A presença de militares no primeiro escalão e o discurso de exaltação às Forças Armadas por parte do presidente eleito Jair Bolsonaro não trazem risco à democracia, na visão do ex-ministro da Defesa (a quem as Forças Armadas são subordinadas), Aldo Rebelo (SD). Para ele, a garantia do funcionamento das instituições brasileiras está acima de qualquer opinião pessoal, mesmo que seja a de um presidente da República. Porém, Rebelo acredita que o clima de enfrentamento com o Congresso trará dificuldades para Bolsonaro aprovar temas polêmicos, como as privatizações e a reforma da Previdência. Integrante do Partido Comunista do Brasil (PC do B) durante 40 anos, Rebelo esteve à frente da interlocução do governo Lula com o Legislativo e, também, dos ministérios dos Esportes e da Ciência, Tecnologia e Inovação. Deputado federal por seis mandatos, presidiu a Câmara entre 2005 e 2007. Atualmente, é chefe da Casa Civil do governo do Estado de São Paulo.
Pela primeira vez em mais de 70 anos, um militar chegou ao poder no país pelo voto. Qual deverá ser o papel das Forças Armadas no futuro governo?
Este não será um governo das Forças Armadas. O presidente eleito tem muito mais tempo como deputado do que como militar. Ficou alguns anos, quando saiu do posto de capitão, no início da carreira. Entrou no Congresso em 1991, e permanece lá até hoje. Portanto, é um político com longa trajetória no Parlamento, sem se constituir uma liderança dos militares. Acho que as Forças Armadas vão cumprir o mesmo papel que cumpriram nos demais governos civis. Isso pode ser visto como uma coisa diferente, porque oficiais da reserva e generais terão algum protagonismo. Mas, na reserva, eles também não representam as Forças Armadas. São cidadãos que tiveram carreira militar e que agora têm tanto direito quanto os demais de participar da vida política do país.
O protagonismo militar, aliado ao discurso de Bolsonaro, que nega a existência da ditadura e contemporiza torturas contra civis entre 1964 e 1985, pode trazer risco à democracia?
Não creio, porque esse não é o pensamento das Forças Armadas. Há muitos civis que pensam igual a Bolsonaro, e isso não tem maiores consequências. O funcionamento das instituições do país está acima das opiniões pessoais ou de declarações intempestivas, mesmo que venham do presidente eleito. E, além do mais, há a possibilidade dele de responder politicamente pelas suas declarações.
Em uma entrevista, antes da eleição, o vice-presidente eleito, general Hamilton Mourão, admitiu a hipótese de autogolpe em caso de "anarquia". O senhor teme essa possibilidade?
Não. Aliás, quando um certo deputado declarou que bastava um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal (Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, reeleito deputado federal por São Paulo), acho que aquilo pode ter também a função de ato falho. Não vejo na alta oficialidade das Forças Armadas nenhuma predisposição, desejo ou doutrina que justifique ameaça às instituições democráticas do país. Não são as Forças Armadas que estão enviando policiais para apreender material nas universidades. Não é das Forças Armadas que estão partindo ameaças à democracia. É de setores do Judiciário, principalmente do primeiro grau.
Qual seria a intenção por trás dessas ameaças?
Acho que trata-se de uma geração de juízes que não viveu o período autoritário. Mesmo durante a ditadura havia um cuidado em violar o espaço das universidades. Uma parte dos juízes perdeu a noção de seu compromisso com a democracia. Então eles têm um compromisso com seus próprios juízos, com seus próprios valores e crenças, e não com a democracia. Mas a sociedade está protegida, porque isso chegou no Supremo e caiu. O STF revogou tudo isso e pôs um limite a essas ações do Judiciário de primeiro grau, o que mostra que há no país recursos e garantias aos direitos democráticos.
Uma parte dos juízes perdeu a noção de seu compromisso com a democracia. Então eles têm um compromisso com seus próprios juízos, com seus próprios valores e crenças, e não com a democracia. Mas a sociedade está protegida, porque isso chegou no Supremo e caiu.
ALDO REBELO
Ex-ministro
Há o entendimento de que a pasta da Defesa deveria ser ocupada por civis, tradição quebrada no governo Temer. Bolsonaro chegou a anunciar um militar para a função, o general Augusto Heleno, mas recuou. Como o senhor avalia essa questão?
