outra novidade que chamou a atenção dos médicos do Conceição é que os pacientes estão permanecendo mais tempo internados, o que contribui para a sobrecarga hospitalar, uma vez que leitos demoram mais a serem liberados.
Uma das possíveis explicações, sugere Ivana, é de que pacientes jovens resistem mais do que idosos contra a piora da doença e a chegada da morte. A hipótese faria sentido porque, apesar da maior entrada de jovens em quadro gravíssimo, não houve queda na faixa etária de mortos no Conceição (segue em 69 anos).
— Talvez os pacientes graves, com comorbidades, evoluam para óbito mais frequentemente. Mas são dados que precisamos entender melhor — diz a médica epidemiologista.
Na semana passada, João Gabbardo, ex-secretário-executivo do Ministério da Saúde e atual coordenador-executivo do Centro de Contingência ao Coronavírus do Estado de São Paulo, creditou o colapso das UTIs de lá ao maior tempo de internação dos jovens.
— Essas pessoas conseguem resistir mais ao enfrentamento do vírus e, por consequência, ficam mais tempo internadas. Os leitos não estão rodando na mesma velocidade, e isso está ocasionando em um acúmulo de pacientes — afirmou.
Maior capacidade de reação
No Hospital Mãe de Deus, a queda na média de idade dos internados em UTIs foi puxada pela maior proporção de pacientes com coronavírus abaixo de 49 anos, que passou de 18% de todos os internados, no ápice da primeira e da segunda ondas, no ano passado, para 34% neste momento.
— Quando o paciente é mais jovem, ele tem reserva energética maior para enfrentar a inflamação. Então, sempre tem a tendência de ter um prognóstico melhor. Mas ser jovem não evita que vá para a UTI, e a chance de isso acontecer aumentou agora. Não tivemos mudança na letalidade, que segue a mesma — diz médico intensivista e gerente de fluxo do Hospital Mãe de Deus, Marcius Prestes.
Na Santa Casa de Misericórdia, a mudança de perfil foi grande: em dezembro, o número de pacientes entre 60 e 69 anos era o dobro do número de internados entre 40 e 49 anos, e 41% maior do que na faixa etária entre 50 e 59 anos. Já na primeira semana de março, o total de internados em cada uma das três faixas era quase o mesmo.
— Me parece que a contaminação foi muito grande, o que levou a um número maior de infectados, mas sem dúvida essa cepa parece ter uma agressividade maior. Antes, jovens sem comorbidade raramente apresentavam quadros mais sérios e com necessidade de ir para a entubação. Essa é a impressão de nossos intensivistas e infectologistas — diz o diretor-médico da Santa Casa de Porto Alegre, Antonio Kalil.
A médica epidemiologista e assessora na Diretoria Médica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Jeruza Neyeloff, afirma que não é possível saber se a maior gravidade dos pacientes se deva à nova variante ou ao colapso do sistema de saúde, que aumenta o tempo de espera na fila para receber um leito e impõe aos doentes um maior tempo de agravamento da doença.
— A percepção da equipe é de muitos pacientes jovens, e muitos abaixo dos 30 anos. Uma hipótese é de que a nova variante tem mais potencial de causar doença grave em jovens, mas outra hipótese é de que, como a curva é exponencial, temos muita gente infectada. Com o esgotamento de recursos, temos que tomar decisões e investir em pacientes com mais chance de sobrevida, e os pacientes mais novos chegam antes dos pacientes mais velhos — afirma Jeruza.
Ela destaca, por outro lado, que é possível conter a onda com o distanciamento social.
— As pessoas têm que evitar se encontrar. Não é para sempre, não é o novo normal, é apenas um pouco, até recuperar o sistema de saúde. O vírus depende de pessoas se encontrando. Precisamos não dar chance para ele contaminar — finaliza Jeruza.
GZH entrou em contato com as secretarias da Saúde de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul nesta quarta-feira, mas não obteve retorno para entrevista sobre este tema até o fechamento desta reportagem.