A curiosidade sobre como seria o comportamento das pessoas no primeiro Carnaval da pandemia de coronavírus era assunto principal em rodas de conversa por onde se passava no litoral norte do Rio Grande do Sul na semana que antecedeu a maior festa popular do país. Aliás, festa essa cancelada por todas as prefeituras da região. A dúvida era se esses cancelamentos, protocolos sanitários, decretos municipais e estaduais seriam seguidos e se as pessoas realmente ficariam mais em casa, evitando as aglomerações.
O governo do Estado não publicou decreto específico com restrições para o Litoral Norte, diferentemente do que ocorreu no feriado de Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes, por exemplo, quando houve bloqueio da faixa de areia durante a madrugada para evitar aglomerações de fiéis que desejassem levar oferendas ao mar. Desta vez, o governador Eduardo Leite apelou para o bom senso dos veranistas.
Entre as prefeituras da região, a de Imbé publicou decreto específico para os cinco dias de feriadão. O ponto de encontro mais tradicional de vários carnavais, a Barra de Imbé, foi interditado ao trânsito. A Avenida Beira-Mar também foi interrompida para veículos.
Pelos flagrantes registrados pela reportagem de GZH ao longo do Carnaval, sabe-se que as medidas de prevenção e até de repressão não surtiram efeito para evitar a realização de festas em algumas praias. O saldo é de um Carnaval sem maiores confusões e pouca criminalidade, mas com aglomerações. E com foliões aglomerados sem máscara.
A projeção de infectologistas e epidemiologistas consultados por GZH é de que em aproximadamente 15 dias os reflexos dessas aglomerações cheguem aos hospitais.
As maiores aglomerações
Na praia de Atlântida, em Xangri-lá, o ponto de encontro das quatro primeiras noites de Carnaval foi um quiosque que fica bem em frente à Avenida Central. Ao lado da guarita 85 dos guarda-vidas, jovens chegavam com caixas térmicas lotadas de bebidas alcoólicas e energéticos.
Na ausência de clubes, de casas noturnas e das festas organizadas pelo poder público, a rua foi o principal destino. E as caixas de som portáteis era o que se tinha para realizar a folia. A chegada ao local era a pé, por veículos de aplicativo e até mesmo na carona dos pais.
Em Capão da Canoa, a tarde de sexta-feira (12) já era um prenúncio do que viria pela frente. Cerca de mil pessoas faziam festa na beira da praia, ao lado de um quiosque, a 500 metros do Largo do Baronda, todas sem máscara. A Brigada Militar (BM), que inicialmente monitorou a distância, voltou com efetivo maior e fez a dispersão dos foliões.
Apesar da prevenção e da repressão, as festas seguiram ao longo da noite da própria sexta-feira e nas noites e madrugadas seguintes, nos mesmos locais.
Em Cidreira, houve registro de aglomeração em uma das noites de Carnaval.
Carnaval controlado
Em Imbé, Tramandaí e Torres não houve relato de grandes aglomerações. Mesmo nas praias onde ocorreram festas ou teve um número maior de pessoas reunidas, nada se comparou ao que ocorreu em Capão da Canoa e Xangri-lá.
O que dizem as prefeituras
O secretário de Turismo de Capão da Canoa, Itamar Trombetta, lamentou os fatos ocorridos. Disse que houve intensificação do trabalho dos fiscais municipais, mas que não surtiu o efeito desejado.
- Infelizmente tivemos aglomerações. A prefeitura e a BM fizeram a sua parte. Achávamos que teríamos um Carnaval para comemorar, mas tivemos um para nos preocuparmos. Porque as pessoas simplesmente ignoram, desobedecem decretos – lamentou.
Para o secretário de Turismo de Tramandaí, Rojoel Amaral, o movimento na cidade foi o esperado neste Carnaval. Uma tenda foi colocada na beira da praia com o objetivo de conscientizar as pessoas para que evitassem aglomerações.
- As aglomerações quase não aconteceram. Também não tivemos tumultos que resultaram em ocorrências. Acho que foi bem positivo nesse sentido – ressalta Amaral.
Em Xangri-lá, o prefeito Celso Bassani Barbosa chegou a estudar um decreto para interditar a faixa de areia após duas noites com aglomerações na beira da praia de Atlântida, mas desistiu após reunião com órgãos de segurança. Segundo ele, seria praticamente impossível fiscalizar todo o trecho a ser fechado. Além disso, acharam melhor deixar a festa, mesmo que irregular, na areia, do que dispersar os jovens para outras partes da cidade.
