Porto Alegre "pode ser exemplo para o mundo", mas precisa partir do debate para a transformação, mesmo que seja, inicialmente, em um território pequeno. A avaliação é do antropólogo colombiano Santiago Uribe Rocha, 50 anos, que cumpre agenda no Rio Grande do Sul nesta semana.
Uribe coordenou o projeto Cidades Resilientes, que transformou Medellín. A cidade colombiana chegou a ser considerada a mais violenta do mundo por causa do narcotráfico, dominado pelo cartel que tinha Pablo Escobar como líder, mas tornou-se exemplo para o mundo a partir de um trabalho que teve como foco a redução da desigualdade social. Além da Capital, o especialista estará em Caxias do Sul, na Serra.
Em entrevista concedida a GZH nas dependências do Tecnopuc, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), onde deu palestra organizada pelo Pacto Alegre, Santiago Uribe apontou o que considera o maior desafio que se apresenta para Porto Alegre:
— O maior desafio que Porto Alegre tem é transformar seus territórios periféricos.
E um exemplo de território em transformação citado pelo antropólogo é o Morro da Cruz, na Zona Leste, onde ele participou de uma atividade chamada "Acampadentro" e chegou a dormir na casa de moradores.
— O que encontrei no Morro da Cruz foi uma comunidade cheia de energia e vontade em busca de oportunidades. Jovens, mulheres desenhistas, que fazem manicure, uma efervescência de empreendimentos com algumas infraestruturas e conexões com a internet — comentou.
Por meio do programa Territórios Inovadores, do Pacto Alegre, o Morro da Cruz desenvolve um projeto de digitalização, que inclui wi-fi, a oferta de serviços como Tudo Fácil e a viabilização de aulas por meio da EdTech (startup de educação). O objetivo é capacitar os jovens para o mercado de trabalho em áreas ligadas à inovação e à tecnologia. Entre os apoiadores, estão RBS, Banrisul, Sicredi, Sebrae e Badesul.
Um ponto a melhorar em Porto Alegre, destacado pelo antropólogo, que já visitou 16 vezes a cidade, é a criação de um sistema de mobilidade mais eficiente, por exemplo, por meio de bondes ou metrô.
— Não se pode chamar uma cidade de inovadora se não há um sistema de mobilidade que ajude a vida das pessoas — cravou.
Confira, abaixo, os principais pontos da entrevista de Santiago Uribe.
Qual o segredo para ter feito de Medellín uma cidade mais segura?
O mais importante foi a combinação de vários fatores. O primeiro foi reconhecer que a violência não era o problema, senão a manifestação de um problema maior, que era a desigualdade. Éramos uma cidade supremamente equitativa, onde a grande maioria não tinha acesso aos serviços fundamentais da cidade. Estávamos segregados socioespacialmente entre ricos e pobres, com diferenças enormes. Entendemos uma mensagem muito importante: pobreza não significa violência. Porém, desigualdade é o motor do conflito. E alguns conflitos terminam em grandes violências.
Essa foi a razão pela qual Medellín um pouco se constituiu na cidade mais violenta. E a partir daí se reconhecer que a violência não era o problema, senão a desigualdade. Decidimos lidar com o problema da desigualdade para tratar de convertermos a cidade em um lugar mais pacífico e seguro.
Creio que no primeiro elemento vocês possuem muita experiência: construir uma visão coletiva de cidade. Porém, não se pode construir a visão de dentro dos escritórios, nem por um prefeito, por uma equipe ou apenas pelos empresários. Isso requer uma participação ativa da cidadania. No caso de Medellín, o presidente nomeou uma mulher comunicadora social (Maria Ema Gonzalez), que foi ministra conselheira para a paz na cidade.
Quando ela chegou disse: "Ninguém pode nos ajudar, sequer o governo nacional. Os únicos que têm a resposta para os problemas da cidade somos nós". E instalou uma metodologia maravilhosa que foram os fóruns "Alternativas para o futuro de Medellín". Rodas de conversa durante quatro anos, que foram a todos os bairros e comunidades de Medellín perguntando qual é a cidade futura que queremos e de qual desejamos participar da construção.
Ao terminar quatro anos, tínhamos já uma visão coletiva de construir. É uma participação cidadã extensa, através do diálogo e da conversa, e da possibilidade de imaginarmos um futuro distinto.
A partir daí, creio que há três princípios fundamentais. Normalmente, quando se tem uma problemática tão forte, os prefeitos e a sociedade civil tratam de encontrar uma solução para o dia de amanhã. E a aprendizagem que se tem de Medellín é "imaginem a cidade no futuro". É preciso começar não pelo princípio nem pelo final. Se Porto Alegre tem um desafio enorme e decidir tratar de resolvê-lo amanhã, não pode perder nunca a visão da cidade que querem viver e construir juntos. A sociedade requer que o planejamento siga o passo a passo.
