Prefeituras gaúchas seguem investindo na distribuição gratuita de medicamentos sem comprovação científica de eficácia para o tratamento da covid-19. Anúncios de dispensa de licitação e manipulação das fórmulas em farmácia da administração municipal estão entre as estratégias de três cidades que já disponibilizam ou estão em meio a trâmites para permitir o acesso da população às controversas hidroxicloroquina, indicada para malária e doenças reumatológicas, e ivermectina, antiparasitário utilizado para o combate a vermes, piolhos e sarna.
Igrejinha, no Vale do Paranhana, autorizou a produção dos dois medicamentos na farmácia de manipulação municipal desde a última segunda-feira (20). Até a tarde desta quarta-feira (22), nenhum pedido havia sido feito, mas o processo está estabelecido. Após passar por avaliação no Centro de Atendimento à Covid, o paciente com suspeita de infecção por coronavírus terá o exame de PCR coletado. De acordo com a secretária de Saúde, Simone do Amaral, o médico, se julgar que o doente pode se beneficiar do tratamento, fará um eletrocardiograma e encaminhará exames laboratoriais naquele momento. O profissional informará que há a possibilidade de tomar esses medicamentos específicos e, se o paciente manifestar interesse, assinará o termo de consentimento.
Quando o resultado ficar pronto, em cerca de 72 horas, o paciente será comunicado. Em caso de positivo para coronavírus, a prescrição será encaminhada para a farmácia, e um familiar poderá retirá-la gratuitamente. Em casos específicos, a entrega poderá ser feita a domicílio. Ao custo de R$ 19,5 mil, foram adquiridos insumos suficientes para cerca de 750 pacientes.
Questionado sobre a falta de estudos robustos que sustentem o uso dessas drogas em pacientes com covid-19, Helder Fernando Cunha dos Santos, diretor técnico da pasta, alegou que a decisão foi baseada em posicionamentos do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina e da Associação Médica Brasileira.
— Chega um determinado momento em que você tem que fazer algo com seus pacientes. Optamos por fazer isso — justifica Santos, que alega, entretanto, diferentemente da secretária, que o médico tem liberdade para ofertar a possibilidade de uso das drogas ou não. — Como entidades máximas que regem a saúde e a medicina do país nos dão essa possibilidade, nada mais justo do que deixar os médicos à vontade para oferecer a medicação. Eles têm autonomia — frisa o diretor.
Nas cidades serranas de Bento Gonçalves e Caxias do Sul, mesmo que aleguem que a decisão de usar as medicações para tratamento precoce da covid-19 pertence a médico e paciente, os municípios, ao comprarem os remédios, aderem a um novo protocolo clínico-farmacológico. Enquanto em Bento uma parte de medicações como hidroxicloroquina e ivermectina já foi adquirida, em Caxias foi publicado, no Diário Oficial, aviso de dispensa de licitação para compra dos fármacos. A medida permite o uso ambulatorial e hospitalar em pacientes que apresentarem sintomas iniciais da doença.
Em Bento, o edital foi por dispensa de licitação e já há um contrato firmado, sendo que foram comprados 75 potes com seis cápsulas cada de hidroxicloroquina, ao custo de R$ 1.650. A medicação é destinada a pacientes dos novos leitos da UPA 24 horas. Em relação à ivermectina, a compra é de 12 mil comprimidos, com investimento de R$ 28.320.
O prefeito de Bento Gonçalves, Guilherme Pasin (PP), que também responde pela Secretaria Municipal da Saúde, ressalta que o médico prescreverá o medicamento com o aval do paciente:
— Estamos tratando do direito de escolha do profissional médico em poder prescrever o tratamento que entender adequado ao seu paciente, que tem o direito de optar ou não por esse tratamento. Cabe ao poder público, no caso, ter as medicações em sua farmácia para que o cidadão, dotado do desejo e do receituário médico, tenha acesso.
Em Caxias do Sul, a prefeitura abriu edital de dispensa de licitação para a compra dos medicamentos. Os remédios serão destinados para tratamento ambulatorial e hospitalar precoce da covid-19. Está prevista a compra de 3 mil caixas de hidroxicloroquina 400mg. A medicação é suficiente para 500 tratamentos, sendo que são prescritos seis comprimidos por paciente. Da ivermectina 6mg, serão compradas 10 mil caixas para tratar mil pessoas, uma vez que são indicados de nove a 10 comprimidos por paciente.
O secretário municipal da Saúde, Jorge Olavo Hahn Castro, explica que a prescrição dos remédios ficará a cargo do médico e que o município não está fazendo um protocolo ou sugerindo o uso. Segundo ele, a compra ocorre agora porque os remédios estão em falta no mercado e a função da secretaria é colocar à disposição para quem optar pelo uso.
— Desde o início da pandemia, sempre falei: tratamento é opção do médico e do paciente. Não é um protocolo. Estamos disponibilizando. Quer tomar, tem disponível — diz Castro.
O lote estará disponível na farmácia do município e poderá ser retirado por sintomáticos após consulta na rede básica de saúde. Os hospitais já têm à disposição lotes encaminhados pelo ministério. No caso da hidroxicloroquina, o lote também será acessível para quem tem doenças como lúpus, entre outras.
Quanto à dispensa de licitação, o diretor-geral da Secretaria da Saúde, Mário Taddeucci, explica que as medicações não foram encontradas em nenhum laboratório para venda. Ainda segundo Taddeucci, como o Conselho Federal de Medicina permite ao médico prescrever os remédios, a prefeitura terá as medicações disponíveis na rede SUS do município:
— A prefeitura deu publicidade ao ato para que, se algum fornecedor tiver os medicamentos, que se apresente.
Entidades são contrárias ao uso dos medicamentos
A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Sociedade Brasileira de Imunologia e a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) emitiram notas contrárias ao uso dos medicamentos. Os especialistas avaliam que inexiste aval científico sobre as medicações. O Ministério da Saúde reconhece que não há comprovação da eficácia do tratamento à base dessas substâncias.
Diretora da SBI, a infectologista Lessandra Michelin reforça que, assim como a entidade que representa, é contra o uso das medicações. A iniciativa das prefeituras, opina ela, é uma tentativa de abrandar a incerteza a respeito do cuidado com a doença.
— Acredito não termos evidências para uso como está sendo preconizado, mas cada médico deve decidir se quer ou não prescrever. Eu não prescrevo, pois não tenho suporte científico para isso — garante Lessandra.
A infectologista Giorgia Torresini explica que a resposta imunoinflamatória do paciente desencadeia o melhor ou o pior desfecho no combate do organismo ao vírus, e isso ocorre após o término do processo infeccioso viral. Entretanto, ela ressalta que qualquer intervenção precoce não se mostra efetiva, até o momento, nas complicações tardias.
— Atualmente, vários estudos estão em andamento para obter um tratamento específico antiviral, que teria como objetivo diminuir a replicação viral e suas consequências tardias. Entre os vários estudos concluídos, obtemos o benefício do corticoide na fase 2 de doença (fase inflamatória) e a não contribuição da hidroxicloroquina diante da infecção. Os outros tratamentos propostos para a fase precoce são apenas especulações ainda não fundamentadas em evidências científicas, e sim em situações clínicas em diversos cenários.