Impulsionado pela retomada da atividade econômica do pós-pandemia, o bairro Rio Branco, na região central de Porto Alegre, vem se consolidando como ponto de entretenimento nas noites da Capital. Nos últimos dois anos, diversos bares e restaurantes foram abertos na área compreendida pelas ruas Miguel Tostes, São Manoel, Vasco da Gama, Cabral e Mariante.
O crescimento vem gerando valorização na região, mas, ao mesmo tempo, começa a incomodar moradores que vivem próximos dos pontos mais badalados.
Ao contrário de outras regiões da cidade, o Rio Branco não é visto historicamente como um reduto boêmio. Localizado entre os tradicionais Bom Fim e Moinhos de Vento, é repleto de prédios residenciais, muitos deles antigos. Mas tem se percebido uma mudança no perfil da região.
GZH circulou pela área na noite das últimas sextas-feiras e registrou um grande movimento, com bares e restaurantes cheios tanto na parte interna como na externa, além de muitas pessoas ocupando as calçadas. O público variava em cada local, sendo alguns voltados para os mais jovens.
Para empresários que já estavam no bairro há mais tempo, a chegada de novos empreendimentos tem sido um facilitador para recuperar os prejuízos do período de isolamento social. No Miau da Cabral, bar de espetinhos que existe há 26 anos, as proprietárias celebram as transformações recentes.
— Cresceu muito (o movimento) depois da pandemia, quando demos uma recaída, e agora tem sido maravilhoso — diz uma das sócias, Claudia Goulart.
O crescimento pode ser comprovado pelo aumento de empresários que solicitam à prefeitura a abertura de novos negócios. Segundo dados da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Turismo (Smdet), 2023 já supera os últimos dois anos no número de alvarás emitidos para instalação de estabelecimentos no bairro: foram 55 até o fim de julho. No ano passado inteiro foram 54, e em 2021, apenas 23. Além disso, dos 207 alvarás em funcionamento no bairro, 124 são de bares e restaurantes — o que representa 59% do total.
Quem abriu um negócio recentemente diz ter se aproveitado do momento favorável do bairro e das características da região. Localizado na Rua Miguel Tostes, o restaurante La Cubana funciona há quatro meses servindo comidas típicas de Cuba, além da parrilla, o churrasco servido na Argentina e no Uruguai. O dono, Orlando Carvalho, diz que a presença de outros estabelecimentos foi crucial para a instalação do novo empreendimento.
— Está sendo bem legal aqui, estamos sendo acolhidos pelos vizinhos. É um bairro que tem muitos estudantes e ao mesmo tempo muitas famílias também, o pessoal anda bastante na rua. É um bairro que tem vida e que tem ganhado mais segurança com o surgimento de outros restaurantes próximos, o que é importante para o desenvolvimento de um negócio — ressalta.
Para os frequentadores do bairro, a segurança também é um fator definitivo. Há cerca de um ano, a antropóloga Luiza Beck, 28, frequenta semanalmente um bar da Rua Mariante. De acordo com ela, o ambiente seguro e a boa localização a fizeram optar pelo Rio Branco ao invés de outros pontos da cidade.
— É uma região bem central e mais perto da minha casa do que a Cidade Baixa. Então a localização é boa, mas a segurança também. Dá para fazer mais coisa a pé. Não precisa escolher um dos bares e ficar circulando. Antes não era possível, porque não tinha gente na rua — explica.
Cliente de um bar na região, a engenheira Joana Mocellin, 24, conta que frequentava outros lugares até 2020, mas acabou acompanhando a movimentação de outros jovens para o Rio Branco.
— Antes da pandemia, a gente ia muito para a Cidade Baixa, mas, depois, vimos as pessoas migrando pra cá e seguimos esse fluxo. Acredito que, até meia-noite, é o lugar mais seguro da cidade para ficar atualmente.
Acredito que, até meia-noite, é o lugar mais seguro da cidade para ficar atualmente.
JOANA MOCELLIN
engenheira
Na avaliação da secretária de Desenvolvimento Econômico e Turismo da Capital, Júlia Tavares, a migração de público é o que explica a recente mudança na característica do bairro. Áreas como Moinhos de Vento e Cidade Baixa, de onde vem grande parte do público, sofreram com transformações impulsionadas, entre outros fatores, por decretos que determinam regras aos frequentadores e comerciantes.
— Vejo que há uma migração desses bares, da vida noturna como um todo, para o bairro Rio Branco. A gente percebe que o bairro Moinhos de Vento, por exemplo, está se tornando mais residencial. Além disso, tem uma questão do pós-pandemia, em que as pessoas querem sair e estamos vendo um aumento enorme na abertura de bares e restaurantes na cidade — observa Júlia, que destaca ainda a lei de liberdade econômica, em vigor na cidade há dois anos, como um facilitador para a abertura de novos empreendimentos.
Moradores reclamam
Com o crescimento de bares e restaurantes — e o consequente aumento do fluxo de pessoas nas ruas —, algo que já ocorre em outros bairros da cidade passou a acontecer no Rio Branco: vizinhos demonstrando incômodo com a situação. Pessoas que vivem em vias como Miguel Tostes, Cabral, Mariante e Liberdade relatam diversos problemas como lixo nas ruas, obstrução de vias e som alto.
Conforme moradores ouvidos pela reportagem, a perturbação parte principalmente de dois locais, o El Aguante, localizado na Rua Miguel Tostes, e o Pito, situado na Mariante. Ambos possuem características semelhantes: são bares com poucas mesas na parte interna e que costumam vender bebidas para as pessoas consumirem nas ruas.
