A Ocupação Farroupilha, habitada principalmente por imigrantes venezuelanos, virou pura distopia. Desde o início havia pobreza, casebres sem banheiro e ausência de infraestrutura urbana no local, vizinho da Vila Asa Branca, na região do bairro Sarandi, em Porto Alegre. Mas, ainda assim, crianças corriam e brincavam pelas vielas com o pouco que tinham. Cães perambulavam e latiam. Homens e mulheres saíam e voltavam do trabalho. Os filhos frequentavam a escola. Algumas casas ecoavam música animada na Ocupação Farroupilha, instalada à margem de um canal em que desaguam as águas e esgotos pluvial e cloacal da bacia do Sarandi.
Agora, depois do recuo da enchente, restaram lama, zonas pantanosas, odor pútrido, lixo, entulho e moradias de madeira parcialmente tombadas. Faz silêncio na Ocupação Farroupilha. O que se houve, por vezes, é o zumbido das moscas. Cerca de 80 famílias viviam ali, das quais 70 eram de venezuelanos. E quase ninguém voltou, mesmo com o recuo da água. Na quinta-feira (13) à tarde, apenas quatro residências recebiam temporariamente seus moradores, em busca de algum pertence que pudesse ser salvo.
A menina Luiscarlis Maria Mendez, 12 anos, foi ao antigo lar com a avó. Ela entrou no que restou da moradia da família. Havia barro em todo o lugar alcançado pela visão. Tudo estava revirado. No fundo da casa, Luiscarlis tentava abrir a porta do quarto que era dela e da avó. Ela empurrava, mas estava travado. De repente, o silêncio da Ocupação Farroupilha foi quebrado por gritos desesperados da menina. Ela correu em disparada, escorregou no lodo, caiu e se lanhou. Levantou e finalmente ganhou a rua. Chorando e trêmula, contou a avó que uma cobra perdida dentro das ruínas da casa avançou sobre ela, chegando a roçar sua perna. Na verdade, tratava-se de um muçum.
A avó de Luiscarlis, Omaira López, quer voltar à Venezuela. Lá, diz ela, pelo menos tem família. Falta o dinheiro para a jornada. Numa casa próxima, o venezuelano Hector Luiz Jimenez voltou pela terceira vez à residência na Ocupação Farroupilha desde o recuo da água. Conta ter conseguido recuperar pratos de vidro. Empregado da construção civil, morava no lugar com a esposa e três filhos. Todos estão atualmente no abrigo do Centro Vida, na Zona Norte.
— Vamos ver se consigo aluguel social ou uma casa. Aqui não dá mais. O valão (canal) não vai sair daqui. O que vai acontecer na próxima (chuva)? Para a Venezuela, não volto. Prefiro ficar em Porto Alegre. Toda a família da minha esposa está aqui — reflete Jimenez.
Quase em frente ao lar dele, a casa de Iglis Rojas ficou só com a ponta do telhado descoberta no auge da enchente, que subiu mais de três metros. Ela estava trabalhando como costureira e perdeu a máquina, tecidos, móveis e eletrodomésticos. Tudo que havia conquistado no Brasil virou lama. No varal do lado de fora da casa, permaneciam suspensas roupas da família. Bermudas, meias e camisas enrijecidas e escurecidas pelo lodo. Retrato de quem teve de zarpar às pressas. Foi a terceira enchente a alcançar a casa da traumatizada Iglis desde 2023, mas nenhuma havia sido devastadora como a de maio.
— Estou desorientada e não sei como recomeçar — diz a venezuelana, que está morando em uma casa temporariamente alugada por amigos brasileiros no Santa Rosa de Lima.
Também venezuelana, Dina Martinez era a única habitante da Ocupação Progresso que, na tarde de quinta-feira (13), fazia limpeza na casa com a intenção de voltar. Empregada como agente de educação inclusiva, ela colocou todos os bens perdidos para fora e avançou no asseio das peças. A residência dela, embora defronte ao canal, fica em terreno mais elevado e sua estrutura, reforçada em comparação às demais, resistiu. Ela diz que aceitaria se mudar para uma solução definitiva de habitação social. Para moradias temporárias, com banheiros e cozinha compartilhadas, ela afirma que não pretende ir. Resultado dos momentos de tensão, ameaça e desrespeito que passou e presenciou nos abrigos.