Acho que não cabe fazer distinções entre militares e civis para a função. É preciso cobrar de todos o respeito à Constituição e aos interesses nacionais. A presença dos militares na política, de oficiais da reserva ocupando ministérios, tem de estar voltada para cumprir a Constituição. Esse é o único critério a ser observado.
O Exército está à frente da intervenção militar no Rio de Janeiro e da crise migratória de venezuelanos em Roraima. Há risco de banalização do uso das Forças Armadas em ações de segurança pública?
É uma ilusão achar que as Forças Armadas vão suprir as deficiências dos Estados na segurança pública. Essa é uma atribuição constitucional dos Estados, executada pelas polícias Civil e Militar, que têm o treinamento de inteligência e o conhecimento da geografia do crime. As Forças Armadas podem atuar em situações emergenciais, como grandes eventos. Banalizar seu uso é um risco para a segurança pública e desgasta os militares, porque essa não é sua função.
O senhor ficou quase um ano à frente do Ministério da Defesa. Como foi a transição entre a desconfiança por um comunista assumir a pasta e sua aceitação pelos militares?
Não creio que tenha havido desconfiança, porque havia uma relação de cooperação entre as Forças Armadas e o Congresso, quando ocupei a Presidência da Câmara e a Presidência da Comissão de Defesa Nacional e de Relações Exteriores. Eu tinha proximidade com o tema da Defesa, e acho que, quando assumi o Ministério, isso gerou uma identificação entre minha agenda como parlamentar, de defesa dos interesses nacionais, e a valorização da Defesa nos meus mandatos.
O próximo governo terá de enfrentar a reforma da Previdência. Os militares são resistentes a mudanças profundas em suas regras. Como o tema deverá ser enfrentado?
A situação dos militares e das Forças Armadas deve ser tratada de forma diferenciada. O militar é o único cidadão brasileiro que não tem sequer direito ao instituto do habeas corpus. O militar não recebe adicional noturno e de insalubridade, hora extra, fundo de garantia por tempo de serviço, não pode ter outra função. Ou seja, não tem os direitos dos demais trabalhadores e servidores públicos.
A Câmara teve metade das cadeiras renovadas e terá mais partidos. Como o senhor projeta o funcionamento da Casa e a interlocução com o Planalto?
Prevejo um horizonte de muitas dificuldades para o novo governo, que vai construindo sua imagem em uma espécie de confronto contra o mundo político e de crítica às relações com o Legislativo. Os deputados eleitos pelo partido do presidente da República são inexperientes. Os projetos do governo, como a reforma da Previdência, terão de ser negociados com o Congresso, mas o (futuro) governo diz que não vai negociar com a oposição. Então vai negociar com quem? Até inimigos precisam sentar para negociar.
O senhor mantém boa relação com o atual presidente do congresso, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que quer permanecer no cargo. acredita que esse seria um bom caminho?
Ele tem sido um bom presidente e tem se esforçado para ser um interlocutor válido para o Poder Legislativo, para o presidente da República e também para a oposição. É bom para o país que haja um presidente com essa vocação.
Bolsonaro critica o que chama de "toma lá, dá cá" da política e as negociações em troca de apoio. O senhor foi presidente da Câmara e atuou do outro lado, como articulador do governo Lula. Como se dava a negociação para a aprovação de projetos de interesse do governo?
Essa pergunta insinua que só se pode governar desse jeito. Fui ministro de quatro pastas, presidente da Câmara, relator de matérias controversas, como o Código Florestal, e consegui aprová-las sem precisar prometer um cafezinho para ninguém. Só com base no interesse público, no interesse nacional. Agora, se alguém pergunta: "Quem apoia o governo tem de participar do governo?". Sim. Como você vai apoiar o governo sem participar dele? Vai ser fiador de uma coisa da qual você não participa? Não. Se o presidente da República, no presidencialismo de coalizão, quer apoio partidário, vai ter de colher a participação dos partidos no governo. Nós conhecemos o desfecho recente de quem tentou fazer outro caminho. Quando se tentou governar o Brasil em confronto com o Congresso, a coisa não terminou bem (referência ao impeachment de Dilma Rousseff).
