Agir quando pais, responsáveis e o Estado se omitem. Esse é o trabalho do Conselho Tutelar, órgão autônomo destinado a proteger e zelar pelos direitos de crianças e adolescentes. Isso inclui casos de negligências e maus tratos, abuso sexual, e demandas onde o poder público falha, como falta de vagas em escolas e dificuldade para ter acesso a serviços essenciais, como saúde pública.
Com uma função tão importante, a atuação dos conselheiros em Porto Alegre esbarra em problemas de estruturais, como prédios em más condições ou sem o aparato necessário para acolher famílias sob dificuldades. Itens básicos de tecnologia para o desenvolvimento do trabalho, como internet, sistemas, equipamentos e dispositivos também estão em falta para algumas sedes.
Zero Hora acompanhou o trabalho dos conselheiros em dois prédios do Conselho Tutelar de Porto Alegre, além de uma vistoria do Ministério Público, que fiscaliza as questões de estrutura. Os conselhos tutelares de Alvorada e Guaíba, que tiveram casos de repercussão envolvendo crianças há meses e semanas atrás, respectivamente, foram contatados para participar desta reportagem. O conselho de Guaíba se recusou, e em Alvorada, os responsáveis pararam de responder após diversas tentativas.
Os problemas não são de hoje. Há quase dez anos, Zero Hora mostrou um levantamento do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RS), que apontou em 2015 que 42% dos conselhos tutelares do Rio Grande do Sul não tinham sala reservada para o atendimento e 46% dos equipamentos de informática foram classificados como ruins ou regulares.
Como funciona
Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (lei federal nº 8.069, de 13 de julho de 1990), cada município deve ter, no mínimo, um Conselho Tutelar, composto por cinco membros, que são escolhidos pela população local. Esses conselheiros têm mandato de quatro anos, podendo ser reconduzidos por novos processos de escolha.
A eleição acontece em data unificada em todo o país, a cada quatro anos, no primeiro domingo do mês de outubro do ano seguinte ao da eleição presidencial. Já a posse é sempre no dia 10 de janeiro do ano seguinte ao processo de escolha.
Em 2023, a eleição em Porto Alegre foi feita pela primeira vez em urnas eletrônicas. Foram 43.908 eleitores, sendo que cada um pode votar em cinco conselheiros de um total de 255 candidatos. Cada microrregião da Capital elegeu cinco titulares e 10 suplentes. Para concorrer, eles realizam uma prova de conhecimentos específicos sobre o ECA, elaborada por uma banca. Todo o processo é organizado pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Acompanhando pelo menos 82,6 mil famílias, conforme dados de agosto, o Conselho Tutelar de Porto Alegre está dividido em 10 microrregiões. Se considerada uma resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), a proporção mínima seria de um conselho para cada cem mil habitantes, garantindo o acesso à população. Nesse caso, Porto Alegre, que teve população somada em 1,33 milhão no Censo de 2022, deveria ter 13 conselhos, ou seja, três a mais do que a quantidade atual.
A Capital planeja alterar a legislação para adotar essa recomendação, mas a prefeitura não especifica o prazo em razão do período eleitoral. O Ministério Público entrou com uma ação solicitando a inclusão, mas teve o pedido indeferido pela Justiça.
— Boa parte das situações que a gente recebe, quando é uma questão de ação de responsáveis, por exemplo, está relacionada a negligências na parte de saúde e maus tratos, na forma com que algumas famílias ainda entendem como educação. A gente tem recebido muitas famílias que trazem questões de saúde mental, o autismo, por exemplo. As escolas não estão preparadas para receber esses alunos e acabam com alguns conflitos trazidos para o conselho tutelar — exemplifica a coordenadora geral do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Maria Alice Goulart Silva da Silva, sobre os casos mais frequentes acompanhados.
Município é o responsável por manter estrutura do Conselho Tutelar
Atendendo 20 bairros, o prédio da Microrregião 8 sofre com a umidade característica da região do Centro Histórico, que faz com que o andar destinado ao plantão de todo o Conselho Tutelar de Porto Alegre ficasse insalubre. A sala que serviria como dormitório para os plantonistas – e que é utilizada por alguns funcionários mesmo sob condições alarmantes – está com o teto tomado pelo mofo e tem poeira acumulada em estantes que ficam pelo corredor.
No dia em que a reportagem esteve no local – o mesmo em que o Ministério Público fez uma vistoria horas depois – uma das funcionárias da sede teve que arrumar a iluminação do espaço, que estava às escuras e tinha dois colchões empilhados. Com pouca circulação de ar, o subsolo também abriga os arquivos físicos da instituição, ficando agrupados em diversas caixas catalogadas por ano.
— É um prédio muito vertical e tem poucas janelas, então a gente tem esse problema com o mofo e com a circulação do ar — descreve a conselheira Vitória Sant’Anna.
Em razão do cenário, o atendimento do plantão teve que ser deslocado para uma sala no pavimento superior, que apresenta outro problema de segurança. Com janelas enormes e sem qualquer rede de proteção, conselheiros ficam preocupados com a presença de crianças e de pessoas com questões de saúde que possam se colocar em risco.
