Santiago Uribe Rocha é porta-voz de uma das experiências mais bem-sucedidas da América Latina recente. Natural de Medellín, na Colômbia, ele participou da transformação que elevou de patamar a segunda cidade mais populosa de seu país – com mais de 2 milhões de habitantes. Em duas décadas, deixou de ser a mais violenta do mundo, tornando-se referência em inovação.
Após passar quase uma década entre a África do Sul, onde trabalhou com Nelson Mandela, e a Colômbia, desde 2014 ele chefia o Escritório de Resiliência de Medellín, uma iniciativa da Fundação Rockefeller que conta com o apoio da ONU para investir em uma rede de cidades selecionadas – Porto Alegre entre elas – traçando estratégias para enfrentar adversidades.
Neste sábado (24), o antropólogo estará em Porto Alegre para palestrar no Festival da Transformação – FT18, promovido pela ADVB/RS (informações neste site).
Como se deu a mudança radical de Medellín?
Quando éramos a cidade mais violenta do mundo, com índices de homicídios de quase 391 para cada 100 mil habitantes, quase todos jovens em sua idade mais produtiva, nomeamos uma ministra conselheira para assuntos de paz. Sabíamos que o governo nacional não tinha recursos nem capacidade humana para resolver os problemas, e que não se podia mais pensar a cidade sem os cidadãos como parte do planejamento estratégico. Como ponto de partida, implantamos uma dinâmica de fóruns para discutir o futuro de Medellín. Fomos de bairro em bairro perguntando sobre qual era a cidade que nós, medellinenses, queríamos. Foram cerca de quatro anos, o que resultou em um documento com um planejamento para ser executado entre 1995 e 2015. O maior aprendizado, naquele momento, foi que o problema em si não era a violência, mas que era ela parte de um problema maior, que era a desigualdade, e que o que teríamos de resolver eram as diferentes manifestações de desigualdade como um problema estrutural: a carência de espaços públicos, de educação, de saúde, de centros comunitários.
Como foram feitos os investimentos?
Acredito que o documento elaborado na época foi uma espécie de coluna vertebral que ajudou a cidade a manter um planejamento de longo prazo. Quando Medellín entendeu que tinha de ter um enfoque diferente, não em força, mas em inclusão social, tivemos de priorizar onde investir. No começo dos anos 2000, começamos a usar os indicadores da ONU para identificar as regiões com mais necessidades, com os índices mais baixos de desenvolvimento humano. Em 2003, começamos a executar uma política pública, os chamados Planos Urbanos Integrais, que direcionavam os investimentos para essas regiões. Fizemos intervenções onde as pessoas nunca tinham tido acesso a serviços. Levamos bibliotecas públicas, centros culturais, colégios, parques e corredores estratégicos de renovação comercial a esses lugares.
Como o governo se aproximou das comunidades?
Quando nomeamos a ministra conselheira para a paz, em 1991, o nome de uma mulher era estratégico. Acredito que as mulheres estão mais capacitadas em termos de resolução de conflitos do que nós, os homens. Outra coisa foi que nomeamos Maria Ema Gonzalez, uma comunicadora social. Ela percebeu que nossa maior necessidade era comunicativa: ouvir de maneira estratégica pessoas que nunca tinham sido ouvidas no processo de planejamento. Acredito que desenvolvemos uma das estratégias sociais de escuta sistemática mais importantes que já houve no país. Ouvir o outro foi inovador e sui generis para Medellín. Vocês levaram isso a níveis até mais avançados, com o Orçamento Participativo (OP).
Sociedades como as nossas têm de fazer exercícios de educação profundos para construir novas masculinidades que entendam que os homens são iguais às mulheres. Não em termos de identidade, mas em termos de direitos fundamentais e oportunidades.
SANTIAGO URIBE ROCHA
Antropólogo
A desigualdade social é um problema comum a cidades brasileiras. Qual é o papel do Estado na promoção de uma sociedade mais igualitária?
É ser uma plataforma que permita, a partir transformações econômica, social e educativa, a inclusão social. Mas o problema de desigualdade e da segregação é da sociedade como um todo. Não adianta que os entes públicos foquem esforços enormes para tratar da desigualdade se nós, como sociedade, não atacarmos isso. Sempre me perguntam qual vai ser, no futuro, o indicativo de que Medellín atingiu a integração econômica e social – porque hoje somos uma cidade dividida em duas, uma no sul, que está bem, e uma no norte, com menos privilégios e serviços. Digo que quando uma menina do sul disser que vai na casa do namorado que mora na Comuna 13 (bairro com histórico de violência) e ninguém se assustar, termos o indicador de inclusão social. Teremos rompido barreiras. É preciso uma transformação cultural. O poder público tem de ser plataforma para isso.
