Em 12 horas, as vidas de três crianças gaúchas mudaram completamente após o Hospital da Criança Santo Antônio, de Porto Alegre, realizar um transplante de coração e dois transplantes renais. Por serem de alta complexidade, é incomum três cirurgias do tipo ocorrerem em tão pouco intervalo de tempo.
Por volta das 10h do último sábado (23), as equipes deram início às cirurgias e, na madrugada de domingo (24), os pequenos Joaquim Custódio, cinco anos, e Lorenzo da Silva, seis, já estavam nos leitos da Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), onde permanecem se recuperando após as operações que duraram entre três e quatro horas. Rayuri dos Santos, 2 anos, já saiu da UTI e foi encaminhado para a enfermaria.
A dona de casa paraibana Edvânia Coelho, 27, descobriu que Rayuri sofria de doença renal crônica quando ele tinha apenas oito meses. Logo após o diagnóstico, ele passou a realizar um tratamento de diálise peritoneal, procedimento indicado para casos de insuficiência renal aguda.
Durante um ano e sete meses, passou por sessões diárias de 10 horas de diálise, até que mãe e filho pausaram a vida em João Pessoa (PB) e rumaram em direção à Porto Alegre. O Hospital da Criança Santo Antônio é referência nacional – presta assistência a 23 Estados – por atender a todas especialidades pediátricas. Somente no ano passado, realizou 41 transplantes de rins – um recorde da instituição –, sendo quatro de coração e oito de fígado.
Vivendo há dois meses na Capital, Edvânia e Rayuri moraram inicialmente na Casa Madre Ana, local de acolhimento a pacientes da Santa Casa destinado a quem não tem onde ficar por ser de fora do Estado ou da Capital. Agora, residem na ONG Via Vida, que incentiva a doação de órgãos e tecidos – foi lá que receberam a tão esperada notícia de que havia sido encontrado um doador para Rayuri.
— Sábado de manhã (23), recebi a notícia. De noite, foi realizado o transplante e correu tudo bem. Só tenho a agradecer à família que, em um momento de tanta dor, conseguiu pensar no próximo e decidiu doar os órgãos de um ente querido. Foi um ato de muita compaixão, generosidade e altruísmo em uma hora de tamanha dor — emociona-se Edvânia. — A gente sofreu muito. Hoje, sou grata a eles, porque consigo vislumbrar um futuro para o meu filho, consigo imaginar ele brincando com a irmã, indo para a escola e tendo uma qualidade de vida melhor.
Coordenadora da UTI do Hospital da Criança Santo Antônio, Claudia Ricachinevsky explica que, na pediatria, o número de doadores ainda é menor quando comparado à quantidade de meninos e meninas que necessitam de doação. Ela afirma ainda que, no Brasil, há poucos centros aptos a fazer todos os tipos de transplante infantil em um mesmo hospital.
— O que fazemos aqui é, praticamente, uma excepcionalidade. Porém, conseguimos, porque todos os médicos são capacitados para realizar qualquer tipo de procedimento. Tem um esforço muito grande de cada médico, técnico e enfermeiro e de demais profissionais envolvidos e dedicados a prestar um serviço de alta qualidade pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como foram os casos dessas cirurgias — diz a médica.
A família de Joaquim, cinco anos, é natural de Ubirici (SC), mas, há três anos, eles também vivem em Porto Alegre. Isso porque a resistência do coração é de apenas quatro horas e, no caso de um chamado urgente de doação, eles não chegariam a tempo na Capital. Por isso, optaram por mudarem-se de vez para um apartamento próximo à Santa Casa.
Joaquim foi diagnosticado, logo nos primeiros 30 dias de vida, com miocardite dilatada – inflamação no músculo do coração que faz com o órgão não exercer sua função com plenitude. Por isso, passou a usar marcapasso. O quadro ficou estável até os três anos, quando a doença voltou a interromper atividades e brincadeiras corriqueiras, reduziu o peso do garoto e motivou uma série de internações em hospitais de Joinville e Florianópolis. Já sob os cuidados dos profissionais do Hospital da Criança Santo Antônio, a situação voltou a ficar controlada, mas o guri ainda precisaria de um transplante de coração.
— A doutora disse que daria o coração perfeito para ele e, assim, ela fez. Recebemos a notícia de que havíamos conseguido um doador às 5h30min, e foi a melhor ligação que já recebi. Ainda estamos processando tudo o que aconteceu, mas somos extremamente gratos pela bondade da família doadora — disse o funionário público Fernando Custódio, 37 anos, pai de Joaquim, sem conseguir conter as lágrimas enquanto acariciava o filho que dormia.
Esse foi um dos 440 casos anuais de procedimentos cardíacos que a entidade realiza. Os números só ficam abaixo das operações feitas pelo Instituto do Coração. Além disso, o bloco cirúrgico do hospital faz 40 intervenções por dia e é equipado com 40 leitos de UTI pediátrica, diz o diretor-médico do Hospital da Criança Santo Antônio, Fernando Lucchese.
— Nesses transplantes que aconteceram durante o final de semana, tivemos 45 profissionais envolvidos. Temos muito orgulho de todo o trabalho realizado por essas pessoas e estamos nos aperfeiçoando para permanecer nessa trilha de nos tornarmos ainda mais uma referência para o Brasil, um espaço com o qual a comunidade pode contar — diz.
Atuando desde 1991 no Hospital da Criança Santo Antônio, a médica Claudia Ricachinevsky não esconde a felicidade:
— É sempre uma emoção. Isso transforma e vida das famílias, das crianças e nos transforma também. Posso fazer isso cem vezes e, nas cem oportunidades, vou me emocionar.