Inacabado desde a década de 1950, o Edifício Galeria XV de Novembro, conhecido como Esqueletão, no Centro Histórico de Porto Alegre, enfrentou interdições administrativas e judiciais ao longo dos anos. Após décadas de abandono, falta de manutenção e um imbróglio envolvendo proprietários e poder público, foi condenado por laudo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — que atestou o comprometimento das estruturas e apontou que, se nada for feito, o prédio de 19 andares vai desabar.
Atualmente, a edificação localizada na Rua Marechal Floriano Peixoto, quase na esquina com a Avenida Otávio Rocha, aguarda pela demolição, que está embargada desde 27 de fevereiro, após técnicos da superintendência regional do Ministério do Trabalho e Emprego no RS identificarem condições inseguras para os trabalhadores. No dia 12 de março, a prefeitura entregou pedido para retirada do embargo, garantindo que acataria todas as correções apontadas. Não há prazo estipulado para o recomeço dos trabalhos.
Enquanto o futuro do prédio histórico da Capital segue indefinido, outras cidades gaúchas encontraram soluções para grandes edifícios inacabados. São os casos de Santa Maria, na Região Central, Caxias do Sul, na Serra, e Pelotas, no sul do Estado, que conseguiram driblar entraves de diferentes ordens — de burocráticos a financeiros — e dar destino a estruturas que, por anos, ficaram negligenciadas nesses centros urbanos, antes que chegassem a um grau de deterioração que as conduzisse inevitavelmente à derrubada, como no caso da Capital. Veja a seguir quais foram essas saídas.
O que é jornalismo de soluções, presente nessa reportagem?
É uma prática jornalística que abre espaço para o debate de saídas para problemas relevantes, com diferentes visões e aprofundamento dos temas. A ideia é, mais do que apresentar o assunto, focar na resolução das questões, visando ao desenvolvimento da sociedade.
Santa Maria: prédio leiloado e construção retomada décadas depois
Localizado na Avenida Rio Branco, em Santa Maria, na região central do RS, o prédio rebatizado de Maria com Amor (ex-Galeria Rio Branco) ficou conhecido no passado como o esqueletão de Santa Maria. A edificação começou a ser erguida na década de 1960, mas, 10 anos mais tarde, foi interrompida em função de ter sido alvo de processo de arrecadação pelo município.
Em 2017, foi declarada vaga pela prefeitura, que alegou abandono, o que determinou a arrecadação, a incorporação e a transferência ao patrimônio municipal. O leilão foi realizado em maio de 2023 e teve um único interessado: a Construtora Jobim, de Santa Maria. O valor investido foi superior a R$ 2,9 milhões.
Atualmente, estão sendo construídas duas torres de 17 andares com imóveis comerciais e residenciais em um terreno de 829 metros quadrados. O prédio encontra-se cerca de 40% comercializado.
Financeiramente, o negócio foi maravilhoso. Mas mais do que isso foi a repercussão da sociedade em relação à construtora assumir esse prédio e tirar essa mancha do centro de Santa Maria.
GUSTAVO JOBIM
Diretor da Construtora Jobim
O diretor da construtora, Gustavo Jobim, afirma que, quando visitou o local antes da compra, foi feito um laudo de engenharia que comprovou a qualidade da estrutura de concreto. Ou seja, o empreendedor sabia previamente que quase nada precisaria ser demolido.
Também diz que os espaços eram muito grandes. Então, uma das estratégias foi transformar os ambientes em estúdios com cerca de 20 metros quadrados. Cada unidade custa em torno de R$ 100 mil a R$ 120 mil.
Além disso, foi criada uma campanha com o slogan Faça parte dessa história, estimulando as pessoas a adquirir apartamentos e investir nesse símbolo de transformação da cidade.
— Tem uma questão de pertencimento aí. Os clientes compraram para fazer parte disso — avalia Jobim.
A construtora pretende investir no máximo R$ 20 milhões para a conclusão das intervenções. E trabalha com estimativa de retorno de R$ 40 milhões. O prazo para a entrega é maio de 2026.
— Financeiramente, o negócio foi maravilhoso. Mas mais do que isso foi a repercussão da sociedade em relação à construtora assumir esse prédio e tirar essa mancha do centro de Santa Maria — conclui.