E o outro princípio é muito simples. Em inglês dizemos "one day", "algum dia" o faremos. E não é algum dia. É no dia. Quando se tem planejamento é dia de começar a trabalhar hoje mesmo. E começar com coisas simples. O poder dos projetos pequenos. Não há que se fazer um grande projeto, mas projetos pequenos que, juntos, contribuam para o grande projeto, que é a cidade.
O último princípio fundamental é que só se pode transformar o passado de uma cidade seletiva e incrementalmente. Não basta a força de um só prefeito, de uma só administração ou de um só grupo. Necessita de trabalho conjunto de muitos prefeitos, que, continuamente, busquem concretizar essa missão de cidade que os cidadãos participaram, sonharam e estão dispostos a trabalhar. Esses seriam os três princípios básicos que foram trabalhados em Medellín por 30 anos.
Na sua opinião, qual foi o maior desafio em Medellín?
Era e segue sendo ainda a desigualdade. Creio que o grande desafio que temos hoje de maneira muito clara é que somos uma sociedade profundamente equitativa, nem todos os cidadãos gozam dos mesmos direitos à cidade, especialmente nas zonas periféricas. Os cidadãos não se reconhecem como membros de uma coletividade que chamamos cidade. Este é um desafio grande.
Sobre este desafio, a importância é que os recursos mais significativos da cidade e as infraestruturas mais importantes teriam que ser direcionadas às zonas periféricas.
O outro é quando se faz projetos nas zonas periféricas. Não podem ser feitos projetos medíocres. Tem que se pegar toda a capacidade do Estado para que as pessoas vejam o Estado chegar com o melhor de seus recursos, capacidades e possibilidades. Assim as pessoas começam a entender que fazem parte de um sistema urbano de uma cidade.
Creio que o desafio mais importante de Medellín e da grande maioria das cidades latino-americanas é desenhar soluções criativas para a inclusão social e reduzir as desigualdades. Este é o nosso grande desafio.
Por que nas cidades brasileiras e em outras sul-americanas, os governos pensam em combater a criminalidade apenas colocando mais policiais nas zonas periféricas? Como mudar essa mentalidade e integrar as pessoas mais pobres?
No mundo moderno e especialmente da política, se entende o valor da segurança nos projetos políticos. Isso se baseia fundamentalmente no medo das pessoas. A segurança, e a resposta ao medo, em função de poder controlar uma problemática, e da resolução violenta de conflitos. Porém, o ser humano havia construído, muito antes que a segurança, um conceito mais amplo, que se chama proteção. Quando os seres humanos construíram em busca de três grandes coisas, que chamo de arquétipos do sistema urbano.
Buscamos proteção, e não segurança; intercâmbios e oportunidades. As cidades que não oferecem esses três grandes princípios e que têm uma desigualdade muito grande, finalmente, boa parte delas resolvem seus conflitos através da violência.
Uma cidade que não é inclusiva é aquela em que o cidadão tem que investir mais de 10% de sua renda em transporte. Será que Porto Alegre é, então, inclusiva?
SANTIAGO URIBE ROCHA
Antropólogo
A proteção como conceito e a possibilidade de entender que se obtém a segurança no sistema urbano é através da inclusão social. Se incluir os cidadãos nos processos de realização de seus projetos de vida, de possibilidades econômicas, de emprego, de transporte digno, que possam ir de sua casa ao trabalho em condições dignas.
Uma cidade que não é inclusiva é aquela em que o cidadão tem que investir mais de 10% de sua renda em transporte. Será que Porto Alegre é, então, inclusiva? Será que nossas cidades latino-americanas são inclusivas quando as pessoas têm que investir tanto em transporte?
O senhor visitou o Morro da Cruz, onde há projetos em relação à tecnologia sendo desenvolvidos com os jovens dessa comunidade. Qual a sua opinião depois de sua visita?
Creio que o Morro da Cruz, como muitos outros territórios de Porto Alegre, Bom Jesus, Restinga e tantos outros, é a oportunidade que a cidade tem para reduzir as desigualdades e demonstrar que Porto Alegre é verdadeiramente uma cidade inovadora. E inovação significa transformação.
O maior desafio que Porto Alegre tem é transformar seus territórios periféricos. Incluir e mostrar ao mundo a grandeza de uma cidade que é capaz de se imaginar e promover uma grande transformação. O dia em que Porto Alegre alcançar essa grande transformação, seguramente vão entrevistar aqui vocês, e não a nós.
