Localizado em um importante reduto da resistência negra e da origem do Carnaval em Porto Alegre, o Centro de Referência do Negro (CRN), fechado no início da pandemia, está interditado desde março de 2021 devido a suspeitas de danos estruturais. Com isso, as atividades que retornaram à modalidade presencial e seriam realizadas no local tiveram de ser transferidas. Sem um destino para o prédio, a comunidade negra está há mais de dois anos sem o que era para ser um espaço de referência.
— Era um ponto de encontro, um ponto de referência mesmo da comunidade. Vários grupos da comunidade negra com referência a estudo e cultura negra faziam as suas atividades nesse espaço. E isso pesa muito, porque nos fortaleciam esses encontros. É importante para os nossos jovens, para as nossas crianças, para a autoestima e para o crescimento intelectual, e também para o nosso povo ver que nós somos capazes de fazer várias coisas — lamenta Luciana Ayoola, integrante do sarau Sopapo Poético, que costumava ser realizado no CRN.
O Centro de Referência do Negro Nilo Feijó, inaugurado em 2016, era uma antiga reivindicação da comunidade negra desde os anos 1980 e deveria abrigar ouvidoria, para denúncias de casos de racismo e acompanhamento, biblioteca com acervo variado sobre o povo negro, espaços para atividades culturais, além de promover debates e palestras. A prefeitura não soube informar o ano e o histórico do edifício, mas a região foi escolhida por ter sido de resistência negra — onde, inclusive, nasceu o Carnaval da Capital; o primeiro bloco, o Areal da Baronesa, surgiu nas proximidades da Rua Baronesa do Gravataí. O edifício era, anteriormente, sede da Associação das Entidades Carnavalescas de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul (Aecpars).
Porém, desde sua criação, o Centro enfrenta dificuldades que comprometem as atividades idealizadas. A ouvidoria e a biblioteca, por exemplo, nunca funcionaram. “O Centro não tinha atividades permanentes, os espaços podiam ser ocupados por grupos para demandas específicas”, informou a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), responsável pelo CRN, em nota. “Não eram feitos atendimentos e encaminhamentos em decorrência de casos de racismo, por exemplo, esse serviço é prestado pelo Centro de Referência em Direitos Humanos. Não tinha uma biblioteca em funcionamento”, admite.
Demanda histórica
Para Carla Meinerz, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenadora do grupo de trabalho Histórias de Lutas Sociais dos Negros em Porto Alegre, é possível perceber que, historicamente, o passado atravessa o presente, e a cidade acaba deixando de construir espaços de referência para a comunidade negra. A pesquisadora lembra que, antes da pandemia, o espaço cultural era utilizado como um depósito e para campanhas de agasalho.
— É um espaço cultural, onde se realizam atividades culturais, mas não é visto assim, então, ali também fica como depósito para outras coisas. Não que não sejam necessárias, mas podemos analisar que sempre aquilo que é conquista da população negra, indígena, acaba sendo descuidado — afirma. — Infelizmente, o Centro agora está nessas condições precárias, de não uso, portanto, a comunidade fica sem um espaço.
O CRN fica na Avenida Ipiranga, 311, região do antigo Areal da Baronesa, caracterizado desde o século 19 pela presença majoritariamente negra, com destaque para o bairro Menino Deus e a Rua Marcílio Dias (atrás do CRN), explica Daniele Vieira, geógrafa, professora e pesquisadora dos antigos territórios negros. Inclusive, o trecho da via tinha outro nome: nas décadas de 1870 e 1880, chamava-se Rua dos Pretos Forros — isto é, ex-escravos que haviam conquistado alforria —, e a via e seu entorno eram ocupados por pessoas libertas. Do final do século 19 até 1940, passou a se chamar Rua 28 de Setembro, data em que foi promulgada a Lei do Ventre Livre.
— Se caracteriza ainda mais como logradouro negro, inclusive pelo nome das ruas — explica.
O espaço, portanto, está intimamente ligado à história da presença negra na cidade, visto que era uma área de resistência desde a época anterior à abolição da escravidão, e por estar cercado pelos antigos carnavais e clubes sociais negros.
— É extremamente simbólico que o Centro esteja sobre um antigo território negro porque se torna referência também da presença negra no espaço urbano e do que a região representava — ressalta Daniele. — Esse lugar onde está localizado o CRN se constitui num espaço de referência física e simbólica para a população negra de Porto Alegre, por toda a história que carrega, por isso a importância de mantê-lo neste espaço.
Atividades transferidas
Com o início da pandemia, o local foi fechado, e as atividades passaram a ser desenvolvidas remotamente. No entanto, quando as condições do prédio foram checadas, em março do ano passado, para o desenvolvimento de um novo projeto, foi detectada uma rachadura que poderia gerar comprometimento estrutural. De acordo com a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, as atividades que seriam realizadas no espaço, como palestras, encontros e workshops, seguem ocorrendo desde então em outras instituições que compõem o Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro. O sarau Sopapo Poético, por exemplo, continua com os seus encontros — que, no entanto, passaram a ocorrer mês sim, mês não, em vez de mensalmente, visto que se tornaram itinerantes, sendo necessário definir cada vez onde o evento será realizado.