Medellín direcionou recursos públicos para comunidades carentes, melhorando infraestrutura, transporte e acesso à educação nessas regiões. Em tempos de crise econômica, como é possível fazer esses investimentos?
Uma das primeiras coisas que temos de entender é que, quando Medellín começou a transformação, não era uma cidade rica. Estava em uma crise profunda, econômica inclusive. O que deu origem à grande transformação foi construir, com diálogo social, uma plataforma de planejamento para o futuro da cidade. Os momentos de crise são os mais apropriados para construir esse diálogo e, a partir dele, tomar as decisões para desenvolver a transformação. Não é porque se tem crise que se deve perder a esperança. Se deixamos passar a crise, deixamos passar uma grande oportunidade.
O principal problema de Medellín, 20 anos atrás, era o alto índice de homicídios...
Essa era uma das manifestações do problema. Temos uma sociedade muito parecida com a de vocês (brasileiros), com herança colonial, arraigada em uma hierarquia social de classe, com uma segregação socioeconômica e espacial. Temos de empenhar as sociedades latino-americanas em busca da redução da desigualdade. Entre as 50 cidades mais violentas do mundo, 42 estão na América Latina. Infelizmente, Porto Alegre faz parte dessa lista (ocupa a 39ª posição). Todas têm indicadores sociais opressores. A violência não é outra coisa se não uma manifestação desse problema maior.
Qual é o principal desafio de Medellín atualmente?
Reduzir a desigualdade social. É importantíssimo dar continuidade às políticas públicas. Porque, com as mudanças nas administrações, sempre há risco que parem. Em todo o mundo é assim. Infelizmente estamos tendo líderes políticos que querem o poder pelo poder, e o serviço público requer uma vocação de entrega pela cidadania. Precisamos de líderes que entendam que devem chegar ao poder para serem servidores públicos.
Como a cidade trata as questões de segurança?
Hoje temos um enfoque diferente da linha que se vinha levando durante vários anos. É mais tradicional, com o uso da força. Sou um dos partidários de que o tema da segurança seja tratado com enfoque de prevenção. Abrir diálogo, dar oportunidade de inclusão. O uso da força deveria ter um papel cada vez menos preponderante. A segurança por meio da força legitima a violência. Pessoalmente, acredito que a prevenção é o caminho mais adequado. Mas, entre os políticos de hoje, há quem acredite que se tenha de voltar aos meios tradicionais. Os indicadores mostram que dá menos resultado e toma muito tempo.
Temos de nos perguntar quais são as raízes estruturais da violência. Por que cidadãos exercem a violência? Eles não vieram de outro planeta e são violentos porque vêm destinados a isso. São as próprias sociedades que criam a violência.
SANTIAGO URIBE ROCHA
Antropólogo
No ano passado, ocorreu uma intervenção militar no Rio de Janeiro, com o objetivo de reduzir a criminalidade. O que se viu foi um aumento nos indicadores de letalidade violenta, com mais de 500 mortes, e um recorde no número de homicídios por intervenção policial. É possível acabar com a violência com uma abordagem violenta?
Estou seguro que não. Vivi na África do Sul quando Mandela era presidente, trabalhei com ele. Temos encontrado evidências claras, a partir de estudos, de que violência repete violência. Não há sociedades violentas de famílias pacíficas. Acho que não temos nos perguntado: será que nossas famílias são violentas em essência, e que replicamos no público sociedades violentas? Até que não comecemos a construir famílias e ambientes pacíficos e protetores, dificilmente vamos ter sociedades pacíficas. A violência não ajuda a transformar uma sociedade, e muito menos uma família. E o que acontece em casa é o que replicamos no espaço público, que é a cidade.
No Brasil, a falta de policiamento é uma das principais críticas da população. Qual é o papel da polícia em uma cultura de paz?
A polícia devia ser uma força civil comprometida com outro tipo de necessidade, mais educativa, de formação, acompanhamento e prevenção. Deveria encontrar um jeito diferente de exercer a autoridade, mais pelo respeito e pelo reconhecimento dos cidadãos do que pela força. Cada vez mais deveríamos tender a desarmar as forças de segurança e torná-las forças mais civis, de controle e acompanhamento da sociedade e dos cidadãos. Mas isso vai levar um tempo. De fato, as orientações políticas, agora, vão ao contrário disso, com Jair Bolsonaro no Brasil, Donald Trump nos EUA e outros. Acredito que o que fazem é gerar mais violência, de formas mais agressivas. Temos de nos perguntar quais são as raízes estruturais da violência. Por que os cidadãos, nossos irmãos, pessoas da nossa cidade, acabam exercendo a violência por qualquer motivo que seja? Eles não vieram em uma nave espacial, em um óvni, de outro planeta, e são violentos porque vêm destinados a isso. São as próprias sociedades que criam a violência. E enquanto não nos fizermos essa pergunta, não só não vamos resolver, como vamos querer eliminá-los, inclusive através do extermínio. Mas não vamos eliminar a causa estrutural, e assim sempre vão emergir novas formas de violência.
