Quando chegou ao Hospital de Clínicas de Porto Alegre em agosto do ano passado, o pedreiro Flávio Paim Batista, 54 anos, não tinha forças para colocar roupa e dormia apenas em pé, com a cabeça deitada em travesseiros dispostos sobre uma sapateira no quarto da casa de Camaquã, no sul do Estado, onde morava com a esposa, a auxiliar de creche Wera Voigt Batista, 47, e dois dos quatro filhos. O quadro era grave: o coração quase não funcionava após três infartos.
Mas uma mobilização da equipe de cardiologia da instituição, referência em todo o país, transformou-o no primeiro paciente do Rio Grande do Sul a receber o implante de uma bomba de fluxo contínuo no coração. A tecnologia inovadora, já utilizada em mais de 20 mil pacientes no Exterior, devolve ao órgão a capacidade de bombear sangue normalmente e dá os primeiros passos no Brasil – desde outubro de 2014, 12 sortudos o levam no lado esquerdo do peito.
Quando a reportagem de GaúchaZH encontrou Batista e a esposa em uma consulta no setor de cardiologia do Clínicas, na terça-feira (9), cerca de 15 dias após receber alta, o casal revisava protocolos de emergência para o caso de o aparelho high-tech ter algum problema. À parte o curativo no abdômen, o camaquense andava e falava normalmente, o oposto de como vivia antes de submeter-se ao procedimento, em 7 de novembro.
— Eu não tinha força para comer nem para escrever no celular. Tinha muita dor. E dormia em pé mesmo. Cavalo não cai quando dorme, né? Eu também não caía, porque estava que nem um bicho. Hoje é bem diferente. Finalmente voltei a poder comer churrasco e beber água à vontade — resume, de forma humorada e prática, a retomada na qualidade de vida.
Os sintomas de Batista eram todos relacionados à insuficiência cardíaca avançada: sem forças para bombear sangue pelo corpo, o coração não levava nutrientes e oxigênio às células. Um a um, os órgãos pifavam por falta de alimento. Por ter pressão alta nas artérias dos pulmões, ele não era um bom candidato para o transplante cardíaco. O futuro do pedreiro seria atrelado a uma cama hospitalar.
— Um dos meus filhos dizia que, se fosse para ser, a gente tinha que aceitar. Mas eu não aceitava — diz Wera, com quem Batista está casado há 32 anos.
Foi aí que a equipe de cardiologia do Clínicas teve uma ideia: encaminhar Batista para o Sírio-Libanês, um dos hospitais mais importantes do país, em São Paulo. A instituição mantinha o projeto Coração Novo, beneficiado por um edital do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do SUS (Proad), ligado ao Ministério da Saúde (MS) – por meio do convênio, a pasta destina recursos para hospitais de referência investirem em avançados tratamentos médicos focados em pacientes do SUS e, na contrapartida, recebe isenção de impostos. No caso do Sírio-Libanês, o edital ressarce tratamentos duradouros de alta complexidade no coração.
Batista era o candidato perfeito para o programa, por meio do qual, de forma gratuita, poderia implantar um Dispositivo de Assistência do Ventrículo Esquerdo (LVAD), espécie de "bomba" grudada ao coração que regula o fluxo de bombeamento do sangue (confira abaixo o funcionamento do aparelho). Um dos mais recentes do gênero, o modelo Heartmate II precisa ficar conectado o tempo todo às baterias, com autonomia para 12 horas, ou a uma tomada de eletricidade – sem energia, o dispositivo para de funcionar e o órgão perde, em minutos, a capacidade de bombear sangue. Oficialmente, o beneficiado se torna uma espécie de ciborgue: sua vida está atrelada a um dispositivo externo dependente de uma fonte de energia.
— Essa tecnologia tem pouco mais de 10 anos e já está estabelecida nos Estados Unidos, Canadá e Europa. Ele ainda não suplanta o transplante, mas traz qualidade de vida a quem precisa fazê-lo e está no aguardo ou para quem não pode passar pelo transplante — diz a cardiologista Livia Goldraich, do Hospital de Clínicas, que trabalhou em um hospital no Canadá e conviveu com pacientes que implantaram o dispositivo.