Em uma lembrança compartilhada nas redes sociais, Luciana destaca a saudade do espaço. "Nós precisamos recuperar o CRN, nos tiraram o espaço e agora está se deteriorando, nenhuma reforma ou atividade, apenas esquecimento, descaso, destruição... a impossibilidade de seguir com os projetos tão importantes para a nossa história/cultura e necessários no combate ao racismo estrutural, tão presente no RS", desabafa a integrante do Sopapo Poético.
Esta não é a primeira vez que o prédio sofre com problemas estruturais. A mesma questão foi enfrentada antes da inauguração do Centro, que passou por uma reforma de três anos até ficar pronto. Apesar de o problema atual ter sido descoberto em março de 2021, a SMDS informou que o espaço será isolado nos próximos dias e será feito um laudo técnico das condições estruturais para indicar qual reforma precisa ser feita para garantir a segurança das pessoas.
— Demonstra que não são prioridade esses espaços destinados. Nunca se prioriza, enquanto política pública, e acaba se doando espaços precários. Isso acaba tendo um discurso oficial, “está precário, por isso que não tem” — avalia a professora Carla. — Há inclusive acordos internacionais que o país fez de investimento na história, na cultura africana, indígena, afro-brasileira, mas só é possível fazer isso investindo em espaços de cultura, educativos, e o que a gente vê é o contrário, é sempre uma precarização, um ataque ao que se tem.
— Me entristece ver que estamos nessa situação agora. Mas eu sinceramente acredito que isso vai se modificar, que vai ser percebida a importância desse espaço para o crescimento da nossa cidade mesmo, enquanto cultura, história, ascensão. Nós somos parte de Porto Alegre, do Rio Grande do Sul, do Brasil — ressalta Luciana.
Renovação
O projeto de pesquisa Oliveira Silveira, da UFRGS, chegou a ser procurado pela secretaria para auxiliar no desenvolvimento de um projeto de renovação do local em julho de 2021, buscando, entre outras ações, disponibilizar o acervo do poeta e um dos idealizadores do Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro. No entanto, de acordo com a professora Sátira Machado, coordenadora do projeto, desde a última reunião, não houve mais notícias concretas sobre o andamento do projeto.
A SMDS, por sua vez, ressalta que, para decidir o que será feito no prédio, é preciso ter as informações do laudo técnico, que a proposta segue dentro do projeto e que a Coordenação de Direitos de Igualdade Racial está em contato constante com os responsáveis.
De acordo com o secretário-adjunto da Cultura e vice-presidente do Conselho Municipal dos Direitos do Povo Negro, Clóvis Silva — que era coordenador do Gabinete do Povo Negro da prefeitura à época da inauguração do CRN —, o objetivo é retomar o espaço.
— Infelizmente, nos últimos anos, ele acabou meio que abandonado. Tinha um comitê gestor, e agora, o governo, através das secretarias de Cultura e de Desenvolvimento Social, está construindo uma força-tarefa, porque ele (CRN) não tem condições de uso hoje. Tem a questão da estrutura, do projeto elétrico, hidrossanitário, de segurança, que levam a um denominador comum: não tem como ninguém ocupar — admite.
De acordo com o secretário, o plano é definir uma entidade responsável pelo Centro e fortalecê-lo. Reuniões entre o governo e a sociedade civil já estão marcadas para esta semana.
— Queremos que não seja apenas um mero espaço de eventos. Dava para dizer: “enfeita e vamos tocar”, mas não, ali precisa de uma estrutura que parta do zero, não tem como pegar e fazer porque seria também negligência, tem de ter dignidade. Acreditamos na potência, pujança, para assim ser o espaço que a gente tem orgulho de dizer: “Aquele é o centro de referência, que tem como objetivo buscar parte da memória, da história, ser multiuso, ter feiras, exposições, plenárias, trabalhar o empreendedorismo, porque a localização geográfica dele dá conta — explica.
Para isso, a ideia é promover parcerias para acessar financiamentos que permitam também constituir a biblioteca e desenvolver a ouvidoria, tornando-se um equipamento sustentável e um local de troca e conhecimento — tudo isso por meio de uma ocupação qualificada, com intervenções visuais.
Silva atuava na prefeitura quando a ideia foi concebida, mas, posteriormente, deixou o governo. Ele atribui o atual estado do espaço ao desmantelamento contínuo:
— O que era uma secretaria com autonomia e orçamento virou secretaria adjunta. Nos governos Fogaça e Fortunati, havia autonomia, tanto é que conseguimos fazer isso. Depois, foi diminuída para uma coordenadoria. Quando foi pensado, tinha um staff, tinha toda uma estrutura. Não teve suporte econômico, o governo que estava não apoiou, não olhava.
Agora, busca-se recuperar o prejuízo e transformar o Centro em um bem do Estado, garantindo o acesso enquanto se respeitam os movimentos sociais.
— Meu sonho de consumo na área da política e da presença negra é que seja um centro de referência e de educação, que possa ter ali todo o legado, toda a contribuição do nosso saudoso Oliveira Silveira e tantas outras personalidades que fizeram a luta que tomou conta do Brasil — admite. — Nós acreditamos que é possível, nunca é tarde para recuperar.
Produção: Fernanda Polo