Por que a resposta violenta à violência tem tanto apelo junto às pessoas?
O que é atrativo é o poder, não a violência. E a violência, especialmente através das armas, é um mecanismo de acesso ao poder. O poder sobre o outro, para controlar a vida do outro, o espaço do outro, os lugares do outro. Armas são um meio para ter poder. E o poder exercido pela violência é a pior droga da humanidade. É a droga mais perigosa, inclusive quando se chega a ela pelas vias democráticas.
Quais são os riscos da banalização da violência?
Tornar a violência natural é perigoso porque lhe dá um lugar na cultura. E uma vez que se assume isso como normal é difícil fazer mudanças culturais. Leva décadas. A única maneira de mudar é com educação e formação cultural e cidadã, e leva gerações para fazer transformações.
O que é atrativo é o poder, não a violência. E a violência, especialmente através das armas, é um mecanismo de acesso ao poder. o poder sobre o outro, para controlar a vida do outro, o espaço do outro.
SANTIAGO URIBE ROCHA
Antropólogo
Brasil e Colômbia estão entre os países que mais matam mulheres. Como a Colômbia tem enfrentado a violência de gênero?
Só recentemente começamos a entender a delicadeza desse problema, e estamos começando a desenhar políticas públicas para evitar o feminicídio. Sociedades machistas como as nossas são onde a violência contra a mulher é mais fácil de ser vista, porque os lugares onde a autoridade se exerce pela força são onde a mulher é mais propensa a ser a ser vítima. Tem a ver com o imaginário de masculinidade que temos. Masculinidades que acreditam que têm direitos e privilégios sobre a mulher e que, com todo o respeito, parecem do tempo das cavernas. Sociedades como as nossas têm de fazer exercícios de educação profundos para construir novas masculinidades que entendam que os homens são iguais às mulheres. Não em termos de identidade, mas em termos de direitos fundamentais e oportunidades.
A corrupção é um problema estrutural na política brasileira. Como combatê-la?
Como combater a corrupção? (Risos.) Para responder isso, tem de fazer um doutorado... Não só no Brasil, na Colômbia também, e acredito que em todo o mundo. Há um grande mestre, Antannas Mockus (matemático, filósofo e educador, prefeito de Bogotá por dois mandatos) que nos ensinou que o público é sagrado. Acho que problema da corrupção tem a ver com termos privilegiado os interesses privados sobre os coletivos. Aí é muito fácil ter corrupção, porque seu objetivo fundamental é o lucro individual e pessoal em cima do interesse coletivo. As cidades e nações têm de retornar ao seu princípio fundamental, que é entender que somos coletivos. O que ocorre é que nas últimas décadas nossa formação tem sido sempre direcionada a primar o individual sobre o coletivo, e claro que aí emerge a corrupção, inclusive naturalizada, e torna-se cotidiana.
Parece que as mudanças necessárias são difíceis de se fazer.
As coisas mais importantes da vida são difíceis. Mas precisamos combater a corrupção antes que ela termine tendo um impacto ainda mais negativo sobre as culturas das sociedades.
O Brasil vive um momento de polarização política. Como superar as diferenças para construir uma nação que cresça e enfrente as adversidades sem violência?
O primeiro problema não é a polarização política, mas a polarização social. Não nos demos conta que geramos sociedades extremamente segregadas. A mesma coisa acontece na Colômbia: todos acreditam que a polarização política é um problema, e é parte de uma problema maior, que é que temos gerado sociedades divididas. E o que vamos obter disso são políticas extremas, que não vão ao encontro da criação de confiança, mas de divisões e de luta para exercer o poder. É um tema delicado e complexo, que nos toma muita energia para entender, porque é muito fácil responder à polarização com o ódio. Mas é só a partir de maneiras mais afetivas de se aproximar do outro, de aceitá-lo como ele é, que vamos construir pontes que reivindiquem a integração. Temos que construir sociedades integradas. Se criamos sociedades para sentir que uns são melhores do que outros e têm mais privilégios do que outros, se nossas famílias seguem replicando que há alguns que têm mais direitos que outros, teremos sociedades divididas que jamais deixarão de ser um fracasso.