Segundo o fabricante, o Heartmate II fornece uma sobrevida de até 17 anos. Como qualquer tratamento, há riscos, cumulativos a longo prazo. Neste caso, o paciente pode ter sangramento, trombose na região onde o aparelho está implantado, infecção no abdômen e acidente vascular cerebral (AVC).
— Essa era a única chance de ele melhorar. Senão, ele ficaria internado para sempre no hospital, alternando da UTI para o quarto — diz a intensivista Grazziela Torres.
Equipe precisou ser treinada para o pós-operatório
Após receber o aval do Sírio-Libanês para realizar o implante, Batista viajou para São Paulo em 1º de novembro e, seis dias depois, entrou na sala de cirurgia. O procedimento foi de extrema complexidade. Durante 10 horas e 30 minutos, ele teve o peito aberto e recebeu a aparelho que ajudaria o coração a bater de forma saudável.
O procedimento não foi realizado pelos médicos do Clínicas (uma vez que Batista era o primeiro paciente do Rio Grande do Sul), mas por um cirurgião norte-americano com o auxílio da equipe do Sírio-Libanês, observados pelos cardiologistas gaúchos. O pós-operatório foi difícil: o pedreiro de Camaquã ficou quase 40 dias internado no hospital paulistano. As lembranças são turvas: ele diz que durante 18 dias, dormia o dia inteiro, sem ter total noção da realidade.
— Eu chorei por três dias porque não reconhecia minha família. Lembro que meu filho insistia incansavelmente para eu voltar — conta.
Por estarem responsáveis pela recuperação aqui no Rio Grande do Sul, cardiologistas e enfermeiros do Clínicas de Porto Alegre passaram por um treinamento de uma semana no Sírio-Libanês. Em seguida, vieram para Porto Alegre, passaram os conhecimentos aos colegas e viajaram até Camaquã para capacitar a equipe do Hospital Nossa Senhora Aparecida, no caso de Batista estar em uma situação de emergência no município onde mora. A instituição da capital gaúcha ainda enviou um engenheiro à casa do pedreiro para conferir como estava a rede elétrica próxima ao local.
Com o know-how do procedimento, a expectativa da equipe do Clínicas de Porto Alegre é de que, no futuro, novas cirurgias do tipo possam ser feitas para dar mais tempo e qualidade de vida a pacientes com insuficiência cardíaca, resume a cardiologista e presidente do Hospital de Clínicas, Nadine Clausell.
— O paciente era de altíssimo risco, foi um desafio. Dominar esse tipo de tratamento nos coloca na vanguarda para um próximo caso, devem vir mais. Mas, como hospital-universitário, está em nosso DNA investir na vanguarda — salienta.
Se a ida para São Paulo foi cautelosa, em uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) móvel aérea, a volta para Porto Alegre, em 8 de dezembro, foi tranquila, em um avião comercial. Após idas e vindas a hospitais, a esperada alta foi como presente do Papai Noel: em 23 de dezembro, Batista retornou a Camaquã e passou a ceia em família.
— Ele voltou para os nossos braços. Eu sofreria muito se ele partisse, também por causa dos filhos. Eles são muito apaixonados pelo pai. Agora estamos em paz, vencemos uma batalha — resume Wera.
O que deve acontecer com Batista? A equipe do Clínicas pretende aguardar os próximos seis meses antes do próximo passo, mas a expectativa é positiva.
— A pressão pulmonar dele pode cair, o que o tornaria apto para um transplante cardíaco. Ou o coração dele pode melhorar a ponto de retirarmos o aparelho e ele viver normalmente — diz a médica intensivista Grazziela Torres.
Para Batista, a ficha ainda não caiu. Retomar a rotina simples é se apossar da vida que, por pouco, não lhe escapou pelos dedos.
— Depois de quatro meses e sete dias, voltei para casa. Na véspera de Natal, estouramos uma champanhe, comemos frios, salgados e doces. Foi uma ceia de pobre, mas com muito gosto. Fiquei muito contente. Não adianta ter frota de carro e um monte de dinheiro. A vida, para mim, é abraçar meus filhos, assar uma carne e ir para a natureza ver um córrego. Ainda brinco com os meus guris: acredita que estou vivo? — questiona o pedreiro.
Sim, Flávio. Acreditamos.