Há um clamor dos imigrantes por atenção. Moradia é a maior angústia. Nem todos os entrevistados pela reportagem conseguiram receber os benefícios pecuniários do governo federal. E, ao lado da Ocupação Farroupilha, na Asa Branca, há montanhas de entulho no meio da rua, entre o aglomerado de residências em que vivem milhares de brasileiros e dezenas de imigrantes. Na Asa Branca, moradores usam aparelhos de lava jato para restaurar os imóveis. Alguns carregam cestas básicas e outros vagam atônitos. Na quinta-feira, a reportagem identificou duas retroescavadeiras e um caminhão trabalhando no recolhimento da imensidão de entulhos da região.
— Não é momento de branco ou preto. Todos somos humanos. Todo mundo aqui (Ocupação Farroupilha e Asa Branca) foi atingido — diz Dina, suplicando por um olhar para o fundão do grande Sarandi.
Prefeitura pede que imigrantes se cadastrem no registro unificado
O chefe da Unidade dos Povos Indígenas, Imigrantes, Refugiados e Direitos Difusos (UPIIRDD) da prefeitura de Porto Alegre, Guilherme Fuhr, afirma que não há, até o momento, uma estatística precisa sobre o número de estrangeiros atingidos pela enchente. A estimativa da administração municipal é de que, no total, 35 mil imigrantes vivem na Capital gaúcha atualmente. Parte significativa deles reside em bairros castigados pela enchente, como o Sarandi.
Fuhr diz que a prefeitura tenta avançar no mapeamento dos afetados e no alcance dos benefícios da União, do Estado e do município, mas, para ter efetividade, é necessário que os imigrantes se cadastrem no registro unificado, apontando a sua nacionalidade, seja na modalidade online ou presencial (veja abaixo endereços).
— Com o registro unificado, vamos ter esse dado (imigrantes atingidos). É muito importante que os imigrantes atentem para o preenchimento do campo da nacionalidade para sabermos quantos e quais foram afetados — diz Fuhr.
A partir do cadastro, a prefeitura afirma que pode direcionar políticas públicas e encaminhar as informações para o pagamento dos benefícios.
— Não há nenhuma dúvida, os imigrantes têm direito a todos os serviços de assistência social e de moradia, sejam eles continuados ou eventuais, como qualquer cidadão brasileiro — diz Fuhr.
Em momento de crise, dificuldade de deslocamentos e de conexões, um dos principais desafios é fazer chegar ao destinatário as informações sobre direitos e plataformas a serem utilizadas. O desconhecimento sobre as instituições e leis brasileiras é outro empecilho. Organizações locais de acolhida aos imigrantes estão apostando na tradução de materiais de propaganda para os idiomas espanhol, inglês, francês e creole (haitiano), mas há dúvida sobre o quanto as populações estão conseguindo acessar a internet e manter aparelhos de telefone celular durante a crise.
— Estamos fazendo um trabalho de informação sobre onde encontrar os serviços. Temos visto mobilização da rede migratória, mas não posso garantir o quão suficiente está sendo para chegar na ponta — diz Leonardo Marmontel Braga, gerente do Centro Ítalo-Brasileiro de Assistência e Instrução às Migrações (Cibai-Migrações), instituição ligada à Igreja Nossa Senhora do Rosário de Pompéia, no bairro Floresta, em Porto Alegre.
Onde o imigrante atingido pela enchente pode se cadastrar no registro unificado da prefeitura de Porto Alegre
Pela internet, no endereço prefeituradeportoalegre.branet.com.br
De forma presencial, das 8h30min às 17h, nos endereços:
- Avenida João Pessoa, 1.110.
- Estrada João de Oliveira Remião, 5.250.
- Rua Arno Horn, 221.
- Rua Marta Costa Franzen, 101.
- Avenida Assis Brasil (Terminal Triângulo), 4.320.
- Avenida Gamal Abdel Nasser, 562.
- Avenida Princesa Isabel, 1.115 (das 9h às 17h)
Imigrantes no RS
- Em Porto Alegre, a prefeitura estima a presença de 35 mil imigrantes atualmente. Eles moram, principalmente, no eixo da Avenida Baltazar de Oliveira Garcia, Santa Rosa de Lima, Asa Branca e Ocupação Farroupilha, além do Sarandi. Também há considerável população imigrante na Lomba do Pinheiro.
- No âmbito do Rio Grande do Sul, dados da Secretaria Estadual de Planejamento, Governança e Gestão, com base no Sismigra (sistema federal de registro migratório), apontam as seguintes populações imigrantes vivendo no Estado: 38,2 mil uruguaios, 37 mil venezuelanos, 16,4 mil haitianos, 8,4 mil argentinos, 3,4 mil senegaleses e 3,2 mil colombianos.