O projeto de construção de um prédio de 98 metros de altura, no Centro Histórico de Porto Alegre, desperta polêmica envolvendo regras do Plano Diretor da cidade e de proteção do patrimônio histórico do Estado. Os responsáveis ressaltam os benefícios econômicos e sociais a serem gerados com o investimento, e os críticos sustentam preocupações com a paisagem, falta de luz solar e mobilidade urbana.
O empreendimento é da Melnick, em parceria com o Grupo Zaffari, e conecta, por meio de uma torre, a parte alta da região (Rua Duque de Caxias) com a parte baixa (Rua Fernando Machado). São 41 andares a partir da Fernando Machado, o que significa 32 andares a partir da Duque. O projeto tramita na prefeitura desde 25 de março de 2022 e está na fase de Análise do Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) de primeiro grau. A Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus) explica que o projeto está em análise e foram pedidos estudos aos empreendedores.
Há duas questões envolvendo a proposta que geram controvérsia. A primeira é o Plano Diretor, que permite para a região edificações de 33 metros de altura. Com 98 metros, o prédio estaria barrado pela limitação. Há, porém, outra legislação, o Programa de Reabilitação do Centro Histórico, que permite flexibilizações no regramento (leia mais abaixo) para a região. O programa, previsto na Lei Complementar Nº 930/2021 e também chamado de Plano Diretor do Centro, está sendo levado em conta na avaliação da prefeitura.
O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS) se posicionou, em nota, contra o projeto. O texto recebeu o apoio de mais de 30 entidades. Copresidente do instituto, Clarice Misoczky Oliveira diz que o Plano Diretor "não aprova cem metros de altura" naquela região. O IAB-RS criou simulação em 3D mostrando como o prédio encobriria, por exemplo, a Catedral.
— As preocupações são de muitas ordens: insalubridade pela falta de luz, da paisagem e da mobilidade urbana — enumera Clarice.
Vice-presidente de operações da Melnick, Marcelo Guedes afirma que a construtora não cogita a possibilidade de desistir do projeto. Segundo ele, a questão da altura "está estabelecida com base no projeto anteriormente aprovado" para o local. Sobre o sombreamento na Catedral Metropolitana, Guedes cita pesquisa feita pela construtora:
— O que a gente percebe pelos estudos são sombreamentos em horários específicos do dia, basicamente no turno da manhã e, dependendo da estação do ano, por uma ou duas horas por dia.
A outra questão legal envolve uma portaria da Secretaria de Estado da Cultura (Sedac), uma vez que o terreno fica ao lado do Museu Julio de Castilhos, criado em 1903 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (Iphae). A Portaria de Entorno de Bem tombado 035/2002 traz limitações à vizinhança do museu.
Questionada se haveria algum tipo de impedimento legal para o empreendimento, a Sedac, órgão responsável pelo Julio de Castilhos, respondeu por meio de nota:
"De forma mais objetiva, o impedimento que existe são as diretrizes para a execução de novas construções no entorno do bem tombado, Museu Julio de Castilhos. De acordo com esta regulamentação, no entorno do museu só podem ser construídas edificações novas com 15 andares ou 45 metros de altura total".
A Sedac menciona que o projeto passa por alterações e deve ser encaminhado e analisado pelo Iphae. O instituto se manifestou contrariamente ao empreendimento em nota. "O Iphae, enquanto órgão responsável pela preservação do patrimônio cultural estadual, não julga adequada essa proposta arquitetônica, considerando as notícias e informações em circulação, e aguarda o encaminhamento formal por parte da empresa responsável do projeto em questão, para poder avaliar a proposta e efetuar a análise", diz o texto.
Sobre essa questão, o IAB-RS afirma que a edificação se sobreporia a prédios importantes do ponto de vista cultural da cidade, impactando locais como Catedral Metropolitana, Palácio Piratini e Theatro São Pedro. A Associação dos Amigos do Museu Julio de Castilhos demonstra preocupação com o projeto.
– A previsão é de 41 andares. Teria de ser feita escavação proporcional, e a gente fica extremamente preocupado. Possivelmente, teríamos impactos no prédio, no conjunto arquitetônico e no próprio acervo do museu – diz o presidente da entidade, Cláudio Pires Ferreira.
Em resposta, Marcelo Guedes, da Melnick, afirma que a ideia é fomentar a revitalização da região central da cidade, fazendo a conexão entre espaços públicos e privados. Ele lembra que as ligações existentes entre as regiões alta e baixa neste quarteirão acontecem, neste momento, ou pela escadaria do Viaduto da Borges de Medeiros, ou pela Rua Espírito Santo.
