Um dos aspectos fascinantes da trajetória de Jair Bolsonaro é ilustrar como visões de mundo estigmatizadas e mantidas nas margens do debate político podem, quando o clima é favorável, tornar-se aceitáveis e até hegemônicas. Por muito tempo, ele encarnou no parlamento a figura de arauto solitário de uma ordem derrotada. Na segunda metade da década de 1980, após 20 anos de ditadura, o país havia abraçado um novo regime – marcado por pluralismo, liberdade de expressão política, laicidade, garantia de direitos, liberalização dos costumes, ativismo. Nesse cenário hostil, Bolsonaro manteve-se firme como o fiel defensor de um ideário que entrara em maré baixa.
Mas a maré virou. Os anos como deputado barulhento mas pouco efetivo, que apresentou mais de 160 projetos mas só conseguiu aprovar dois, foram recompensados em 2018 pela sua transformação no "mito" capaz de arrematar 49 milhões de votos, quase vencendo a eleição no primeiro turno. No segundo, os 57,7 milhões de votos confirmaram seu favoritismo para ser eleito o 38º presidente da República. Muitos de seus partidários dizem que ele mudou, mas talvez seja mais certo dizer que quem mudou foi o Brasil – e que o Brasil ficou mais parecido com Bolsonaro.
Depois de três décadas, o regime estabelecido em 1985 afundou numa grave crise – econômica, política, ética, social. Antes fora de moda, as ideias de Bolsonaro – demonização das esquerdas, militares no poder, carta branca para policiais, crítica aos direitos humanos, conservadorismo moral e mistura de política com religião – passaram a ser encaradas como solução por parte maciça dos brasileiros.
Bolsonaro moldou seus referenciais durante o regime militar, no qual viveu parte da infância, a adolescência e o início da idade adulta. Ele nasceu em 1955, em Glicério, no interior de São Paulo, em uma família com raízes na Itália e na Alemanha. O pai, o dentista prático Percy Bolsonaro, chegou a ser fichado e monitorado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão repressivo da ditadura, por suas atividades políticas e por uma suspeita de exercício ilegal de profissão (medicina, odontologia ou farmácia), da qual acabou inocentado. Era um boêmio que gostava de beber. A mãe do presidenciável, Olinda Bonturi Bolsonaro, contou em entrevista à revista Crescer que Jair "não tinha muita intimidade" com o pai. Ela afirma ter assentado a criação do filho em "amor, muito amor":
– Não queria que fosse uma criança estúpida, bruta, falasse besteira.
Bolsonaro costuma associar a atração que sentiu pela carreira militar a um dos episódios marcantes da ditadura. Segundo ele, quando tinha 15 anos e vivia em Eldorado Paulista, ajudou a guiar soldados que foram à cidade à caça de Carlos Lamarca, capitão que havia desertado do Exército para comandar uma guerrilha. A região onde vivia o jovem Jair testemunhou 41 dias de cerco, que culminaram na fuga de Lamarca (o guerrilheiro seria morto no ano seguinte, 1971, no interior da Bahia).
Esse foi o contexto em que Bolsonaro ingressou nas Forças Armadas, onde teve formação na Escola Preparatória de Cadetes do Exército, na Academia Militar das Agulhas Negras e na Brigada de Infantaria Paraquedista, da qual saiu com elogios oficiais por "autoconfiança, combatividade, coragem, idealismo" e por ser "indivíduo de ideias e de juízo, iniciativa e vigor físico". Mais tarde, cursaria a Escola de Educação Física do Exército e a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais. Serviu em diferentes unidades, no Rio de Janeiro e no Mato Grosso do Sul.
Apesar de Bolsonaro se declarar um apaixonado defensor do Exército e do regime militar, esse amor nem sempre foi correspondido. A passagem dele pelos quartéis foi conturbada, e o general Ernesto Geisel, presidente de 1974 a 1979, chegou a defini-lo como "mau militar". Em 1983, tenente, foi alvo de uma investigação interna por ter-se lançado ao garimpo de ouro com colegas de farda. Na documentação referente ao caso, é definido como alguém com "excessiva ambição em realizar-se financeira e economicamente". Consultado no processo, o coronel Carlos Alfredo Pellegrino, superior de Bolsonaro, disse que ele "tinha permanentemente a intenção de liderar os oficiais subalternos, no que foi sempre repelido, tanto em razão do tratamento agressivo dispensado a seus camaradas, como pela falta de lógica, racionalidade e equilíbrio na apresentação de seus argumentos". Bolsonaro ganhou na caserna o apelido de "Cavalão".
Das bombas em quartéis à entrada na vida pública
O caso mais rumoroso em que se envolveu teve início quando já era capitão e foi mandado para o xadrez por ter publicado na revista Veja um artigo reclamando do baixo soldo. No ano seguinte, em 1987, a mesma publicação revelou que Bolsonaro tinha um plano para explodir bombas em quartéis como protesto contra o arrocho salarial, publicando dois croquis que o capitão teria feito de locais onde seriam colocados os explosivos.
