Em duas décadas, Medellín, na Colômbia, sofreu uma mudança de status radical. Saiu da posição de cidade mais violenta do mundo, com 360 mortes para cada 100 mil habitantes no começo da década de 1990, para ser considerada, em 2013, a mais inovadora do planeta pelo instituto Urban Land. Em 2014, foi a primeira a receber o workshop Cidades Resilientes, iniciativa da Fundação Rockefeller que conta com o apoio da Organização das Nações Unidas (ONU) e é promovido pela prefeitura da Capital. O evento vai até quarta-feira.
Nesta terça-feira, Santiago Uribe da Rocha, coordenador do projeto Cidades Resilientes na segunda cidade mais populosa da Colômbia - são mais de 2 milhões de habitantes -, falou sobre o trabalho de cultura de paz que transformou violência em inovação em um painel no Grêmio Náutico União, na Capital. Após o encontro, o antropólogo, que chegou a ter uma casa destruída por um carro-bomba em uma das épocas mais críticas da cidade, conversou com a reportagem.
O principal problema de Medellín 20 anos atrás era o alto índice de homicídios. Como essa situação foi revertida?
Os homicídios são uma expressão da violência familiar, da violência contra as mulheres e contra as crianças, são um reflexo das pequenas violências. E você não pode esperar uma cidade pacífica de famílias violentas. Então, primeiro, tivemos de entender quem somos, para aprender a respeitar o outro como cidadão. Entender que quem tem os mesmos deveres tem que ter os mesmos direitos e oportunidades. Depois, foi preciso desenvolver mecanismos de convivência e discussão, aprimorar a forma de governar, tornando-a mais inclusiva e participativa.
Como foi esse processo?
Primeiro, chegamos ao fundo do poço. Fomos considerados, pela (revista) Time, a cidade mais violenta do mundo. Tínhamos 17 homícidios por dia. Perdemos gerações, e isso nos fez refletir. Para dar um exemplo, no fim dos anos 1990, um carro-bomba destruiu uma casa minha. Chegamos a um ponto em que a própria sociedade tomou a decisão de mudar. Percebemos que tínhamos construído a cidade de uma maneira equivocada. Havia muitas pessoas com muitas necessidades e poucos com muitos privilégios. Então, movimentos sociais começaram a se organizar, nas comunidades, para levar escolas, melhorar a vida nesses lugares com iniciativas pontuais. Até que o governo se deu conta disso, de que eram aquelas pessoas que mais precisavam dele e que ele precisava ir até elas. A partir daí, foram construídos sistemas de transporte, escolas e centros culturais nessas regiões.
Como o governo se aproximou das comunidades?
Tivemos que ir até elas, participar de reuniões - secretas, inclusive. Sentar com organizações criminosas e pedir aos bandidos que não se matassem. Que roubassem, mas não matassem. Tivemos de humanizar a guerra. E as mães dos criminosos tiveram um papel fundamental nisso. Cansadas de verem os filhos morrendo, elas sentaram para conversar, intermediar a situação. Nos atrasamos muito, então (o esforço) nunca vai ser suficiente, porque as necessidades continuam crescendo. Mas hoje as pessoas já sabem o valor da vida. Vinte anos atrás, tínhamos que dizer: não se matem. Conseguimos melhorar, mas hoje existem outros problemas.
Quais os principais problemas de Medellín?
Atualmente, a extorsão, os roubos e a restrição do direito de ir e vir das pessoas por grupos armados que controlam territórios. Há estruturas criminosas muito fortes atuando em economias ilegais. Também é um problema a violência contra mulheres e crianças. Melhorar isso vai levar mais uns 20 ou 30 anos, com certeza. No momento, estamos escrevendo uma política pública de segurança e convivência. Queremos mapear as áreas mais afetadas para aumentar a presença do Estado nesses lugares, não só com a polícia, mas com exercícios de convivência, com o fortalecimento das famílias. A vida é uma valor sagrado. Mas ela tem de ser vivida com dignidade.
Durante o painel, o senhor creditou o avanço da violência em Medellín à desigualdade social. Qual é o papel do Estado nessa mudança de prioridades?
