Desde que o número de contágios e mortes por coronavírus disparou no Rio Grande do Sul a ponto de deixar sob risco a capacidade de atendimento hospitalar, ganhou força um debate sobre a decretação de lockdown — bloqueio à circulação de pessoas em que só serviços essenciais funcionam. Dados de outros países indicam que a medida é eficaz, mas especialistas apontam que há outras saídas possíveis, como isolamento de doentes e pessoas próximas.
Integrantes da Sociedade Rio-grandense de Infectologia defendem ações mais rigorosas para evitar um colapso hospitalar, enquanto representantes de setores produtivos temem a ruína econômica. O Palácio Piratini mantém a defesa de uma estratégia intermediária de “moderação”.
Segundo a assessoria de comunicação do governo do Estado, segue em vigor a estratégia defendida pelo governador Eduardo Leite em transmissão pela internet realizada segunda-feira (13):
— É possível evitar o lockdown no Rio Grande do Sul. (...) Com a ciência, analisando os indicadores e os dados, a gente consegue preservar vidas, evitar o colapso do nosso sistema de saúde e, de outro lado, evitar um prejuízo ainda maior para a nossa economia.
Uma análise do cenário de quatro países de três diferentes continentes onde o lockdown foi adotado — Argentina, Itália, Espanha e Nova Zelândia — demonstra que ele derrubou os índices de contaminação e mortes. O resultado, porém, pode variar conforme fatores como a adesão da população, situação geográfica e o momento em que as medidas são impostas ou flexibilizadas.
A Nova Zelândia contou com grande apoio dos 4,8 milhões de habitantes e estabeleceu o bloqueio quando havia poucas contaminações e nenhuma morte. Além disso, contou com outros pontos favoráveis, como o fato de ser uma ilha de pequena extensão territorial e ter menos voos internacionais do que outros países, o que reduz o risco de exposição ao vírus.
Dois meses e meio de limitações garantiram um número absoluto de apenas 22 mortes até esta quarta-feira (15) — nenhuma delas nos últimos 48 dias. O Rio Grande do Sul, em comparação, tem pouco mais do que o dobro de população, mas registrava 48 vezes mais óbitos no mesmo período.
Os argentinos vivem situação um pouco diferente. As restrições impostas com maior rigor do que no Brasil desde o começo da pandemia reduziram o ritmo de contágio e resultaram em 42 mortes por milhão até o momento — oito vezes menos do que entre os brasileiros e pouco menos da metade do registrado no Estado —, mas a pandemia segue em evolução.
A Argentina ensaiou as primeiras flexibilizações quando a média móvel (média dos sete dias anteriores comparada com a de 14 dias antes) indicava certa estabilidade no número de mortes, mas crescimento moderado de novos casos. Teve de voltar atrás e restaurar parte das proibições quando 80% dos argentinos já sentiam os efeitos do isolamento na saúde mental, conforme pesquisa da Universidade de Buenos Aires, e com dificuldades econômicas.
É um cenário semelhante ao do Rio Grande do Sul, que sucede momentos com maior ou menor abertura da economia desde março enquanto a pandemia só se agrava.
— No Rio Grande do sul, as restrições foram reduzidas quando o número de reprodução (quantas pessoas um doente contamina em média) da doença ainda estava acima de 1 (que indica expansão). Em Portugal, por exemplo, isso foi feito após quase três semanas com esse número abaixo de 1 — afirma o mestre em Engenharia Biomédica Christian Perone, brasileiro radicado em solo português.
A Itália conseguiu frear o crescimento vertiginoso de mortes com medidas duras de isolamento. O país segue com médias móveis de casos e mortes em queda e levantou a maioria das restrições mais severas.
A Espanha, em comparação, também vive momento melhor do que em março, quando decretou seu lockdown — mas, nas últimas semanas, vem enfrentando novos surtos de coronavírus que já começam a aumentar o número de casos.
Identificação e isolamento de suspeitos é alternativa a risco de lockdown no RS
Profissionais de saúde sustentam que é preciso adotar novas ações com urgência para barrar o avanço da pandemia no Rio Grande do Sul antes do sistema hospitalar ficar sobrecarregado. A boa notícia é que um lockdown não é a única estratégia disponível: outra ação considerada altamente eficaz é isolar pacientes com sintomas e pessoas com quem tiveram contato.
