A enchente ainda não terminou para a família de Milton Lemos do Nascimento, 58 anos. Mais de quatro meses após a pior cheia da história do RS, o motorista autônomo vive com a esposa, a enteada e a mãe sob uma ponte situada a poucos metros de distância do Rio Jacuí, no entroncamento da BR-116 e BR-290, na Ilha Grande dos Marinheiros, em Porto Alegre. Com 60 animais para cuidar e alimentar, o entorno foi adaptado para a circunstância e parece uma granja.
— Não fui para abrigo por causa dos bichos. Aqui estou perto para tratar dos animais. Não adianta, tenho de ficar aqui por causa deles — afirma Milton, conhecido como Maneca.
— Não durmo direito por causa dos meus bichos. Tenho medo que fujam ou que alguém roube — acrescenta, dizendo ainda que sempre ouve reclamações dos amigos em relação a estadia nos abrigos temporários.
Sem trabalhar há seis anos por causa de um glaucoma no olho direito, Milton precisou sair de casa em razão da enchente no dia 2 de maio.
Num primeiro momento, ficou acampado durante 60 dias às margens da estrada. Conta que quando a água subiu até encobrir a moradia onde vivia chegou a ficar cinco dias sem comer e dormir.
Desde julho, decidiu viver sob a ponte. A residência dele, que fica a 300 metros da estrutura de concreto onde espera por dias melhores, sofreu série de danos. Ainda não foi possível fazer a reforma nem retornar para a casa de três quartos, sala e banheiro.
"Jamais imaginei que ia vir tanta água"
A esposa de Milton, a dona de casa Gabriela de Freitas, 28 anos, a enteada Natália da Silva, 10, e a mãe dele, Iauria Gonçalves Lemos do Nascimento, 80, também estão morando no local. O filho Pedro Jorge do Nascimento, 26, chegou a passar um período com a família, mas já conseguiu retornar para o próprio lar.
— Agora está mais tranquilo. Quando estávamos nas barracas era difícil. Lá, o temporal arrancava as lonas — relata a esposa.
Questionada se algum dia imaginou ter de passar por uma situação dessas e testemunhar uma enchente, Gabriela tem a resposta na ponta da língua:
Só ouvia falar da enchente de 1941. Mas jamais imaginei que ia vir tanta água.
GABRIELA DE FREITAS
Dona de casa
Graças a doações de voluntários, a família ganha cestas básicas e água, além de ração para os animais. A prefeitura também já forneceu quatro caminhões de água. Veterinários costumam aparecer para ajudar com a saúde da bicharada.
Alguns dos animais nasceram durante o período fora de casa. Neste momento, são 24 cabras, 13 porcos, dois javaporcos, oito cavalos, 10 cachorros e três galinhas.
Os animais têm chiqueiro e recintos cobertos por lonas e madeira. Leitõezinhos correm pelo capinzal e se assustam com a movimentação dos veículos que transitam em alta velocidade a poucos metros de onde começam a chafurdar.
Orgulhoso das raízes, Milton colocou a bandeira do RS no alto de um poste improvisado. A flâmula tremula tendo acima nuvens carregadas de fumaça vinda das queimadas de outras regiões do país.
Rotina da família
O local chegou a ter banheiros químicos. Mas não há mais e agora os moradores da ponte precisam esquentar água e tomar banho de caneca.
Mesmo num cenário desses, a vida segue uma rotina. A enteada de Milton, Natália, por exemplo, cursa o quinto ano na Escola Estadual de Ensino Fundamental Alvarenga Peixoto, que fica a poucos metros da ponte.
Para entrar sob a ponte é preciso se agachar e cuidar para não machucar a cabeça. Lá dentro, a família deixou o ambiente aconchegante. Eles têm televisão, geladeira, micro-ondas, fogão, sofá, mesa e armário. Tudo foi doado por voluntários.
Parte do piso foi forrado e há colchões e cobertores. Está longe de ser uma casa de verdade, mas para quem perdeu tudo, é um teto. Não chove lá dentro e os ratos são colocados para correr pelos cães. Um deles, chamado Prubou, não desgruda do dono. O cachorro também costuma colocar ordem no meio da confusão promovida pelos temperamentais porcos.
Milton pretende consertar a roda de sua castigada caminhonete azul e branca, que pode ser vista por ali. Pensa em fazer fretes para ganhar algum dinheiro, porque não tem renda. A esposa recebe benefício social, mas é pouco. E as necessidades são muitas. Entre os planos sem data para acontecer está a intenção de procurar santuário para abrigar tantos bichos.
"Peço a Deus que se lembre de mim"
Dona Iauria, que tem casa no mesmo terreno do filho, não vê a hora de poder voltar para o lar. Diz que sente saudades de arrumar as roupas no armário. Mas não sabe quando isso será possível, porque o piso apodreceu. E compartilha o que ainda não conseguiu apagar das lembranças.
— Eu tinha comprado uma grande televisão. Cheguei em casa depois da enchente e ela estava deitada no chão e cheia de lama — recorda Iauria.
Com os braços estendidos rente à cintura e com o olhar fixo na direção por onde corre o Rio Jacuí, a idosa diz que machucou o joelho direito após sofrer uma queda nesses dias de muitas incertezas. Arregaça a calça e mostra o hematoma.
— Peço a Deus que se lembre de mim — desabafa em voz baixa e com o rosto triste de quem sabe que é preciso esperar por dias mais alvissareiros.
O que diz a prefeitura
A prefeitura de Porto Alegre, por meio da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, afirma que as ações relacionadas às famílias acampadas em pontes na área da BR-116 e da BR-290, próximo das ilhas, são rotineiras.
O Executivo diz que cerca de oito famílias ainda permanecem nessa situação, sendo que o número já chegou a ser de 40.
O secretário-adjunto Lucas Vasconcellos reconhece que o problema existe e assegura que o monitoramento dessas pessoas é constante. Equipes da Assistência Social e da Defesa Civil Municipal visitam os acampamentos, e são ofertadas opções para as famílias deixarem os locais.
— Nesse diálogo que a gente faz, sempre reforçamos o problema de insegurança. Tanto de ser um alvo fácil para algum assalto quanto de estar na beira da BR, onde os carros trafegam em alta velocidade — explica, mencionando que o espaço é de competência do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e da Polícia Federal.
Entre o que é ofertado está o Benefício Estadia Solidária, em parceria com o governo do Estado. As famílias recebem R$ 1 mil por até 12 meses para custear um aluguel em outro espaço ou, se estiver na casa de parentes e amigos, possa contribuir na renda dessa residência.
Outra opção ofertada pela prefeitura é o Centro Humanitário de Acolhimento (CHA), espaço do governo estadual localizado no bairro Rubem Berta.
Equipes da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e da Secretaria da Saúde também visitam e orientam as famílias acampadas.