Caxias do Sul: edificação doada ao município e implosão evitada
Um prédio que já foi utilizado por traficantes de drogas e prostitutas e que chegou a ser palco de um assassinato virou um centro de atendimento a idosos em Caxias do Sul, na Serra. O antigo edifício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), localizado no final da Rua Pinheiro Machado, na região central da cidade, estava abandonado desde 2011. Agora se chama Recanto da Compaixão Frei Salvador e acolhe pessoas da terceira idade em situação de vulnerabilidade social.
No passado, também operou no espaço o Centro Especializado em Saúde (CES) de Caxias do Sul, que trocou de endereço entre o final de 2010 e início de 2011. O governo federal doou a estrutura para o município em 2017. Em 2020, a Associação Mão Amiga recebeu a autorização para desenvolver seu projeto no local.
O frei Jaime Bettega, presidente da Associação Mão Amiga, recorda que, quando as chaves foram entregues, só era possível entrar em suas dependências com a presença da guarda municipal.
— Em Caxias do Sul, o único residencial para idosos em situação de vulnerabilidade já tem 63 anos. Nós não tínhamos uma segunda casa e então pensamos em fazer algo para atender essa demanda de pessoas pobres sem condições e que não estão sendo cuidadas — detalha o frei.
Buscamos uma equipe de engenheiros calculistas de muita experiência e entramos com esse grupo. E, de fato, não foi preciso implodir porque o prédio era bom.
FREI JAIME BETTEGA
Presidente da Associação Mão Amiga
A estrutura é composta por dois blocos (um de dois andares e outro de três pisos). Nesse tempo, também foi ampliada uma área de construção em 400 metros quadrados. Em 10 de abril, 25 idosos já estavam abrigados no imóvel. A estimativa era de o número chegar a 74 até o final do mês.
A exemplo de Porto Alegre, o esqueletão de Caxias do Sul esteve perto de ser implodido. Mas a associação se mobilizou para reverter esse cenário.
— Nós buscamos uma equipe de engenheiros calculistas de muita experiência e entramos com esse grupo. E, de fato, não foi preciso implodir porque o prédio era bom — comemora o religioso.
A estrutura física ainda não está 100% pronta. O prédio contará com 34 suítes para três a quatro moradores cada, além de áreas de lazer e de atendimentos em saúde. Serão ambientes como postos de enfermagem e consultórios para atendimento nas áreas de geriatria, odontologia, fonoaudiologia, psicologia e nutrição.
Os idosos abrigados ainda contarão com espaços como refeitório, sala de terapia ocupacional, áreas de depósito e rouparias, entre outros.
A execução do projeto custará aproximadamente R$ 12 milhões, sendo que R$ 4 milhões vieram de um programa social do governo do Estado. O resto do valor está sendo captado por meio de apoios da comunidade e doações de padrinhos e da sociedade em geral.
— Conseguimos salvar uma obra que é uma preciosidade — reflete o frei Jaime Bettega.
Pelotas: negócio fechado entre incorporadora e condôminos
Em frente à Praça Coronel Pedro Osório, no coração de Pelotas, no sul do Estado, a antiga torre Central Park ainda aguarda por um destino definitivo. Em 1996, o edifício residencial foi projetado pela empresa Cinco Construções, que acabou entrando em insolvência financeira — quando pessoa física ou jurídica não consegue honrar suas dívidas no vencimento. Em 2001, as obras foram paralisadas.
Com o prédio incompleto, outras empresas cogitaram comprar a empresa. Na época, o atual governador do RS, Eduardo Leite, era o prefeito de Pelotas e tentou, sem sucesso, fazer com que parte do local se transformasse em um centro administrativo.
Quase duas décadas mais tarde, a PR1 Construtora e Incorporadora, de Caxias do Sul, adquiriu a maioria dos apartamentos diretamente dos condôminos (72 de 84 unidades haviam sido vendidas pela empresa iniciadora do projeto). Entretanto, questões burocráticas impedem a concretização das obras.
