Descrito por especialistas, em maio, como modelo no Brasil na luta contra o coronavírus, o Rio Grande do Sul vê a pandemia avançar e desponta como uma das regiões com maior velocidade de contágio no país.
O Estado superou a triste marca de mil vítimas nesta terça-feira (14) e chegou a 1.060 óbitos — mais de quatro vezes o total de mortos da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria. O cenário ocorre uma semana antes da volta do Campeonato Gaúcho e em meio a pressões divergentes para a retomada das atividades, por um lado, e dos pedidos de médicos por lockdown de outra parte.
O governo estadual argumenta que vem ampliando a rede hospitalar e adotando outras ações como aumento na testagem para enfrentar a doença, mas médicos demonstram preocupação com a crescente ameaça de sobrecarga na estrutura de saúde.
Mais pessoas morreram de coronavírus nos últimos 22 dias do que nos três primeiros meses da pandemia, segundo análise de GaúchaZH sobre dados da Secretaria Estadual da Saúde (SES). A primeira morte foi em 19 de março (mas anunciada cinco dias depois), e a de número 500 em 22 de junho, quando o balanço passou a somar 507. Desde então, mais 553 vidas foram perdidas.
Especialistas vêm destacando nas últimas semanas que a epidemia chegou mais tarde por aqui graças à distância do Rio Grande do Sul em relação a grandes aeroportos internacionais e ao distanciamento social imposto quando havia poucos casos.
Mas alertam, também, que as infecções deram um salto preocupante em junho e julho a ponto de lotar unidades de tratamento intensivo (UTI) e colocar mais da metade do Rio Grande do Sul em bandeira vermelha. Até meio-dia desta terça, 75% dos leitos do Estado estavam ocupados — destes, 32% são pacientes com coronavírus. Em Porto Alegre, a ocupação sobe para 83%, sendo que, dessas vagas, 44% são para suspeitos ou confirmados para covid-19.
— Estamos em um cenário muito preocupante, em que a pandemia se encontra em estado crítico no Rio Grande do Sul. Levando-se em conta que até 20% dos pacientes que necessitam de internação podem precisar de uma UTI, e a quantidade de doentes em leitos de enfermaria também vem crescendo, a situação é grave. Já estamos com um baixo nível de leitos disponíveis — afirma o infectologista do Hospital Conceição André Luiz Machado da Silva.
A epidemia já matou pelo menos uma pessoa em mais de um terço dos 497 municípios do Rio Grande do Sul, segundo análise de GaúchaZH. No último mês, 63 novas cidades precisaram sepultar vítimas da pandemia — uma média de dois novos municípios por dia. Ao analisar os casos confirmados, o Estado está prestes a ser tomado pela pandemia: 87% dos municípios gaúchos já confirmaram uma infecção pelo vírus.
Até a segunda-feira, os gaúchos apresentavam a quarta menor mortalidade do país, com 8,7 óbitos por cem mil habitantes, e a menor incidência entre os demais Estados, com 348,6 casos confirmados por cem mil. Mas André Luiz Machado da Silva afirma que esses dados, embora não tão desfavoráveis, devem ser analisados em contexto:
— Outros Estados já passaram pelo pior, enquanto nós ainda estamos com a curva de casos e mortes em ascensão. Além disso, se mesmo assim já começamos a perceber dificuldades no sistema hospitalar, isso é o que importa. Temos de olhar para o próprio umbigo.
Piratini destaca investimentos em saúde
Nesta segunda-feira (13), a Sociedade Rio-grandense de Infectologia alertou para a “grave situação epidemiológica" atual. Integrantes da entidade pedem o lockdown e afirmam que o governo liberou as atividades antes da hora.
Em resposta, o governador Eduardo Leite afirmou em uma transmissão pela internet que o Estado seguia "apostando no caminho da moderação" — o que motiva, segundo Leite, críticas de quem quer que se "feche tudo" e de quem prefere que não se "feche absolutamente nada".
Em entrevista ao RBS Notícias, da RBS TV, no mesmo dia, Leite lamentou a perda de vidas de gaúchos:
— Quero me solidarizar com famílias e amigos que queriam bem. Uma vida pode parecer pouco diante da nossa população de mais de 11 milhões de pessoas. Mas, para quem perdeu alguém querido, é 100%, é uma perda dolorosa.
Coordenadora do Comitê de Dados do Piratini e ex-secretária de Planejamento, Leany Lemos afirma que a milésima morte deve ser lamentada tanto quanto a primeira e que a marca é uma realidade triste e pesada para todos.
Além de citar a expansão de 75% no total de leitos do Rio Grande do Sul em comparação a antes da pandemia, movimento sem o qual o sistema já teria colapsado, ela afirma que o número de mortes no Rio Grande do Sul é o menor dentro do possível e que o Estado tem a quarta menor taxa de óbitos de todo o Brasil, em termos proporcionais ao tamanho de cada população.
Questionada se a taxa de óbitos poderia piorar a ponto de atingir níveis preocupantes como de outros Estados — tal indicador é cumulativo, portanto, Estados com epidemia em estágio mais avançado, como São Paulo e Rio de Janeiro, naturalmente têm números piores do que Rio Grande do Sul ou Santa Catarina —, Leany afirmou que a situação é improvável:
— Outros Estados, como São Paulo, estão à frente em estágio, mas continuam acelerando em número de casos e de óbitos. Diminuiu o ritmo na cidade de São Paulo e na cidade do Rio de Janeiro, mas, no interior, tem aumentado. Há um cluster de Estados que estão acelerando, mas, comparativamente, aceleram em taxa menor. Rio, São Paulo e Distrito Federal tem aumento de óbitos em fase crescente, mesmo estando algumas semanas à frente. É possível o Rio Grande do Sul ultrapassar? Olha, se todo mundo sair normal por aí, talvez, mas a condução de hoje é de manter protocolos — afirma Leany.
—Estamos em curva ascendente, sim, mas o sistema de bandeiras impõe restrições e deve conter a velocidade. E, no Rio Grande do Sul, a epidemia cresce em platô: cresce e estabiliza, cresce e estabiliza. Até agora, ninguém faleceu por falta de leitos. A epidemia não está fora de controle, o lockdown é para casos extremos e não estamos em situação extrema. O sistema de bandeiras foi criado para antever o colapso — acrescenta.
Para Ronaldo Hallal, médico infectologista do comitê Covid-19 da Sociedade Sul-riograndense de Infectologia, que pede o lockdown no Estado, a epidemia está assumindo proporções bem graves e deve ser agravada ainda mais com o inverno e a demanda de internações por outras doenças respiratórias.
— Espera-se que esse período de multiplicação de casos seja cada vez mais curto, e isso vai aumentar a pressão hospitalar. Além disso, há um ponto essencial: a prioridade deve ser a proteção da vida e das pessoas, e não apenas a capacidade instalada para ter rotatividade de leitos e, portanto, rotatividade de mortes. A gente tem se debruçado muito para achatar a curva mas precisaríamos esmagar a curva pra evitar mortes. Se o parâmetro é valorizar a vida, não queremos ter curva, e sim medidas que evitem que as pessoas se exponham e adoeçam. A experiência dos países que nos antecederam mostrou que naqueles que não enfrentaram a epidemia com medidas fortes, as economias estão patinando muito mais do que nos países que enfrentaram de forma incisiva.
No Estado, a maioria das pessoas infectadas é mulher, mas homens morrem mais. Pessoas entre 30 e 39 anos são as mais contaminadas, porém falecem mais gaúchos acima de 80 anos. Importante lembrar: a vida de idosos importa.