Porque há um desafio maravilhoso que é uma grande oportunidade. O que encontrei no Morro da Cruz foi uma comunidade cheia de energia e vontade em busca de oportunidades. Jovens, mulheres desenhistas, que fazem manicure, uma efervescência de empreendimentos com algumas infraestruturas e conexões com a internet. Construir um território inovador é construir uma cidade inovadora. Não há dúvidas de que será feita a grande inovação em Porto Alegre. Este é o desafio que vocês têm hoje e no futuro próximo.
O que Porto Alegre pode fazer para ter mais segurança em zonas carentes, mas também nos bairros mais centrais?
Da perspectiva da segurança humana, devem trabalhar muito em todos os projetos de inclusão de periferias. E em um grande projeto de cidade. Creio que esse grande projeto pode ser o Pacto Alegre. E como diminuir as desigualdades, construir territórios inovadores através da inovação, levando as melhores escolas e centros de tecnologia.
Porém, também um bom sistema de transporte que conecte a todos. E que as pessoas possam ter oportunidades.
Em territórios como o Centro e a região da Orla há que se ter estratégias centralizadas de segurança, a partir dos princípios fundamentais das smart cities (cidades inteligentes), ter um bom sistema de vigilância, de uso do espaço público, de iluminação.
Porém, o mais importante: uma cidadania que se volta para os espaços públicos porque se sente protegida e faz bom uso deles. Ao fazer bom uso, essa sensação de proteção termina gerando entornos protetores.
Seria muito bom ir trocando cada vez mais essa ideia da segurança por proteção. Também fortalecer muito a presença das forças públicas e inteligentes. Polícias comunitárias que estejam a serviço do cidadão e que entendam os grandes desafios da cidade e dos territórios e que se ponham a serviço deles.
E, finalmente, capacidade local na prefeitura e na Secretaria de Segurança para se desenhar uma estratégia centralizada de segurança em que se entenda que os desafios e o crime organizado em cada território são distintos. E para cada local é preciso elaborar estratégias adaptadas.
No sábado, dois jovens foram baleados e mortos em um dos principais cartões-postais de Porto Alegre, na pista de skate da orla do Guaíba. O senhor se surpreende quando vê um crime em um local tão movimentado?
Sim, efetivamente tem que se perguntar: por que ocorre um crime em um espaço público tão habitado? E segundo: em um espaço público que representa ativa e simbolicamente a cidade? Temos que pensar como a cidade pode voltar a ter confiança neste espaço e como fazer um ato simbólico para que a cidade entenda a importância de cuidar e proteger esse entorno, para que as pessoas possam retornar.
Quando esse tipo de fenômeno, como se passou na França há pouco com crianças (quatro crianças e dois adultos foram esfaqueadas em um parque em Annecy, nos Alpes), não apenas acaba com a vida das pessoas... Perder vidas já é uma tragédia enorme. Fundamentalmente, não podemos perder a confiança porque recuperá-la é muito custoso. Sobretudo quando falamos de espaço público.
Temos que pensar como a cidade pode voltar a ter confiança neste espaço e como fazer um ato simbólico para que a cidade entenda a importância de cuidar e proteger esse entorno, para que as pessoas possam retornar.
SANTIAGO URIBE ROCHA
Sobre duplo homicídio na Orla
Conheço a Orla desde antes que fizeram o seu plano. Talvez um dos espaços mais maravilhosos que conheci em muitas cidades do mundo. Vocês têm um tesouro enorme que é ser uma cidade que tem água dessa maneira, no que significa em termos de paisagem, de recreação, de união como sociedade. Esses tipos de fenômenos não podem afastá-los do projeto que é a Orla.
A municipalidade deve voltar toda sua atenção e energia para como chegar e explicar a melhor estratégia de segurança humana. Que não é só a força policial. São todas as coisas que vêm sendo feitas, atividades recreativas, esportivas, culturais e de integração. E quando fizer isso tratar de entender em profundidade o que aconteceu para um fenômeno como esse ter lugar aqui.
Um dos grandes aprendizados de Medellín foi que, como sistema urbano, tivemos de entender o ecossistema de crime e violência. Quais foram as causas que levaram a fenômenos como esse.
No caso de Medellín, nas décadas de 1980 e 1990, o número de homicídios que havia na cidade era de 6,5 mil por ano, 20 homicídios por dia. Um número vergonhosamente trágico, algo que nunca nos deixou orgulhosos. E 39% eram crimes que tinham origens em brigas entre vizinhos, alguém que colocou a música muito alta ou havia bebido muito. E quando alguém demonstrava inconformidade, a reação era violenta e terminava em um ato homicida.