No caso do El Aguante, o sucesso do bar faz com que os frequentadores lotem as calçadas, utilizando parte da via pública. Nos finais de semana, a concentração aumenta já no início da noite, se mantendo até o início da madrugada — o estabelecimento fecha à meia-noite, horário permitido pela prefeitura.
A designer Fernanda Sklovsky, 44 anos, mora em um prédio localizado em frente ao bar. Desde o ano passado, diz que teve a rotina afetada pelo som alto e por eventuais apresentações ao vivo.
Fernanda mora sozinha em um apartamento de dois dormitórios e afirma que teve que sair do quarto maior, por ficar mais próximo da rua. Segundo ela, as dificuldades ocorrem durante toda a semana, exceto domingos e segundas-feiras.
— Não teve nenhuma tentativa do proprietário de estabelecer um equilíbrio entre o que ele pretende com o estabelecimento e a vizinhança. Todo mundo acolheu ele de uma forma muito boa no início. Só que nós temos muitos relatos de outros apartamentos que têm crianças que não conseguem estudar, pessoas da terceira idade que estão com problemas de saúde, são inúmeras questões — reclama a moradora.
GZH procurou os responsáveis pelo bar na noite em que esteve no local, mas os proprietários preferiram se manifestar por meio de nota, assinada por "representantes do El Aguante Bar". Segundo o texto, o estabelecimento atua "com tudo dentro da lei e dentro dos horários permitidos", nunca ultrapassando o horário da meia-noite para fechamento.
"Já fomos autuados por mesas na calçada, onde recorremos e vencemos o processo (...) sempre recebemos os fiscais abertamente, para escutar e fazer as melhorias necessárias, e por isso que eles não têm mais nos autuado, pois seguimos todas as orientações", diz o texto.
Já o bar Pito também coleciona reclamações de pessoas que residem nas proximidades. Com uma proposta de se voltar para o ambiente externo, o local coloca caixas de som voltadas para a rua até a meia-noite, horário de fechamento do estabelecimento. Assim como no El Aguante, atrai o público universitário, que ocupa as calçadas da Mariante e da Rua Liberdade.
Estou tendo que sair de casa, porque ali não há condições.
DARLEIA RADAELLI
moradora do bairro
Moradora desta esquina, a farmacêutica Darleia Radaelli, 41, diz que alguns vizinhos já se mudaram do prédio devido ao barulho. Ela relata ainda que está buscando formas de aprimorar o isolamento acústico do apartamento e que, recentemente, tem optado por dormir fora de casa em dias de maior agitação.
— Estou tendo que sair de casa, porque ali não há condições. Eu inclusive estou fazendo um orçamento para botar janela acústica, algo que eu não acho que seja um dever do cidadão fazer por causa de um bar. Só porque uma pessoa decide fazer uma festa eu tenho que botar uma janela rústica de quase R$ 7 mil para poder dormir? — desabafa.
Uma das sócias do Pito, Ariane Andrade justifica que cumpre todas as determinações da prefeitura, reconhece que já recebeu notificações, mas que nenhuma foi por descumprimento de horário ou uso indevido do alvará. Ela garante ainda que se colocou à disposição da vizinhança logo que o estabelecimento passou a funcionar.
— Desde os primeiros dias a gente teve uma conversa informal com todos os moradores que passavam pelo bar. Chegamos a dar nosso número a eles, para que eles pudessem reclamar quando achassem necessário. Esse contato chegou a ocorrer algumas vezes. Mas, para além disso, estamos respeitando o limite do horário para emitir som — salienta a empresária.
Segundo a Diretoria de Fiscalização da prefeitura, o número de denúncias recebidas em 2023 no Rio Branco já está próximo de se igualar ao ano passado. No primeiro semestre, foram 117 reclamações formais. Em todo 2022, foram 123. Além disso, neste ano foram feitos 13 autos de infração. O órgão não quis informar quais estabelecimentos foram autuados.
Apesar disso, a Brigada Militar informa que a demanda para ocorrências de perturbação de sossego é muito inferior à da Cidade Baixa.
— Na Cidade Baixa temos muitos chamados de perturbação de sossego, enquanto no Rio Branco não vemos esse cenário. Há apenas casos pontuais, em situações que não chegaram a gerar conflito nem obstrução de vias — diz o subcomandante do 9º Batalhão de Polícia Militar, major Demian Riccardi.
MP analisa situação
As recentes reclamações de moradores chegaram ao Ministério Público (MP) do Rio Grande do Sul, que tem recebido vídeos e documentos e buscado dialogar com a prefeitura para buscar possíveis soluções. Em nota, o órgão afirmou, por meio da promotora do Meio Ambiente Anelise Steigleder, que o conflito não é exclusivo do bairro e que é gerado principalmente pela aglomeração de pessoas na rua e a concentração de bares, um ao lado do outro.
Um dos representantes do tema na Câmara de Vereadores é o vereador Pablo Melo (MDB), que já realizou audiências públicas sobre a situação no Rio Branco. O parlamentar defende que haja um decreto unificando regras de convivência para toda a cidade — atualmente, a Capital possui regras específicas para três regiões: Moinhos de Vento, Cidade Baixa e orla do Guaíba.
— Acredito que temos que avançar para uma legislação que que seja uniforme na cidade, pensando no que pode e no que não pode nas vias públicas. Não se pode ocupar o espaço público sem nenhuma regra. Já temos isso em alguns bairros. Será que não é a hora de uniformizar essa legislação para toda a cidade para a gente evitar que a desordem ocorra em qualquer lugar? — questiona.