O senhor deixou o PC do B após 40 anos, foi para o PSB e, alguns meses depois, desembarcou no Solidariedade. Por que essas mudanças?
Deixei uma agenda que tinha mudado desde quando entrei no PC do B. A nossa preocupação era com a ideologia, com as ideias que podem mudar a realidade, o país e o mundo. E vivi suficientemente para ver setores da esquerda substituírem a ideologia pela biologia, ou seja, pelas características biológicas dos seres humanos. Mais importante do que a ideia, passou a ser o gênero, a raça, o traço biológico das pessoas. Eu já não me adaptava a essa agenda, por isso fui buscar outro caminho. No PSB, não tive a possibilidade de ter uma convivência maior porque cogitaram a candidatura do ex-ministro Joaquim Barbosa, com a qual eu não concordava. Recebi um convite do Solidariedade para ser pré-candidato à Presidência da República, fiz essa tentativa, mas não consegui apoio partidário e não quis concorrer a outro cargo.
Há uma divisão grande dentro do futuro governo. vai privatizar a Petrobras e a Eletrobras? duvido que os militares concordem. O mesmo se pode dizer da reforma da previdência.
ALDO REBELO
Ex-ministro
Na sua opinião, como deveria ser conduzido o debate sobre gênero, raça e políticas afirmativas, já que o senhor não concorda com a agenda proposta pela esquerda atual?
As políticas afirmativas compõem o programa dos interesses e dos direitos democráticos, que é um programa importante e válido, mas a centralidade do país é a questão nacional, é voltar a crescer, se desenvolver, parar o processo de desindustrialização que está em curso. Infelizmente, o que foi discutido (durante a campanha eleitoral) foi uma agenda de comportamento defendida por um lado e atacada pelo outro. O debate sobre o caminho do país, que interessa a todos, ficou marginalizado.
O PC do B deveria se descolar do PT?
Há muito tempo. Acho que a agenda do PC do B se aproximou demais da agenda do PT e se confundiu com ela. O PC do B sempre foi um partido que colocou as ideias e a questão nacional como algo importante. E foi perdendo esse discurso. Foi assumindo mais essa agenda dos costumes. Mas isso é um direito deles.
O senhor chegou ao Solidariedade como pré-candidato à Presidência, mas o partido acabou apoiando Geraldo Alckmin. A aliança foi um equívoco?
Claro que foi. Eles próprios assumem isso. Podiam ter apoiado o Ciro Gomes. Aliás, no fim das contas, acho que nem votaram no Geraldo Alckmin. Terminaram votando no próprio Ciro, outros votaram no Haddad. Essa desorientação foi ruim para o partido e contribuiu para o resultado, que não foi o esperado. Eu tomei posição. No primeiro turno, votei no Ciro Gomes e, no segundo, no Haddad.
Se o senhor tivesse mantido sua candidatura, que propostas faria para o Brasil voltar a crescer?
O país voltará a crescer, em primeiro lugar, se recuperar os investimentos públicos, que nós abandonamos, e os privados, que precisam da confiança empresarial. No Brasil, há um Estado esquizofrênico, que estimula e bloqueia o crescimento, o desenvolvimento e o investimento. Na área de infraestrutura, há obstáculos impostos por regulações, que impedem a hidrovia, a ferrovia, que a rodovia passe em determinadas áreas. A ferrovia transoceânica, para ser feita no Brasil, é quase impossível pela liberação das áreas por onde ela tem de passar. Não temos nem a confiança dos investidores privados, nem a disposição para o investimento público.
A centralidade do país é a questão nacional, é voltar a crescer, se desenvolver, parar o processo de desindustrialização que está em curso. Infelizmente, o que foi discutido (durante a campanha eleitoral) foi uma agenda de comportamento. O debate sobre o caminho do país, que interessa a todos, ficou marginalizado.
ALDO REBELO
Ex-ministro
O avanço da economia passaria por uma legislação ambiental diferente da atual?