O que aconteceu na Orla, se foi uma briga ou disputa entre amigos, familiares, vizinhos, ou, ao contrário, um crime de controle de território ilegal de drogas, é uma tarefa que a prefeitura precisa liderar. Uma vez conhecidas em profundidade as causas e efeitos de um fenômeno como esse, é necessário usar toda a sua inteligência social e policial para lançar uma estratégia que recupere a confiança em um espaço público tão importante.
Uma das principais causas de homicídios em Porto Alegre é a briga por territórios entre traficantes de drogas. Como fazer para mudar essa realidade e inserir essas pessoas envolvidas com a criminalidade no mercado de trabalho ou em oportunidades para estudar?
A pergunta nos remete para trás. Quais são as causas para que o sistema urbano, como os nossos, induzam os jovens a fazerem parte de grupos criminosos? A resposta é a falta de oportunidades. Muitas vezes, os jovens não têm nenhuma oportunidade. E o mais significativo é que a maioria deles não são violentos. Porém, a violência é uma linguagem que fala muito forte. Expressa seu inconformismo porque atenta contra o valor supremo, que é a vida.
Creio que o primeiro é olhar com muito cuidado as carências de oportunidades que existem nos territórios periféricos e como o Estado oferece oportunidades aos jovens de maneira natural para que não tenham no crime organizado uma opção.
Como em todas as cidades do mundo, apesar de grandes esforços, há pequenos grupos que têm reações violentas que afetam o sistema urbano. A esses grupos há de se preparar uma estratégia de segurança que entenda as economias criminais e como influenciam na economia da cidade e no controle de territórios. As disputas entre as organizações criminosas não são só pelo controle das drogas, são pelo controle dos territórios e dos ecossistemas que representam o mercado.
São os dois fenômenos mais completos da violência urbana que vemos nas cidades da América Latina. É preciso atendê-las com uma estratégia profunda e inclusão social para gerar oportunidades. Porém, ao mesmo tempo, com o entendimento integral do ecossistema de crime e violência, da economia ilegal e de todos os fenômenos que giram em torno dela.
Que conselhos o senhor daria para o governo municipal e para as forças de segurança de Porto Alegre para que se construa um espaço melhor para todos?
Depois de 16 visitas a Porto Alegre, primeiramente, reconheço que é uma cidade maravilhosa. Esta é uma cidade que pode ser exemplo para o mundo.
Alguns anos atrás, havia uma sensação de frustração e de angústia. Mas nos momentos mais difíceis é que emergem as grandes oportunidades. Elas emergem quando as pessoas se juntam para dialogar e construir uma visão coletiva de cidade. Aí reside a grande riqueza de Porto Alegre: sua capacidade exemplar de juntar seus cidadãos a participar e dialogar, construir e transformar a cidade.
Creio que o grande desafio que a cidade tem, e digo com todo carinho e amor porque tenho grandes amigos aqui, é que os porto-alegrenses são muito bons falando. Querem transformar toda cidade, mas deveriam começar por um território inovador pequeno, como o Morro da Cruz ou a Restinga. É a possibilidade de acender a chama da esperança da construção de confiança com os territórios periféricos que temos esquecido.
Transformar uma cidade é uma corrida de tartarugas. Não se pode fazer apenas por um prefeito e não se faz em quatro anos.
SANTIAGO URIBE ROCHA
Antropólogo
Que comecemos um caminho de transformação. Transformar uma cidade é uma corrida de tartarugas. Não se pode fazer apenas por um prefeito e não se faz em quatro anos. Se demora mais de 30 anos.
Não perder nunca esse projeto coletivo, que não é de nenhuma administração ou de nenhum prefeito, é um projeto de toda sociedade, aí está a riqueza de Porto Alegre. Os cidadãos de Porto Alegre se juntam e participam para dialogar e sonhar esta cidade. Porém, lhes custa passar para a ação. E então lhes digo com todo carinho e amor que sinto: dialoguem, mas corram para fazer ações significativas nesses territórios periféricos.
E, por último, uma cidade maravilhosa como essa merece um sistema de mobilidade integrado de última geração. Não se pode chamar uma cidade de inovadora se não há um sistema de mobilidade que ajude a vida das pessoas.
O senhor fala de metrô?
De metrôs e de bondes. E da possibilidade de que, em menos de uma hora, se possa ir para qualquer lugar da cidade por um valor digno. E que junte as oportunidades dos moradores do Morro da Cruz com as dos habitantes de outros bairros e do Centro. Vocês necessitam de um grande projeto de articulação, que nada mais é do que um bom sistema de transporte público.