O exercício de governo que vivemos tem um caráter egocêntrico. Acredita que pode resolver os problemas do outro, mas sequer o conhece. É preciso sentar e dialogar, entender as necessidades. Atualmente, estamos implantando na cidade o Orçamento Participativo, que é uma iniciativa que levamos de Porto Alegre. Sabemos que não resolverá todos os problemas, mas é uma maneira de manter esse diálogo. Esses setores da sociedade acreditam pouco nas instituições porque elas pouco estiveram ali. Estamos buscando soluções, mas ainda há muito a melhorar.
Como os "privilegiados" têm reagido às transformações sociais?
Ainda não houve uma transformação cultural nessa camada da sociedade. Eu sonho com o dia que, no colégio particular onde eu estudei, meus filhos estudem com outros, da favela, e que a favela seja um lugar melhor. Acredito que todos têm de ter os mesmos direitos, mas, para isso, precisam ter as mesmas oportunidades. A sociedade, em Medellín, ainda tem que mudar de ideia, porque muitos acham que as pessoas têm que ter privilégios sobre as outras. Estamos em um processo, mas é difícil. As pessoas ainda são conservadoras politicamente, especialmente na América Latina, onde perder privilégios significa fazer alguns sacrifícios. Um exemplo disso é a questão das empregadas domésticas no Brasil. Um professor me contou que estão criando leis para melhorar as condições de trabalho delas, e que alguns empregadores deixaram de contratá-las porque acharam muito caro pagar os seus direitos. Fiquei pensando nisso, porque eu tenho uma empregada para conseguir ter tempo de fazer coisas importantes, para poder trabalhar melhor. Por que a hora dela vale 10 vezes menos que a minha se me permite fazer tantas coisas? Onde está a transformação real? É fácil falar em igualdade, mas, na hora de tornar isso real, é muito difícil.
Em Porto Alegre, a falta de policiamento é uma das principais críticas da população em relação à segurança. Qual é o papel da polícia em uma cultura de paz?
Em Medellín, temos o mesmo problema, de achar que a segurança chega com a polícia. Mas o policiamento só muda a percepção da realidade, e não a realidade em si. E isso faz a manutenção de um esquema que é maquiavélico: eles protegem meus privilégios dos outros. A sociedade deveria encontrar mecanismos muito antes de precisar da polícia, que deveria existir para atuar apenas em casos extremos. Isso passa por dar condições às pessoas que mais precisam, dar igualdade de oportunidades. Na Polônia, por exemplo, não há mais exército. E eles viveram uma guerra. Perderam milhares de pessoas e entenderam que precisavam de outros mecanismos para conviver socialmente. É possível.
Caue Fonseca: "A respostinha malcriada do tenente-coronel é o menor dos problemas"
O senhor citou dois exemplos traumáticos: Medellín, que foi considerada a cidade mais violenta do mundo, e o da Polônia, devastada pela guerra. É preciso ir tão longe para alcançar a paz?
Não deveria ser assim. Chegar ao fundo do poço é permitir que muitas pessoas percam a vida, que é valiosa. É um pensamento egoísta. (Nelson) Mandela dizia sempre, e eu repito: o momento da paz é agora. Não podemos perder nenhum minuto. As feridas que temos hoje são profundas, temos uma geração marcada pela violência. Não vale a pena. Buscar a paz com afeto é mais fácil, menos custoso e tem maior impacto a longo prazo. Mas, para isso, é preciso inverter a lógica vigente, que ainda cultua privilégios, para que todos tenhamos as mesmas oportunidades. Isso não pode esperar.
Entenda o workshop
O 1º Workshop de Cidades Resilientes, promovido pelo projeto Porto Alegre Resiliente, contará com a presença de gestores e especialistas da área vindos do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo, além de países como Colômbia, Equador e Estados Unidos. Três grandes temas nortearão os painéis: Mudanças Climáticas, Cultura de Paz e Revitalização das Cidades. O painel de abertura, intitulado Gestão de Territórios, Riscos e Informação: Desafios da Resiliência, é aberto ao público. Toda a programação ocorre no Grêmio Náutico União. Mais informações em portoalegreresiliente.org.
O QUE SÃO CIDADES RESILIENTES?
Uma cidade resiliente é aquela que se capacita para enfrentar as adversidades, reduzindo ao máximo os prejuízos humanos e materiais quando estas situações ocorrem. São desenvolvidas ações de prevenção para encarar esses desafios e evitá-los, se possível. São exemplos desses eventos inundações, terremotos, furacões, deslizamentos, falta d'água, fortes ondas de frio ou calor, greves de transporte, combate ao tráfico, violência e epidemias.