— O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) que deveria proteger o patrimônio histórico, incentivar que fosse concluído este prédio, que deveria ser o primeiro a dar apoio a isso, é o único órgão que atrasa a cidade e não permite que a obra seja concluída, mesmo com decisão do próprio Iphan transitada e julgada em Brasília — desabafa o proprietário da PR1 Construtora e Incorporadora, Marciano Perondi, dizendo que o caso depende de decisão do Iphan de Porto Alegre.
O projeto da PR1 prevê que a estrutura terá 23 andares, 71 metros de altura e 84 apartamentos. Neste momento, a obra está avaliada em R$ 38 milhões e tem 60% de conclusão. O imóvel que faz a fachada do local deverá abrigar uma escola para ensinar alunos dos ensinos Fundamental e Médio.
Esta é a obra mais importante inacabada do Estado, talvez do país, pela representatividade e pelo local que ela está incrustada. Se eu conseguir terminar ela, o povo de Pelotas agradece.
MARCIANO PERONDI
Proprietário da PR1 Construtora e Incorporadora
Segundo Perondi, foi definido que a construtora teria de fazer uma contraprestação para a conclusão da obra, já que o imóvel se encontra situado em um centro histórico. A população de Pelotas apresentou sugestões em audiência pública. A empresa também solicitou autorização para construir mais pavimentos.
Ficou determinado que a PR1 teria de cuidar da manutenção da praça em frente ao prédio e das vias laterais. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) teria sido encaminhado para o Iphan da Capital, mas a autorização nunca teria sido assinada pelo órgão.
— O Iphan é responsável pela catástrofe que tem hoje em Pelotas. Tem um monte de prédio histórico que não pode ser concluído pela burocracia do Iphan, que não dá um real para fazer isso, mas não deixa que a gente faça — critica Marciano Perondi.
O empreendedor ressalta que está com tudo aprovado e regularizado dentro da legislação. Ele não esconde o sentimento de revolta com a demora para ter a autorização definitiva para concluir o projeto:
— Esta é a obra mais importante inacabada do Estado, talvez do país, pela representatividade e pelo local que ela está incrustada. Se eu conseguir terminar ela, o povo de Pelotas agradece. Não tem uma pessoa de Pelotas que não quer ver essa obra concluída, exceto o superintendente do Iphan em Porto Alegre (titular da superintendência do órgão no RS, Rafael Passos), que nem pelotense é.
O que diz o Iphan
A reportagem de GZH entrou em contato com o titular da Superintendência do Iphan no RS, Rafael Passos, para ter o contraponto do órgão. O arquiteto disse que esteve em Pelotas há algumas semanas, quando conversou com Perondi sobre o tema.
O superintendente menciona que houve o tombamento do conjunto histórico em Pelotas em 2018, quando novas regras foram criadas pelo Iphan. Ele explica que, se o empreendedor tivesse solicitado uma simples regularização do que já estava construído, não haveria maiores exigências por parte do órgão.
A decisão de Brasília delega ao Iphan do RS tomar as decisões sobre o objeto do TAC, acatar ou não a audiência pública que é consultiva. Acataremos se a decisão for suficiente ao que demanda as compensatórias e a lei municipal sobre os passeios.
RAFAEL PASSOS
Superintendente da Superintendência do Iphan no RS
— Como ele (Perondi) pediu a construção de três pavimentos a mais, não se trata mais de uma regularização, mas sim de um pedido de algo que ainda não está construído — esclarece Passos, dizendo que o Iphan de Brasília solicitou medidas mitigadoras e compensatórias para autorizar a construção desses outros pavimentos.
A Superintendência do Iphan no RS está calculando o que define como danos causados por esse acréscimo dos três andares. O órgão também verifica se a via ao lado do imóvel será de responsabilidade da prefeitura ou do empreendedor.
— De modo algum, o Iphan do RS está se opondo a decisão de Brasília. A decisão de Brasília delega ao Iphan do RS tomar as decisões sobre o objeto do TAC, acatar ou não a audiência pública que é consultiva. Acataremos se a decisão for suficiente ao que demanda as compensatórias e a lei municipal sobre os passeios — assegura.
Apesar do vaivém burocrático, em janeiro de 2024, o Iphan aprovou o projeto. Ou seja, a construtora poderá ampliar o número de andares. O Iphan acredita que a situação envolvendo o TAC deverá estar resolvida até maio.