Sim. Você levou mais tempo para fazer a segunda pista do Aeroporto de Brasília do que para fazer a cidade de Brasília. A duplicação da BR-101, em Santa Catarina, ficou anos bloqueada em uma certa área por decisão dos órgãos ambientais. Isso não ajudou a proteger o meio ambiente. Quando queriam proibir a Cuiabá-Santarém (BR-163), eu dizia: "Deixem fazer rodovia, porque isso vai dar acesso à fiscalização. Vai reduzir os danos ambientais porque o Estado vai estar presente". Mas achavam que não. O Linhão de Tucuruí (linha de transmissão de energia) não conseguiu chegar até Roraima, porque uma ONG e a Funai disseram que prejudicaria os índios de uma certa área, quando isso é absolutamente inverídico.
O senhor foi o relator do projeto do Código Florestal, e críticos afirmam que o desmatamento da Amazônia aumentou após sua aprovação. Na prática, o senhor ficou satisfeito com o resultado da lei?
Muito satisfeito. Nossas metas podem ser cumpridas porque o Código Florestal garante a proteção da natureza. O desmatamento da Amazônia não tem nada a ver com a lei, assim como o assalto a banco não tem a ver com o Código Penal. Agora, as ONGs financiadas pelo dinheiro europeu, que transformaram em meio de vida a profissão de falar mal do Brasil lá fora, fazem qualquer coisa para ganhar dinheiro às custas do país e da notícia de que a legislação favorece o desmatamento.
O presidente eleito cogitou unir as pastas da Agricultura e do Meio Ambiente. O senhor acha que ações ambientais ficariam em risco caso a fusão ocorra?
Esse é um debate falso. Não se trata de juntar ou não Meio Ambiente com Agricultura. Na Inglaterra – e na maioria dos países da Europa –, essas duas pastas estão juntas. O que se trata é o seguinte: o Brasil precisa proteger a agricultura e o meio ambiente. Não pode subestimar e nem relativizar nenhuma das duas tarefas. Se vão estar juntos ou separados, a discussão é secundária. Você pode deixar separado e esvaziar a agenda ambiental ou juntar e fortalecer essa agenda.
A linha agora (do futuro governo) é de confronto com os árabes. Isso precisa ser observado. Eu prevejo dificuldades, porque o presidente e sua equipe de governo, com uma exceção ou outra, são muito inexperientes.
ALDO REBELO
Ex-ministro
Como o senhor acha que deve se portar a oposição no governo Bolsonaro?
A oposição tem de ter, em primeiro lugar, um papel de fiscalização. Vai enfrentar um governo com um discurso ambíguo sobre a questão democrática, sobre a questão nacional e sobre os direitos do povo. Ora sinaliza compromisso com a democracia, ora insatisfação com certos desconfortos da democracia para quem está no governo. Quem está lá vai ser sempre criticado, às vezes injustamente, pela imprensa, pelo Congresso. A democracia não é o reino da justiça. Existe a justiça exatamente como instrumento da democracia. Tem ainda a questão do interesse nacional. Vai ser um governo para entregar o país, para vender o patrimônio público, a Petrobras, a Eletrobras, para enfraquecer a ciência, a tecnologia, as Forças Armadas? Vai se submeter aos interesses de um vizinho forte e influente como os EUA ou vai ser independente? E os direitos dos pobres? A oposição vai ter de fiscalizar.
Sua expectativa é otimista?
Bolsonaro precisa, primeiro, compor o governo, encontrar um rumo. Ele enfrentou, até agora, a fase romântica, que é até a eleição, quando tudo é bonito. Ele tinha um objetivo que era derrotar seu adversário e reunir todo mundo em torno disso. Agora tem de tomar conta da casa, dizer o que vai fazer. Por isso as dificuldades já começaram. Acho que há uma divisão grande dentro do (futuro) governo entre os grupos (de apoiadores) do Rio de Janeiro e de São Paulo, mais voltados ao mercado e aos interesses privados, e o grupo de Brasília, que é o dos generais e dos oficiais da reserva, preocupados com desenvolvimento e infraestrutura. Essas áreas já estão em conflito. Vai privatizar a Petrobras e a Eletrobras? Duvido que os militares concordem. O mesmo se pode dizer da reforma da Previdência: a posição dos militares é tão dura quanto a posição da esquerda, do PT, do PC do B. A linha agora é de confronto com os árabes. Isso precisa ser observado. Eu prevejo dificuldades, porque o presidente e sua equipe de governo, com uma exceção ou outra, são muito inexperientes.