Nascida e criada na Ilha dos Marinheiros, em Porto Alegre, a pescadora Denise Centena Pereira, 53 anos, acumula batalhas. Em tratamento para o câncer, com a inundação que atingiu a Capital em maio, precisou abandonar a casa da família na Rua Nossa Senhora Aparecida, e se refugiou com o marido em um barco. O nível das águas continuou a subir e entenderam que era mais seguro deixar a embarcação. Por fim, abrigaram-se num acampamento improvisado às margens da BR-290. Na manhã deste sábado (29), era ali que fazia parte de uma fila de desabrigados, recebendo doações.
— Perdi tudo. Foi água até o teto da minha casa. É muito triste — resume, segurando uma pilha de roupas e cobertas, recém recebidas.
Há cinco meses, Denise precisou remover uma das mamas e, em razão da doença, afastou-se da profissão da qual sente saudades. A cada três semanas, submete-se à quimioterapia no hospital Santa Casa. Depois, retorna para a barraca no acampamento que divide com o marido, um dos quatro filhos, a neta de cinco anos, a mãe de 87 anos, os irmãos, outros familiares e vizinhos. Por ali a rotina foi sendo improvisada, assim como a moradia temporária.
Dentro da tenda, Denise mantém sempre uma térmica de café bem quente. É uma das formas de espantar o frio, que tem sido um desafio a mais nos últimos dias. Um gerador foi instalado pelo marido dela no acampamento, e permite que todos tenham acesso a duas a três horas de energia elétrica por dia – o tempo precisa ser restrito em razão do consumo de gasolina pelo equipamento. É assim que carregam aparelhos celulares, e que as barracas ficam iluminadas.
— Aqui tudo que a gente ganha divide um com o outro — diz Denise.
Viver no asfalto tem outros desafios: as crianças transformaram a área, ao lado da rodovia, em pátio para brincadeiras. Há cones no acesso ao acampamento na Ilha dos Marinheiros, e neste sábado o Exército auxiliava sinalizando a passagem dos veículos, mas os pais não descansam. É preciso estar sempre atento à movimentação. Os cães, que em muitos casos foram levados pelos tutores ou resgatados, também precisam ser cuidados. A maior parte acaba ficando amarrado, pelo risco do movimento de carros.
Quem vive por ali também teme furtos, então vigia o pouco que restou. Aos fundos do acampamento, fogões, geladeiras, micro-ondas e outros itens de casa estão empilhados, formando uma imensa fila. São resgates retirados das águas por alguns moradores. A maior parte ainda não sabe quando voltar pra casa, e nem se conseguirá reaproveitar os eletrodomésticos.
Segundo os moradores, o nível da água vem oscilando, a depender da direção do vento que atinge o Guaíba. Na sexta-feira, voltou a subir, e moradores enfrentaram novamente alagamentos em diversos pontos das Ilhas. Barcos são usados por moradores para transportar mantimentos de um lado ao outro.
— A água ontem subiu dois palmos — conta o reciclador Rogério Santos da Silva, 60 anos.
Moradores da mesma rua que Denise, ele e a esposa Eva Luciana da Silva Costa Martins, 47 anos, também se tornaram vizinhos no acampamento. A barraca do casal fica logo em frente. Dentro dela, os dois vão acomodando as doações que chegam. O reciclador se abriga embaixo das cobertas, para aguentar o frio.
— A gente ganhou bastante mantinhas, roupas — relata Eva.
O casal passou a viver no acampamento após ter a moradia arrastada pelas águas, com todos os móveis dentro. Não restou nada. Tudo que conseguiram reunir até o momento é fruto de doações. Veículos param frequentemente no local carregados de roupas, alimentos e bebidas quentes.
— Agora aqui nós temos bastante mantimentos. Mas para onde eu vou depois? Para ir embora daqui, primeiro precisamos de uma casa. Não tenho condições de comprar, não tenho trabalho. Sou um homem velho — lamenta o morador.
— Vamos ter que reconstruir tudo — diz a mulher.
Angústia na Ilha das Flores
Em frente à barraca que montou para se abrigar junto da esposa e da filha de cinco anos, o açougueiro Paulo Henrique Martins Marques, 53 anos, emociona-se ao falar sobre a situação que enfrentam há quase dois meses. Nascido e criado em Lavras do Sul, na Região da Campanha, mudou-se para a Capital em busca de uma vida melhor. Tornou-se morador da Ilha das Flores há 23 anos, e pela primeira vez não sabe quando voltará para casa.
Paulo deixou a moradia na Rua do Pescador levando somente uma televisão e algumas roupas. Abrigou-se com familiares em Guaíba, por algumas semanas, mas o local também inundou. O açougueiro regressou o mais perto que pode de casa, nas margens da BR-290, onde divide o espaço com outras famílias. De touca e sobretudo de lã, recebidos de doações, enfrentava na manhã deste sábado as rajadas de vento gelado.
— Não temos previsão de voltar para casa. Está comprometida, sem telhado. A água chegou a quase cinco metros. É difícil — desabafa, com os olhos marejados.
Dentro da barraca, a filha também chora — segundo o pai, anda bastante irritada com a situação. A família deixou praticamente tudo para trás. Acostumados com as enchentes anteriores, elevaram os móveis, mas isso não foi suficiente. A água ultrapassou o teto, e danificou tudo. Chegaram a limpar parte da moradia, mas as águas voltaram a subir. A falta de perspectiva sobre o futuro e o frio têm sido desafios para a rotina da família. À noite, um fogão a gás e uma churrasqueira com carvão ajudam a esquentar um pouco.
— A gente vai dando jeito. Todo mundo se ajuda. Mas o que a gente mais precisa é morar numa casa — resume.
“Não estou sozinho”
Quando era criança, Vilmar Justino de Borba, hoje com 64 anos, fugia de casa para banhar-se no Guaíba, na Ilha das Flores. Cresceu, tornou-se caminhoneiro e percorreu o sul do país fazendo entregas de fretes. Seguia alimentando o sonho de um dia ter uma casa na Ilha das Flores. Concretizou o intento há uma década, quando passou a viver na Rua 1. Nesse período, passou por cheias, algo que já sabia que aconteceria, mas nada perto do que enfrenta desde o início de maio.
— A casa ficou um metro embaixo da água. Hoje queria ir lá, mas subiu de novo. Tem muito barro e água. Quebrou tudo. Sobrou só dois botijões. O resto já era — descreve.
Vilmar precisou deixar a casa levando somente algumas peças de roupa. Até os documentos ficaram para trás. Seguiu, como muitos, para o abrigo no Ginásio da Brigada Militar, na zona leste de Porto Alegre. Por lá, permaneceu por 15 dias, até seguir para o acampamento que se formou às margens da BR-290, perto de onde vivia. Ali, dorme todas as noites dentro de uma kombi, de outro morador, onde improvisou um quarto.
— Tem horas que é ruim. É difícil. Eu tinha uma vida normal, bem normal. Pagava minhas contas. Tudo em dia. Tinha roupas que nunca usei, estava guardando para uma ocasião especial. Foi tudo. A única sacola que eu tinha de roupas deixei no abrigo, achando que eu ia voltar pra lá — relata.
Para se esquentar do frio, Vilmar recorre às doações de roupas que recebe. Os alimentos também são distribuídos diariamente no local.
— A gente pensa em todo mundo que está nessa mesma situação no Rio Grande e pensa assim “não estou sozinho nessa” — conforma-se.