Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Aos três de novembro do ano da graça de 2019, madrugada, o sono encalha nos baixios de preocupações variadas.O que inquieta é o bulício... Eu ia dizer de certos “filhos da pátria”, mas as mães desses que me perdoem, nada tem a ver com o caso. Os que aí estão sem dúvida carecem de maternidade. Tivessem progenitora, de vida difícil ou não, seriam gente. E não são.
O poeta e psicanalista Celso Gutfreind saberia citar Winnicott nesse trecho da prosa, mas é muito tarde, telefonar a ele nesse horário poderia assustá-lo, à semelhança de um cão à espreita e que surpreende em momento de divagação. Por mais inocente e cândido que fosse o cão. Mas é certo que concordaria, voltando ao amor materno, que é este fundamental ao amadurecimento de um bebê possibilitando-o tornar-se um ser adulto e responsável.
O que fazem com a minha terra os insanos? Mamam os rios, as florestas, o mar, o futuro, municiados pela lei única da ganância, num arremedo de Lavoisier no qual nada se cria e tudo se transforma em lama, cinzas, óleo, desesperança?
Agora são os sabiás que não me deixam dormir.
Os sabiás acordam cada vez mais cedo.
Da minha janela não avisto a Foz do Rio Anil, não estou em São Luís do Maranhão, onde calmo e impávido faz-se de estátua Gonçalves Dias, no Largo dos Amores. Tenho cá os meus – amores – e vivo em Porto Alegre, mas nos arredores tenho também palmeiras, onde canta o sabiá.
– E como o canta o sabiá! As aves, que aqui gorjeiam, não gorjeiam como lá. Antecipam-se, desajustados despertadores.
Instigado pelo fenômeno observado na cidade de São Paulo, o ecologista Sandro Von Matter criou o projeto a “Hora do Sabiá”. Quase 2000 voluntários responderam duas perguntas muito simples – a que horas os sabiás começam a cantar? E quando param? Demonstrou-se que as aves da capital começam a cantar em média cinco horas antes do que as do interior e estas, interioranas, cessam a cantoria, em média, quatro horas antes dos sabiás da capital. Ficou evidente, sendo da mesma espécie, um desvio comportamental entre os parentes. O que estaria afetando a biologia e o comportamento dos sabiás-laranjeira metropolitanos? O trânsito, o barulho provocado pelos carros. A poluição sonora.
O sabiá-laranjeira (Turdus rufiventris) é a mais conhecida das espécies brasileiras, e seu canto inspirou, além de Gonçalves Dias com o seu poema Canção do Exílio, gente tal qual Guimarães Rosa, Jorge Amado, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Chico Buarque. O que era encanto fez-se incômodo e insones humanos passaram a reclamar das serenatas prolongadas, fora de hora.
O poeta John Donne nos ensinou por quem os sinos dobram, mas os pássaros por que cantam? Instinto de sobrevivência. Cantam para atrair as fêmeas ou para se imporem a outros machos. Diversos estudos científicos demonstram que, dentre os pássaros, os indivíduos que cantam mais alto, mais rápido e com um repertório maior de notas são aqueles que têm maiores chances tanto de manter territórios com abundância de alimento quanto de conquistar as melhores parceiras e obter sucesso reprodutivo.
Recorro novamente ao amigo Celso Gutfreind, a um poema dele: “Eu fugi com o circo,/ mas acabei na banda./ Eu não uso a banda para sobreviver./ Pra sobreviver eu vendo ovos/ em horas vagas e frias.// Eu uso a banda para ser olhado./ Eu uso a banda para ser querido./ Eu uso a banda para ser eterno/ em breves aplausos que recebo na calçada./ Eu toco na banda para ter mulher”.
Dá para entender, mas durma-se com um barulho desses. Tolerância parece ser a palavra certa. Os sabiás precisam dar o seu recado. A beleza do canto e o instinto de vida é necessariamente mais importante que o ruído caótico dos nossos tempos.
Adormeço. Sonho com os Lençóis Maranhenses. Ainda é noite, ainda é três de novembro. Ao alcance da mão, na cabeceira da cama, a tela do celular exibe não a hora, mas o ano: 1864. Consulto o aplicativo de localização: Baixo de Atins, baía de Cumã. Um baque surdo, seguido por um som rasgado, arrebenta chão e breu. Levanto e abro a porta do meu camarote, areia e água invadem o Ville de Boulogne. A tripulação segue o seu capitão e evade-se a nado. No camarote ao lado do meu, jaz, afogado, Gonçalves Dias, 41 anos, única vítima do naufrágio. Adoentado, o poeta retornava da Europa; ninguém lembrou de acordá-lo. Seu canto de morte não foi ouvido por guerreiro algum, timbira ou tupi; eles talvez não o tivessem deixado à própria sorte. Os interfones da embarcação estavam em reparo, nem caberia perícia e um a um os sabiás vinham sendo silenciados.
Ainda é noite, ainda é três de novembro. Ao alcance da mão, na cabeceira da cama, a tela do celular exibe não a hora, mas o ano: 1864.
Horas mais tarde, amanheceriam cá em casa, outras duas vozes da primavera: Manoel de Barros e Drummond.
O primeiro não fugiu ao tema: “A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam”.
O segundo vaticinou: “Pois de amor andamos todos precisados! (...) Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando”.