A vizinhança não é das mais bucólicas. A metros dali, o Grêmio manda seus jogos rodeado pelos casebres do bairro Humaitá. Para o outro lado, aviões passam sobre condomínios e hotéis da região do aeroporto Salgado Filho. Em meio a isso, no coração do Parque Mascarenhas de Moraes, na Zona Norte de Porto Alegre, uma cena digna de documentários do National Geographic ocorre ao vivo todos os dias. Basta os frequentadores interromperem o passeio e olharem para o lado.
Milhares – milhares mesmo – de garças brancas descobriram um local seguro no meio da metrópole e transformaram a vegetação local, geograficamente resguardada por um banhado, em um imenso ninhal. Enormes, com até 1,7 metro de envergadura, as garças se exibem, brigam, confraternizam, se desafiam contra o vento e alimentam seus filhotes. Não são os únicos habitantes dali. Acima delas, bandos de tapicurus – também chamados de maçaricos, em razão do bico fino e curvado – voam freneticamente de um lado para o outro. Enquanto a reportagem de GaúchaZH observa e fotografa o espetáculo em um entardecer de dia útil, uma mulher se aproxima:
– Vocês sabem o nome de todos eles? É que tem um ali embaixo muito engraçado. Parece um pinguinzinho...
Ela aponta para um atarracado socó dorminhoco. Esse, ganhou o apelido por ser um sujeito discreto, de hábitos tranquilos. Passa a maior parte do dia parado e se alimenta à noite, de peixes e rãs do banhado. Informada disso, a mulher sai faceira como se tivesse ganhado um prêmio. Sensação que o biólogo Glayson Bencke, ornitólogo do Museu de Ciências Naturais, no Jardim Botânico da Capital, tenta explicar.
– Observar aves é algo fascinante por vários fatores combinados, por isso atrai tantos amadores, pessoas que não são biólogas. Primeiro, porque a quantidade é quase inesgotável. Tu sempre vais encontrar coisas novas à medida em que avança. Segundo, porque não está sob teu controle. É o animal que decide se vai se mostrar ou não. Terceiro, por ser uma experiência multissensorial: tu observa o comportamento, o som, as variações da aparência conforme a idade. E tem ainda um desejo que todo mundo traz da infância, o de colecionar figurinhas.
Observar aves é algo fascinante por vários fatores combinados. Primeiro, porque a quantidade é quase inesgotável. Tu sempre vais encontrar novidades à medida em que avança. E tem um desejo que todo mundo traz da infância, o de colecionar figurinhas.
GLAYSON BENCKE
Biólogo e um dos diretores do COA
E Porto Alegre é uma cidade particularmente farta e interessante nas suas figurinhas aladas, o que faz dela um xodó para observadores. Há uma série de motivos: se trata de uma cidade arborizada em todos os seus bairros, fica entre dois biomas (o pampa e a mata atlântica) e apresenta regiões urbanas e rurais muito próximas, permitindo tanto a observação de aves migratórias e delicadas quanto as mais generalistas, que prosperam no ambiente urbano alheias ao barulho e à poluição.
Segundo o Clube de Observadores de Aves de Porto Alegre (COA), 278 espécies já deram as caras no céu porto-alegrense. Os primeiros registros são de 1914, quando observar pássaros ainda significava capturá-los e enviá-los a museus para estudos. Hoje, ser ecologicamente correta é um dos princípios da atividade. Um observador dedicado, conforme o COA, consegue observar 150 aves diferentes em Porto Alegre ao longo de um ano.
Observadores em rede
Em atividade desde a década 1970, o COA passou um tempo inativo, mas voltou a se organizar em 2009. Desde então, tem reuniões mensais no auditório do Jardim Botânico e promove passeios, cursos, oficinas, exposições e congressos. Sua próxima saída de campo será no dia 7, na Estação Experimental Agronômica da UFRGS em Eldorado do Sul. Ajudou, para esse retorno repaginado, a popularização do smartphone com câmera e a expansão dos bancos de dados de aves na internet, como o brasileiro WikiAves e o Xeno-canto – este, especializado em registros de sons de pássaros.
O mais popular deles é o eBird, projeto do renomado Laboratório de Ornitologia da Universidade de Cornell, fundado em 1915 em Ithaca, nos Estados Unidos, que conta com uma versão brasileira. Qualquer membro registrado pode adicionar fotos e sons dos pássaros visualizados em determinado local, criado "hotspots" de observação. No Parque Mascarenhas de Moraes, por exemplo, 123 espécies já deram as caras, alguns uma única vez, como o príncipe, passarinho uruguaio de plumagem vermelha e preta visto no local em setembro passado. Mas não é preciso ir longe: na Redenção, há 60 espécies catalogadas. No Parque Germânia, 57.
O eBird também promove os chamados "B Day", em que convoca todos os seus membros para observar e catalogar seus registros. A última edição foi em 19 de outubro, quando foram visualizadas 6.655 espécies, 290 no Rio Grande do Sul – mais de um quarto das registradas em todo o Brasil (1.092).
– Em um só dia, foram visualizados mais de 50% de todos as aves já vistas no mundo (cerca de 10 mil). Isso mostra que, para observar, basta ter boa vontade e prestar atenção – conta o presidente do COA, Roberto Luiz Dall'Agnol.
Pokemons de verdade
Quem embarcou na moda do jogo Pokemon Go, desde 2016, deve ter percebido semelhanças entre a febre virtual e esta reportagem. Não é por acaso: o jogo foi inspirado em observação de aves. Uma das características do jogo, por exemplo, é que os monstrinhos geolocalizáveis não são vistos sempre da mesma forma, eles evoluem. Na observação de aves, é a mesmíssima coisa: observar uma garça é uma coisa, observar ela com as penas do dorso em forma de leque e a face verde-maçã – comportamento típico do acasalamento – é outra.
Os benefícios aos participantes também são parecidos. Ambos estimulam passeios ao ar livre, viagens de exploração para "obter" novos exemplares e aproximação com outros colecionadores. Em janeiro desse ano, a orla do Guaíba reuniu 20 mil caçadores de Pokemons em um Safari. Se tivessem binóculos em vez de celulares, poderiam ter visualizado 22 aves, segundo o eBird. Outro fator aproxima os dois: a busca por exemplares raros – no jargão dos observadores, o encontro com um "lifer":
– O grande prêmio para um observador é um lifer. Uma ave com que, provavelmente, ele só vá deparar uma vez na vida – explica Glayson Bencke, do Museu de Ciências Naturais e também um dos diretores do COA.