Uma opinião comum entre os especialistas é que, diante de um cenário de agravamento da covid-19, é preciso agir.
— Faz semanas que não estão sendo efetivas. Ou nos antecipamos e fazemos algo, ou deixamos as pessoas naturalmente se retraírem após perceberem que os hospitais superlotaram — sustenta o infectologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alexandre Zavascki.
Uma das formas de evitar o colapso na saúde é aumentar o isolamento social. Isso pode ser feito via lockdown ou adesão da população a limitações intermediárias, como no início da pandemia no Estado. O infectologista Ronaldo Hallal, do comitê Covid-19 da Sociedade Sul-riograndense de Infectologia, diz que é fundamental aumentar a taxa de isolamento social.
— Não simpatizo com lockdown por ser uma medida extrema, mas a doença já causa grande pressão sobre os hospitais. Como não existe medicação preventiva ou tratamento com comprovação científica, a saída é aumentar o isolamento para cerca de 70% — avalia.
Na segunda (13) e na quarta-feira (14), esse índice ficou próximo de 40% no Estado, conforme as medições realizadas diariamente pela empresa InLoco. O dado da quarta-feira não estava disponível até o fechamento da reportagem.
Mas há outras estratégias no receituário dos especialistas. O mestre em Saúde Pública pela Universidade de Harvard (EUA) Marcio Sommer Bittencourt, de São Paulo, entende que o plano gaúcho de distanciamento controlado poderia ser aprimorado por meio de restrições mais incisivas em caso de aumento de mortes e internações, e por um tipo de intervenção ainda pouco usado no Brasil, mas aplicado com sucesso em países como a Coreia do Sul.
— Se você vai aumentar a circulação de pessoas, você vai ter mais casos. Para controlar isso e evitar um lockdown, que tem um custo social altíssimo, você tem quatro pilares: distanciamento, bloqueio físico ou químico (máscara ou álcool gel, por exemplo), isolamento de casos e quarentena de contatos.
O país e o Estado já tentam colocar em prática as duas primeiras medidas, mas Bittencourt afirma que as duas últimas costumam ser desprezadas. O primeiro passo seria agir para identificar os casos suspeitos de covid e mantê-los apartados.
— Não é orientar a ficar em casa, como se faz hoje, em contato com familiares e outras pessoas. É manter isolado mesmo. Em situações ideais, esses casos seriam identificados por testes de PCR (mais precisos), mas qualquer um com sintoma compatível já deveria ser tratado dessa forma — orienta o especialista.
Hallal afirma que estruturas de acolhimento poderiam ser montadas, ao menos em zonas de maior vulnerabilidade social, para receber pessoas com sintomas que não tivessem como fazer isolamento por conta própria até passar o período de contágio. A outra medida seria identificar todas as pessoas que mantiveram contato recente com o paciente e colocá-las em quarentena, conforme o termo médico preciso para cada tipo de situação.
O prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan, anunciou nesta quarta-feira uma medida neste sentido: familiares de pessoas que tiveram confirmação para covid-19 também deverão ser testados.
— Como o PCR é coletado enquanto a pessoa está transmitindo (o vírus), nós conseguimos mitigar a cadeia de transmissão — explicou o secretário adjunto da Saúde da Capital, Natan Katz.
Bittencourt, que integra o Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP), avalia que poderia ser adotada uma dupla estratégia no Rio Grande do Sul:
— Se você fizer isolamento de casos e quarentena de contatos, pode evitar o lockdown. Vocês podem ainda calibrar as restrições do distanciamento controlado para aumentar o rigor, se no momento o plano não está conseguindo controlar a pandemia. Ao “cercar” a doença, você pode evitar o bloqueio total.
O especialista acredita que o atual plano gaúcho tem vários pontos positivos, como a regionalização, a definição de métricas e a previsão de diferentes graus de abertura. Por isso, ajustes poderiam reverter a curva da doença sem medidas mais drásticas.
— A epidemia está fora de controle? Eu diria que não. O lockdown é uma medida extrema para casos extremos. O que vivemos hoje inspira cuidados, por isso temos 10 regiões em bandeira vermelha (risco alto), e temos resistido a muitas pressões de liberação — afirmou a coordenadora do Comitê de Análise de Dados da Covid-19 do Estado, Leany Lemos, em entrevista a GaúchaZH na terça-feira.