- Esses jovens iam fazer festa igual. Então, achamos melhor que ficassem na beira da praia e controlando para que não ampliassem aquilo que já estava ocorrendo. O poder público fez a sua parte. As pessoas deveriam se conscientizar sobre o que não deveriam ter feito. Víamos jovens chegarem com pais, avós – disse Celsinho, como é conhecido na cidade.
BM fiscalizou 78 casos de aglomerações
O major Aurélio da Rosa, comandante do 2º Batalhão de Áreas Turísticas, responsável pela segurança de Torres a Nova Tramandaí, classificou o Carnaval como “plenamente positivo” sob o ponto de vista da segurança pública.
- Tivemos pleno sucesso. Foi um Carnaval de êxito para segurança do Litoral. Tivemos pontos de aglomeração, mas o importante, na visão da operação policial, é que foi feito o acompanhamento e a tentativa de reduzir ao máximo isso – sustenta o oficial.
O major explica que a troca de público da tarde para a noite no Carnaval da beira da praia de Capão da Canoa impediu novas ações mais ostensivas, como a ocorrida na sexta-feira (12).
- Uma vez que estavam chegando famílias, com crianças, com idosos, e junto a esses, tinha a juventude ouvindo música alta e consumindo bebida alcoólica, entendemos que uma ação mais repressiva poderia ter um dano até mesmo maior que a própria aglomeração – pondera o o oficial.
O Comando Regional de Polícia Ostensiva do Litoral Norte (CRPO Litoral) da Brigada Militar divulgou o balanço das principais ações realizadas entre 6h de quinta-feira (11) até 6h de quarta-feira (17), nos municípios entre Torres a Tavares. A BM agiu na dispersão de 78 casos de aglomerações, sendo a maioria em Capão da Canoa, com 41 registros. Boa parte deles ocorreu no domingo (14).
O Disque Denúncia 150 recebeu seis denúncias de aglomeração, sendo quatro confirmadas. Outras 52 foram recebidas pelo 190 da BM, que confirmou 30. O número de atendimentos para situações de perturbação do sossego público foi de 49, com apreensão de aproximadamente 40 equipamentos de som e produção de 79 termos circunstanciados.
O comandante do CRPO Litoral, coronel Marcel Vieira Nery, destaca que, nas aglomerações, a BM vem atuando de forma preventiva, com o trabalho dos agentes de Inteligência, e com o emprego da tropa para dissuadir os grandes grupos, quando necessário, de forma técnica a evitar confrontos.
Reflexos das aglomerações
O professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Epidemiologia Paulo Petry classifica as aglomerações do Carnaval como extremamente preocupantes. Diz que há relação direta entre elas e circulação do vírus.
- Se considerarmos que no Litoral nós temos pessoas de várias cidades, podemos esperar que ao retornarem para as respectivas cidades haja um espalhamento preocupante do vírus – observa o médico.
Petry acrescenta que, se for considerada a nova variante do vírus, que é ainda mais transmissível, a preocupação aumenta mais.
- Precisamos que a população compreenda o grave momento, apesar de estarmos todos cansados. Já vamos para um ano de pandemia. Mas as equipes dos hospitais, da linha de frente, estão cansadas, esgotadas, e esta é uma preocupação real. É um apelo que se faz para que a população colabore – pede o epidemiologista.
O chefe da Infectologia do Hospital Moinhos de Vento e professor da UFRGS Alexandre Zavascki reforça que as aglomerações são ambientes propícios para a disseminação do vírus.
- A partir de um paciente infectado, mesmo assintomático, o vírus se espalha para vários outros. É que o que a gente chama de eventos superespalhadores ou superdisseminadores – explica o infectologista.
Zavascki é um crítico das autoridades por permitirem aglomerações como as que ocorreram no Litoral Norte no Carnaval.
- Permitir isso num momento em que estamos com muitos casos, alto índice de hospitalizações, é um contrassenso contra a própria vida. Quem permite está tentando contra a própria vida – opina.
O médico diz que, para os profissionais da saúde, é difícil entender essa "quase autorização" para as aglomerações.
- A gente sabe como é o final da linha. Na hora “H” ninguém quer morrer. Então, não tem sentido a gente não tomar uma medida por causa da diversão das pessoas, por exemplo – pondera. - Se você faz parte de uma cadeia de transmissão e você não se cuidou, você está contribuindo para que alguém adoeça e, eventualmente, venha a óbito.