— Temos cumprido todas as etapas estabelecidas na legislação, não nos furtando de qualquer demanda feita pelos órgãos públicos. Todo projeto, por mais qualificado que possa ser, é difícil que tenha unanimidade — diz ele, complementando:
— O importante é a gente avaliar o projeto de forma mais ampla, com todos os benefícios que ele acaba trazendo para o entorno e a região do ponto de vista de conexão. E por propiciar a revitalização do Centro Histórico.
O conceito do projeto prevê fachada ativa, com uma galeria comercial ao nível da Duque de Caxias. As lojas previstas para o andar térreo da Duque, onde o terreno possui cerca de 60 metros de frente, ficarão 10 metros recuadas da calçada.
— A ideia é que a gente recue o projeto de modo que ele tenha uma relação mais amigável com as edificações do seu entorno e da mesma forma com as suas laterais — observa Guedes.
Procurado, o Grupo Zaffari se manifestou por meio de nota. "Desde 1980, o Grupo Zaffari opera um supermercado e estacionamentos na Rua Fernando Machado, ocupando uma fração de um projeto que tem frente à Rua Fernando Machado e Rua Duque de Caxias, aprovado pela prefeitura em 1975, e que foi parcialmente edificado. Em 2022, a Kleebank Participações Ltda., proprietária do restante da área, vendeu uma fração do referido projeto para a Melnick Incorporadora. O Grupo Zaffari também participou desta aquisição visando melhorar a sua participação no empreendimento."
Prefeitura cita flexibilização permitida pelo Programa de Reabilitação do Centro Histórico
O secretário Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade, Germano Bremm, menciona outra legislação que tem relação com o projeto do prédio. Trata-se do Programa de Reabilitação do Centro Histórico, que permite flexibilizações nos regramentos.
— É muito interessante qualquer proposta naquela área de se levar novas residências para atrair população. Este é o grande objetivo do Programa de Reabilitação do Centro Histórico.
O objetivo do programa é atrair empreendimentos, especialmente, residenciais para a região e viabilizar a requalificação dela. Trata-se de um Plano Diretor específico para o centro de Porto Alegre.
Na prática, o Programa de Reabilitação do Centro Histórico flexibiliza regras para as construções, garantindo o potencial construtivo do prédio que já existe no local (em caso de demolição para erguer novo), dando 30% a mais de índice básico construtivo para as novas edificações e estabelecendo um gabarito por quarteirão. Dessa maneira, os novos edifícios poderão atingir a altura daquele que, atualmente, é o mais alto da quadra.
Perguntado como se daria a liberação para a construção do prédio no local mesmo sob as regras do Plano Diretor e do patrimônio histórico, o secretário volta a citar o programa de flexibilização:
— O Programa de Reabilitação do Centro Histórico cria um novo formato de análise para edificações que é muito mais de se verificar o desempenho, a análise de sombra, de compatibilização do entorno do que uma regra pré-fixada de limite de altura.
O que estabelece o Plano Diretor
A revisão do Plano Diretor de Porto Alegre voltou à pauta em 2023. O governo pretende protocolar projeto de lei complementar em outubro na Câmara de Vereadores. Um dos pontos diz respeito à verticalização dos imóveis no Centro Histórico.
Atualmente, o máximo permitido para a região é 33 metros de altura. Entretanto, se o projeto de lei for aprovado, a situação será outra: não haveria mais limite de altura para as edificações, desde que sejam atendidos os critérios de paisagem, habitabilidade (insolação, iluminação e ventilação) e não seja comprometido o patrimônio cultural do bairro.
Simulações recentes demonstram a possibilidade de prédios de 30 metros até 200 metros de altura na região central.
O projeto
- O empreendimento prevê 593 unidades, com apartamentos de 24 a 90 metros quadrados. Três pavimentos abrigarão lojas, além de um restaurante no terraço com área prevista de 288 metros quadrados.
- A ideia do rooftop no topo do imóvel é atrair o visitante e o turista para terem à disposição vista panorâmica, além de gastronomia diferenciada.
- O prédio deverá ser construído em um espaço que teria um centro comercial a céu aberto, cuja obra não chegou a ser finalizada, no final dos anos 1970. Tem o habite-se parcial.
- Se a construção for autorizada, o prédio será o segundo mais alto da Capital. O Edifício Santa Cruz, com 107 metros, na Rua dos Andradas, ainda ocupa o lugar de destaque.