— Às vezes a gente atende adolescentes com situação de saúde mental e familiares também. A gente já teve que chamar o Samu para um serviço de emergência. Estamos fazendo o atendimento e temos que pensar em tudo. Essas janelas nos preocupam bastante — alerta Vitória, enquanto mostra a sede, com mais de uma sala com as janelas nessa condição.
As escadas também são motivo de apreensão na sede do centro. Por serem vazadas, a equipe precisa reforçar os cuidados para evitar acidentes com as crianças. Além disso, a ausência de um elevador dificulta o acesso até as salas de atendimento que ficam nos andares superiores.
Contrastando com a pintura cinza nas paredes, a brinquedoteca da sede é um espaço colorido preparado para acolhimento das crianças, que ficam se entretendo com os brinquedos enquanto aguardam a chegada dos responsáveis ou durante as conversas com os familiares. Na parede de frente para a porta, letras coloridas formam a frase “Não há dias cinzentos para quem sonha colorido”. A sala ainda conta com um gaveteiro dividido em roupas de bebês e para meninos e meninas.
A gente organizou esse espaço com doações. Tem roupa, brinquedo, livro para conseguir trazer essa ação de acolhimento. A gente está aqui para acolher. As pessoas têm uma ideia de um conselho punitivo, mas na verdade não, é para atender a comunidade
VITÓRIA SANT’ANNA
Conselheira tutelar da microrregião 8
Mas os problemas estruturais nos prédios não são exclusivos da microrregião 8. As condições, no geral, são alvo de reclamações constantes entre os conselheiros de outras áreas:
— A sede da microrregião 8 não tem acessibilidade, é insalubre com relação ao mofo. Na sede da microrregião 6, um colega no primeiro mês de trabalho quebrou a mão abrindo uma janela, porque caiu. A microrregião 5 chove dentro, já se perderam materiais por esse tipo de estrutura — constata a coordenadora geral do Conselho Tutelar de Porto Alegre, Maria Alice Goulart Silva da Silva.
Para a coordenadora geral, a enchente de maio agravou o cenário para a microrregião 2, que há quase cinco meses está dividindo o espaço com a microrregião 10, já que a sede ficou alagada, no bairro Sarandi.
— Nesse momento, a precariedade está na microrregião 10, e não pela região em si, mas porque eles estão dividindo com a microrregião 2, o que está causando, além das questões para os trabalhadores, de não ter nem mesmo equipamento adequado para responder um ofício, também causa dificuldade para os próprios usuários. Tem situações de conflitos territoriais, tem questões de tráfico (de drogas), e os colegas têm dificuldade de atuar porque as famílias não conseguem acessar, e acabam sendo ameaçados por essas questões — explicita Maria Alice.
Com o prédio ainda comprometido no bairro Sarandi, logo na entrada, é perceptível grande quantidade de pessoas sentadas em um corredor estreito esperando atendimento. Mas o aperto afeta também os cinco conselheiros e funcionários atingidos que precisam trabalhar agrupados em uma única sala no segundo andar do imóvel, que fica no bairro Passo das Pedras.
A conselheira tutelar da microrregião 10, Salete Basso comenta que esta unidade do Conselho Tutelar é a que atende mais famílias, com cerca de 15 mil expedientes ativos.
— O pessoal (da microrregião 2) não quer vir porque é um território diferente e está fora do (território) deles, tem mais dificuldade de vir para cá. Nós tínhamos três salas de atendimento, então só ficaram duas. Então fica muito difícil. A demanda da 10 era para três salas de atendimento — relata.
Em março deste ano, o prédio da microrregião 4, no bairro Partenon, também teve problemas e foi interditado pelo Defesa Civil após denúncia anônima. Posteriormente, o MP cobrou providências do município.
O que diz a prefeitura
Cabe ao município dar as condições adequadas para que o Conselho Tutelar desempenhe sua função. Em Porto Alegre, este papel fica a cargo da Secretaria Municipal do Desenvolvimento Social.
Sobre a microrregião 8, o coordenador da Unidade de Apoio aos Conselhos Tutelares, Paulo Meira, diz que já tem conhecimento das questões e ressalta que a prefeitura está em busca de um novo imóvel para transferência da sede.
— Não foi possível fazer esse conserto por conta da umidade em que as paredes estão ainda. Já estamos em tratativas para deslocar a sede dali. — comenta.
Sobre os arquivos perdidos na enchente pela microrregião 2, Meira, afirma que a prefeitura iniciou neste ano um processo para digitalizar os expedientes e retirar arquivos que não estavam sendo utilizados, encaminhando para um arquivo histórico e liberando espaços nas regiões.
Ainda sobre a situação provisória da microrregião 2, Meira afirma que houve tentativa de buscar um imóvel temporário do município, mas como não foi possível, o planejamento é reformar a sede.
— A gente está tramitando com a documentação para locação do espaço. Depois, precisamos fazer adaptações até que possa se mudar. A gente calcula que esse processo burocrático dure uns três meses mais ou menos — analisou Paulo.
Em relação à microrregião 4, Meira reconhece que houve interdição da sede por questões elétricas e estruturais, mas que a situação foi resolvida.
Nós conseguimos a desinterdição parcial do prédio a partir de algumas situações que promovemos, dentre elas a garantia com laudos da Defesa Civil quanto do corpo de engenharia da secretaria atestando que não há risco algum
PAULO MEIRA
Coordenador da Unidade de Apoio aos Conselhos Tutelares