Abriu-se contra ele uma investigação por "atos que afetam a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe". Bolsonaro foi considerado culpado pelo Conselho de Justificação Militar, que apontou "desvio grave de personalidade" e "falta de coragem moral". O Superior Tribunal Militar considerando não ser possível comprovar que o croqui havia sido feito pelo capitão, inocentou-o. Laudos da Polícia Federal atestaram que a caligrafia dos croquis era, sem dúvida, do acusado.
Bolsonaro aproveitou a notoriedade obtida para entrar na política: elegeu-se vereador no Rio e deu baixa do Exército. Dedicou o mandato a defender causas militares, apresentando, por exemplo, um projeto que garantia gratuidade para a categoria no transporte público. Em 1990, após dois anos na Câmara Municipal, foi eleito deputado federal, pelo então PDC (Partido Democrata Cristão). Começou ali um período de 28 anos em Brasília, em um total de sete mandatos consecutivos, por nove partidos diferentes. A permanência mais longa foi no PP (2005-2016).
A tribuna do Congresso trouxe projeção nacional para Bolsonaro. Ele alcançou isso graças a uma habilidade ímpar para fazer declarações chocantes e se meter em polêmicas. Na seara comportamental, tornou-se famoso ao se posicionar contra os direitos LGBT+.
Na social, indispôs-se com negros, índios e feministas – é contra cotas raciais, demarcação de terras e ações do governo para garantir a igualdade salarial entre homens e mulheres. No campo político, gerou controvérsias ao defender o regime militar, a tortura e até mesmo o assassinato de adversários (em uma entrevista famosa, disse que era necessário matar “30 mil, começando por Fernando Henrique Cardoso”).
Essas posturas valeram-lhe dezenas de pedidos de cassação e três condenações por danos morais (praticados contra a deputada federal Maria do Rosário, contra quilombolas e contra homossexuais – Bolsonaro recorre das três sentenças), mas também foram essenciais para a construção de sua imagem como o "mito" – aquele que diz o que ninguém mais tem coragem de dizer.
Um aspecto decisivo para o sucesso de Bolsonaro junto ao eleitor diz respeito à segurança pública. Em um Brasil cansado de violência, cada vez mais a postura linha-dura que ele defende foi entrando em sintonia com o espírito do tempo. Diante do fracasso em conter o crime, o brasileiro foi ficando simpático a propostas ventiladas pelo candidato, como pena de morte, redução da maioridade penal, licença para a população se armar, castração química de estupradores, tolerância com policiais que matam em serviço e exclusão de criminosos do rol dos que podem aspirar a ter direitos humanos.
A faxina política e as sombras na biografia
Durante toda a carreira, Bolsonaro se notabilizou por desafiar as regras do regime vigente e por atacar ferozmente as esquerdas, características que o credenciaram a ser o escolhido do eleitor para encarnar, em 2018, o ódio ao sistema político, no geral, e ao PT, em particular.
O antipetismo fermentou no país devido ao envolvimento de caciques do partido em escândalos do naipe do mensalão e da Lava-Jato, o que levou o candidato do PSL a apresentar-se como um ficha limpa incorruptível que vai promover uma faxina na política.
Essa imagem conquistou o eleitorado, ainda que episódios da biografia de Bolsonaro possam gerar questionamentos. Nos tempos de PP, partido que teve o maior número de investigados pela Operação Lava-Jato, ele teria recebido da agremiação dinheiro sujo da JBS. Também ameaçam arranhar o verniz ético a acusação de manter uma funcionária fantasma em seu gabinete, o fato de embolsar o auxílio-moradia apesar de ter casa própria em Brasília e uma recente denúncia, investigada pelo TSE, de caixa 2 nesta campanha, para financiar uma onda de notícias falsas no WhatsApp.
A grande dúvida levantada sobre o candidato é se o Brasil está diante de alguém que ameaça a saúde da democracia. Ao longo dos anos, Bolsonaro empilhou declarações que alimentam esse temor. Nos últimos meses, no entanto, controlou e moderou o discurso, no que foi favorecido pelas circunstâncias inéditas desta campanha. Por causa do atentado de que foi vítima no começo de setembro, ele falou muito pouco e não foi a debates.
Continuou a evitar o confronto depois de ser liberado pelos médicos – pela primeira vez na história, um postulante à Presidência não terá debatido com seu oponente no segundo turno.
Nos últimos dias, porém, emergiram declarações dele e de um dos filhos (o presidenciável casou três vezes e teve cinco filhos, três deles políticos) que causaram alarme. Em uma palestra de julho, que veio a público agora, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) afirmou que bastariam um cabo e um soldado para fechar o STF. O próprio Jair Bolsonaro disse que vai acabar com o "coitadismo" de negros, mulheres, gays e nordestinos e, no domingo passado, em vídeo transmitido ao vivo, qualificou seus adversários políticos de "marginais vermelhos" que, sob seu governo, serão banidos do país ou irão para a cadeia.
– Petralhada, vai tudo vocês para a ponta da praia – discursou.
Na "ponta da praia", no litoral fluminense, localiza-se uma base da Marinha onde opositores foram executados durante a ditadura militar.